“Nenhuma das previsões sobre a redução das horas de trabalho se tornou realidade. Hoje, um casal passa mais horas a trabalhar do que fizeram os seus pais e os seus avós. E isso é completamente contrário a tudo o que tem sido apregoado “

“Nenhuma das previsões sobre a redução das horas de trabalho se tornou realidade. Hoje, um casal passa mais horas a trabalhar do que fizeram os seus pais e os seus avós. E isso é completamente contrário a tudo o que tem sido apregoado “

Trabalhar é uma necessidade e é através do trabalho que as pessoas conseguem obter a sua autoestima, defende Jan Lucassen, autor do livro História do Trabalho – Uma Nova História da Humanidade (Temas e Debates, 648 páginas, €28,80). Em conversa com a VISÃO, por ocasião do lançamento do livro em Portugal, faz uma análise global da dinâmica da organização das sociedades desde os tempos primitivos até à nossa época. Autor de livros como Globalising Migration History: The Eurasian Experience e Global Labour History: A State of the Art, Lucassen nasceu em 1947, nos Países Baixos, sendo professor da Universidade Livre de Amesterdão e membro honorário do Instituto Internacional de História Social, onde fundou o Departamento de Investigação.

No seu livro, cita um mineiro que diz: “Eu odeio trabalhar. Mas também posso afirmar, com igual verdade, que adoro trabalhar.” Que relação complexa é esta que as pessoas têm com o trabalho?
O trabalho é visto como uma necessidade para a sobrevivência. Se toda a gente parasse de trabalhar durante duas semanas, ficaríamos sem alimentos, sem eletricidade, sem abastecimento de água nem cuidados de saúde. Acabaríamos por morrer. Por outro lado, todos nós gostamos de ter os melhores resultados com o menor esforço. Mas há muito mais no trabalho do que apenas a necessidade. Não trabalhamos sozinhos. Somos seres sociais e o trabalho é a parte mais importante da nossa vida. E conseguimos tirar muito prazer dele através da interação com outras pessoas. Além disso, uma grande parte da nossa autoestima é obtida no local de trabalho. No final do dia, podemos olhar-nos ao espelho e ficar muito satisfeitos com o que produzimos, mas, passado algum tempo, se não tivermos a repercussão dos outros sobre o que fizemos, começamos logo a pensar que algo de errado se passa.​

O trabalho é assim tão importante para a nossa autoestima?
A autoestima deriva da estima que obtemos dos outros. Aliás, na segunda edição do livro fiz um acrescento, que considero muito importante, sobre o caso do desemprego em Marienthal, nos subúrbios de Viena. No início dos anos 30, na altura da Grande Depressão, uma das maiores fábricas de têxtil entrou na falência e colocou milhares de pessoas no desemprego. Toda esta gente estava desempregada e apenas sobrevivia com produção própria e algumas ajudas de subsistência. Na altura, uma psicóloga austríaca, Marie Jahoda, fez um estudo aprofundado sobre este fenómeno e chegou à conclusão de que os homens perderam toda a autoestima. As mulheres também, mas num grau menos elevado, porque tratavam da lida da casa, remendavam a roupa dos filhos e dos maridos, faziam as refeições, e por aí fora, ou seja, mantinham uma maior ocupação do seu tempo. Os homens passavam o dia todo na rua, sentindo-se cada vez mais tristes, mais resignados e apáticos. Este caso é uma imagem viva do que acontece quando as pessoas não têm trabalho.​

No seu livro usa muito as expressões “subordinação vertical” e “cooperação horizontal” para definir como as pessoas se relacionam com o trabalho ao longo dos tempos…
… A subordinação vertical é a relação, como nos dias de hoje, entre empregado e empregador. A cooperação horizontal é a forma como nos relacionamos desde o princípio da Humanidade até à criação ou introdução do trabalho remunerado, há cerca de 2 500 anos.

É o ponto de viragem?
Sim, mas não só. Com o início da criação dos Estados descobriu-se que, em vez de matar os inimigos, era muito mais inteligente capturá-los e fazê-los trabalhar. E isso aconteceu muito antes de termos uma economia de mercado. Pode dizer-se que esse foi também um grande ponto de viragem. Temos outros exemplos de subordinação vertical nas civilizações pré-colombianas, ou até no Antigo Egito, onde a sociedade estava organizada em redistribuição central. As pessoas contribuíam para os templos para apaziguar os deuses, entregando parte do que caçavam ou recolhiam. E a antiga União Soviética não era muito diferente, pois existia também uma ideologia central que defendia que todos eram iguais. Não entrei neste ponto no livro, mas a ideia é muito similar.​

Nos três tipos de organização do trabalho, caçador-recoletor, distribuição central e economia de mercado, podemos dizer que a primeira era a que promovia maior igualdade entre as pessoas?
Sim. Eram comunidades muito pequenas, o que permitia uma melhor verificação do que cada um fazia. E, pelo que conhecemos, quem não fizesse a sua tarefa deixava de ser aceite pelo grupo. E no livro descrevo isso, as pessoas que conseguiam reunir mais alimentos, fosse por serem mais inteligentes ou mais fortes, eram recompensadas pela restante comunidade. Quem caçava o animal recebia a parte mais nobre e os mais preguiçosos ficavam com menos, mas a comida era distribuída por todos. ​

Isso aconteceu durante uma boa parte da História.
Cerca de 98% da História da Humanidade é vivida numa sociedade mais ou menos igualitária.

E como é que, de um momento para o outro, aceitamos viver numa sociedade mais desigual, pelo menos nos últimos 2% da nossa História?
Com a invenção de ideologias, que passaram a justificar porque é que os direitos de uns deveriam ser diferentes dos dos outros. E mesmo nessa altura os líderes viam-se obrigados a dar algo em troca aos cidadãos, como na Roma Antiga, com os jogos e outros eventos. No que respeita a ideologia, e vou utilizar uma palavra muito pesada neste contexto, o truque é dar algo de volta para mostrar que, no final, somos todos iguais. Nos EUA, temos os exemplos dos filantropos que devolvem parte da sua fortuna à sociedade. Mas temos também ideologias que defendem a desigualdade porque, alegam, a lei natural diz que alguns de nós são mais inteligentes ou dotados e merecem receber mais dinheiro, apregoando que a riqueza de cada um é o resultado do seu esforço. E com isso esquecemos todas as outras regras da sociedade? Esta ideia de que a desigualdade é o resultado de um sistema justo não faz qualquer sentido. De uma forma geral, posso dizer que todas as mudanças na sociedade necessitam de uma ideologia forte para as defender. Por natureza, nós não estamos preparados para as aceitar. ​

Há ideologias que defendem a desigualdade porque, alegam, a lei natural diz que alguns de nós são mais inteligentes e merecem receber mais dinheiro. Esta ideia de que a desigualdade é o resultado de um sistema justo não faz qualquer sentido

No livro diz que “todas as grandes reversões do trabalho livre no século XX ocorreram quando se apregoava uma promessa de paraíso para os trabalhadores”.
Encontrar um equilíbrio certo entre esforço e remuneração tem sido a regra básica dos países onde existe Segurança Social. A ideia foi desenvolvida pelo movimento laboral do final do século XIX e teve um grande desenvolvimento no final da primeira e da segunda guerras mundiais. Os governos pediam muitos sacrifícios às pessoas mas garantiam que, após a vitória – na altura todos achavam que iam vencer –, iriam compensar a população. E nesse período assistimos, em vários países, a um processo muito rápido de aprovação de leis que vieram limitar os horários de trabalho, criar benefícios sociais, etc. Tivemos também um exemplo da competição entre a antiga União Soviética e os Estados Unidos da América, onde cada um tentava mostrar que os seus trabalhadores eram os mais felizes e, indo mais longe, a propaganda fascista, que vocês conhecem aqui em Portugal, também conseguiu singrar apregoando que tinham um sistema que iria tornar os trabalhadores mais satisfeitos. A própria economia de mercado também está assente nesta pretensão de que os trabalhadores são mais felizes. ​

Com os avanços tecnológicos, temos ouvido o discurso de que as pessoas irão trabalhar cada vez menos, fazer menos horas, mas tal não tem acontecido. Porquê?
Essa ideia tem sido defendida desde o início da mecanização. Temos exemplos na indústria têxtil na Holanda do século XVII, com os trabalhadores a resistirem à evolução, contestando a chegada das máquinas às fábricas. O medo de perder o trabalho já dura há centenas de anos. E é normal que as pessoas se preocupem. Mas também temos visto, pelo menos até agora, que a sociedade tem conseguido criar novos empregos e funções que vão compensando os que se perdem. De uma forma geral, não temos tido desemprego criado pela mecanização ou pela robotização dos meios de produção.​

Era um discurso demasiado otimista?
E errado. Nenhuma das previsões que foram feitas sobre a redução das horas de trabalho se tornou realidade. Posso dizer que, hoje em dia, um casal passa mais horas a trabalhar do que fizeram os seus pais e os seus avós. E isso é completamente contrário a tudo o que tem sido apregoado. Temos alguns exemplos, como em França, no tempo de Mitterrand, que baixou o número de horas de trabalho semanais, mas isso já parou. E, efetivamente, as pessoas voltaram a trabalhar mais. ​

Mas esses avanços tecnológicos libertam tempo para os trabalhadores?
Em cada nova fase do avanço tecnológico, outros trabalhos vão sendo criados. Temos tido exemplos ao longo dos últimos 40 ou 50 anos, com áreas como a saúde, onde há cada vez mais gente a trabalhar, como a educação, porque o desenvolvimento técnico obriga a ter pessoas mais qualificadas, e por aí fora. ​

Há algum tempo disse que o maior problema no futuro “não era o tempo de trabalho mas sim o que as pessoas iriam receber pelo tempo que trabalham”. O que quis dizer com esta frase?
Temos, salvo algumas exceções, uma economia de mercado que domina a grande parte do mundo. E esta economia é uma coisa muito abstrata que apenas pode existir com regras bem definidas, como, por exemplo, os impostos sobre os rendimentos, que tendem a fazer a sociedade democrática mais justa. Mas estas regras não são ditadas pelos céus. São resultado de lutas sociais e de uma competição de grupos que têm interesses diferentes. Mais concretamente, é o movimento laboral que garante que há limitação de horários nas fábricas, a existência de salários mínimos, de equidade salarial, pelo menos no papel, entre homens e mulheres, etc., etc. São regras que resultaram de um esforço árduo de ação coletiva. Mas, com o passar das gerações, algumas destas regras tendem a ser esquecidas. E hoje assistimos a trabalhadores que estão a beneficiar de acordos estabelecidos pelos sindicatos, mas que já não querem ser membros desses sindicatos. Em todos os países os números de sindicalizados têm descido… até há pouco tempo. Recentemente, verificamos uma ligeira subida em muitos países.​

Porquê?
Acho que as pessoas voltaram a perceber que a ação coletiva é necessária.​

Acha que esta nova geração pensa de modo diferente?
Temos movimentos distintos. Há quem defenda a liberalização do mercado de trabalho, com a flexibilidade total, o que é devastador para a ação coletiva, mas por outro lado temos legisladores europeus que estão a definir medidas que limitam essa flexibilidade. Posso dizer que, no passado recente, perdemos um pouco a consciência de que todas estas conquistas de segurança laboral e social resultaram da ação coletiva. Não foram dadas pelo Pai Natal. E se quisermos reconquistá-las temos de voltar à ação. A não ser que acreditemos no Pai Natal. ​

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