“A vontade da Grã-Bretanha de competir com Portugal foi um dos fatores essenciais que atraíram os britânicos para a Índia”

“A vontade da Grã-Bretanha de competir com Portugal foi um dos fatores essenciais que atraíram os britânicos para a Índia”

Europeus e norte-americanos podem acreditar que ainda ocupam o centro do mundo. Estão bem enganados. O eixo de gravidade do planeta deslocou-se do Atlântico para o Pacífico. A China e respetivos vizinhos já representam mais de um terço do PIB global, com efeitos geopolíticos incontornáveis. O que não constitui sequer uma novidade. No início do século XVIII, a Índia da dinastia mogol, onde já viviam mais de 100 milhões de pessoas, era a maior potência económica da Terra. Não é pois de estranhar que o regime de Nova Deli e o primeiro-ministro Narendra Modi recordem as grandiosidades do passado e sejam ambiciosos quanto ao futuro daquela que é ainda descrita como a maior democracia da atualidade. Para compreender estas dinâmicas, nada como ouvir e ler quem as conheça. É o caso do australiano John Zubrzycki, autor de Breve História da Índia – Cinco Mil Anos de uma História Colossal (Editorial Presença).

Uma parte da família do primeiro-ministro português, António Costa, é originária de Goa, na Índia. Admite que ele possa ficar desapontado com este livro? Menciona Portugal apenas três vezes: uma única frase na introdução, sobre os mercadores portugueses, outra no capítulo 6, sobre Mumbai (antiga Bombaim) e Catarina de Bragança, e a última, sobre a pimenta como ingrediente indispensável na cozinha indiana…
Gostaria de ter falado muito mais sobre Portugal, mas a editora estabeleceu-me um limite máximo de 50 mil palavras. Confesso que tive de fazer escolhas difíceis, sobre o que incluir e o que deixar de fora. Existem poucos países cuja História seja tão complexa como a da Índia – e poucas civilizações tão antigas. Embora o manuscrito final tenha ficado com perto de 60 mil palavras, era uma missão impossível cobrir adequadamente todos os aspetos da História indiana.

Como grande conhecedor da Índia, permita-me insistir. Considera irrelevante a presença colonial portuguesa no país?
Claro que não. Os portugueses instalaram-se na Índia um século antes da Companhia Britânica das Índias Orientais e mantiveram uma presença, permanente, até a República Indiana anexar Goa, em 1961. A vontade da Grã-Bretanha de competir com Portugal foi um dos fatores essenciais que atraíram os britânicos para a Índia. A cedência de Bombaim a Carlos II de Inglaterra, em 1662, como parte do dote de Catarina de Bragança, como referiu, foi outro momento significativo. A presença portuguesa revelou-se também fundamental para espalhar o cristianismo por todo o subcontinente. Hoje, a influência de Portugal ainda se nota bastante em Goa, mas não só. Em cidades como Mumbai, várias personalidades das artes, dos negócios e dos média têm uma ascendência mista, indiana e portuguesa.

Existe algum detalhe histórico que queira destacar sobre o “Estado Português da Índia”?
Um dos aspetos mais fascinantes tem que ver com sua impressionante extensão. A presença portuguesa estendia-se desde Diu, no que é hoje Gujarat, até cidades como Sagaing, na Birmânia (Myanmar), a sul de Kerala e até ao rio Hooghly, em Bengala Ocidental. Podemos afirmar que, depois dos ingleses, Portugal foi a potência colonial mais importante no Sul da Ásia a partir do século XVI.

A que se deve o seu interesse pela Índia?
Visitei-a pela primeira vez como estudante, no final dos anos 1970, e fiquei imediatamente seduzido pela cultura, pela arquitetura, pela História. Decidi então estudar História Indiana e Hindi na Australian National University [em Camberra]. A seguir, fui viver e trabalhar para a Índia, primeiro como diplomata e depois como correspondente de vários órgãos de comunicação social. Percebi que o país era uma fonte inesgotável de histórias não contadas, daí ter começado a escrever livros sobre assuntos tão diversificados como a magia indiana e os estados principescos. The Shortest History of India é o meu quinto livro sobre o país.

A que se deve o facto de ter aceitado a encomenda de comprimir, em menos de 300 páginas, cinco mil anos de História da Índia? Por que não um livro, por exemplo, apenas sobre a República da Índia?
Para entender a Índia de hoje, precisamos de entender a sua História, a sua cultura. Temos de entender por que motivo o atual sentimento de humilhação devido às invasões muçulmanas do século XI é crucial para a narrativa política do BJP, o partido no poder. Temos de entender que o sistema de castas e a discriminação continuam a existir e que é necessário corrigir os erros de séculos de colonização europeia. E mesmo para se compreender a República da Índia, é importante explicar o contexto do seu nascimento [1947], após décadas de lutas nacionalistas.

Priyanka Chopra é o exemplo de uma atriz de sucesso que soube fazer a transição de Bollywood para o palco global. Ela representa o dinamismo da diáspora indiana

Há um impressionante número de personalidades com origens indianas nas elites globais. Paradoxalmente, poucos falam dessa herança…
Não me parece que assim seja. Vejam-se os casos de Rishi Sunak, na Grã-Bretanha, e de Kamala Harris, nos EUA. Ambos reconhecem as suas heranças indianas, até porque isso lhes rende muitos votos. E não podemos esquecer-nos de algumas figuras de topo na área da cultura, os escritores Amitav Ghosh e Arundhati Roy, o maestro Zubin Mehta, a cineasta Mira Nair…

Escreve que a Índia, logo na Antiguidade, foi o berço de grandes pensadores e estadistas, como Ashoka e Kautilya. No entanto, no Ocidente, poucas pessoas já ouviram falar deles. Porquê?
Espero que livros como o meu corrijam essa, digamos, anomalia. Ashoka [ou Açocavardana] foi claramente um dos maiores governantes do seu tempo e, no seu reinado [268-232 a.C.], o budismo começou a alastrar-se por toda a Ásia. Kautilya [ou Cautília] foi um grande pensador e estratega [370-283 a.C.], cujas teorias ainda hoje influenciam a política na Índia. Uma das falhas do governo de Nova Deli é não saber usar devidamente o seu soft power como a China. Pequim investe vastos recursos nos seus institutos Confúcio, em todo o mundo. A Índia, por já se considerar a maior democracia do mundo, talvez não sinta a mesma necessidade de provar o que quer que seja, como faz a China.

Narendra Modi [primeiro-ministro desde 2014], Pryanka Chopra [atriz em Hollywood] e Mukesh Ambani [empresário e um dos homens mais ricos do mundo] são os melhores representantes da Índia contemporânea?
Durante décadas, a Índia orgulhou-se de ser um país tolerante, secular e democrático. Narendra Modi encarregou-se de desfazer esse legado, não o consideraria um dos melhores representantes da Índia contemporânea. Priyanka Chopra é o exemplo de uma atriz de sucesso que soube fazer a transição de Bollywood para o palco global. Ela representa o dinamismo da diáspora indiana. Mukesh Ambani é o indivíduo mais rico da Índia. É o rosto de uma Índia em rápida mudança, cada vez mais voltada para o consumo, mas o sucesso de Ambani obriga-nos também a recordar que a desigualdade está a crescer, com os 5% mais ricos a possuírem aproximadamente 60% da riqueza do país. A Índia tem igualmente o maior número de pobres do mundo – quase 230 milhões.

Como interpreta as iniciativas do primeiro-ministro para reescrever a História do país, misturando religião e ultranacionalismo?
É algo muito preocupante. Alguns exemplos. O BJP decidiu que abriria o novo Parlamento a 28 de maio, aniversário do nascimento do ideólogo nacionalista hindu VD Savarkar. Em sinal de protesto, os partidos da oposição boicotaram o evento. No final do ano passado, o Conselho Nacional de Investigação e Treino Educacional anunciou que apagaria certos capítulos sobre o Império Mogol dos manuais de História do 12º ano. Recentemente, os escritórios da BBC, em Nova Deli, foram vistoriados por funcionários das Finanças, após a estação televisiva britânica exibir um documentário sobre a suposta cumplicidade de Modi nos motins e na vaga de violência, em 2002, que provocou a morte de milhares de muçulmanos no estado de Gujarat [o agora primeiro-ministro era nessa altura o governador da região, tendo a polícia sob a sua tutela]. O documentário foi proibido na Índia. Estudantes que se reuniram em campos universitários, para desafiar a proibição, foram presos.

Modi e o BJP estão a minar deliberadamente a maior democracia do mundo? O Estado secular e pós-colonial dirigido por Nehru [primeiro-ministro entre 1947-1964] está em jogo?
O Estado secular construído por Nehru está seguramente comprometido. Os rankings sobre a qualidade das democracias, quer o da Economist Intelligence Unit quer o da Freedom House, já refletem a degradação do Estado de direito na Índia, por causa da intimidação de jornalistas, académicos e organizações não governamentais, bem como da marginalização social e económica de alguns grupos, nomeadamente os muçulmanos e os intocáveis.

EUA, Austrália, Europa, todos olham agora para a Índia como a “nação indispensável”, contra uma China em ascensão. O governo de Nova Deli estará alguma vez alinhado com os objetivos estratégicos do chamado Ocidente?
Enfrentar Pequim e explorar os medos ocidentais sobre as crescentes beligerância e influência da China no Indo-Pacífico é crucial para a estratégia da Índia – apostar na ambiguidade contra as grandes potências e esculpir uma nova identidade global. No entanto, duvido que a Índia sob o atual governo esteja alinhada com os objetivos estratégicos ocidentais. A Índia também está a jogar a cartada chinesa para atenuar as críticas internacionais à sua posição em relação à Ucrânia. Nova Deli depende de Moscovo no que toca ao fornecimento de material bélico e de petróleo barato. Essas importações aumentaram 30 vezes desde o início da invasão. Depois há a realpolitik indiana. O regime considera que tem todo o direito de defender os seus interesses, numa ordem global altamente fluida. Daí, por exemplo, a sua adesão à Organização para a Cooperação de Xangai, liderada pela China, que visa contrabalançar a influência dos EUA na Eurásia. O ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, classifica esta postura como “plurilateralismo”. Seja qual for a designação, fica evidente que a tradicional política indiana de não alinhamento deu lugar a um multialinhamento.

Ao aceitar fazer parte do QUAD [Diálogo de Segurança Quadrilateral, a parceria político-militar que inclui ainda EUA, Austrália e Japão], a Índia aceitou envolver-se no turbilhão da rivalidade entre superpotências?
Não necessariamente. O Quad assume-se como um fórum para promover um “Indo-Pacífico aberto, estável e próspero”, que quer contrariar a influência de Pequim na região, embora nas suas declarações raramente se mencione o gigante asiático pelo nome. É natural que se aprofundem os laços militares entre os seus membros. Mas Nova Deli irá, acima de tudo, defender os seus interesses e evitar envolver-se na competição entre superpotências.

A civilização contínua mais antiga do mundo tem agora mais habitantes do que a China. É essa uma das razões que o levam a escrever que os “melhores momentos da Índia ainda estão por vir”?
Não é apenas ultrapassar a população da China que é importante. A Índia tem uma estrutura demográfica muito mais jovem, o que a coloca numa posição económica mais forte a longo prazo. No início deste ano, o banco de investimentos Morgan Stanley anunciou que a Índia pode tornar-se a terceira maior economia do mundo até 2027 e será responsável por um quinto do crescimento global na próxima década. Se conseguir aproveitar o potencial da sua juventude, dando-lhes educação, se for capaz de enfrentar os desafios ambientais, de desenvolver infraestruturas, se puder viver de acordo com suas credenciais democráticas e se for um ator global responsável, a Índia vai demonstrar que é uma grande civilização.

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