Max Krahé é um economista político alemão e investigador na Universidade de Duisburg-Essen. Nos últimos anos, tem-se dedicado à transição climática, defendendo a necessidade de maior planeamento centralizado para ultrapassar esse desafio existencial. Recentemente, participou remotamente no Colóquio Planeamento Público e Democrático, organizado na Gulbenkian pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Em entrevista à VISÃO, argumenta que é possível desenhar um plano de transição verde que melhore a vida da maioria da população.
Qual é o problema da forma como estamos a lidar economicamente com as alterações climáticas? O que é que não está a funcionar?
Uma boa forma de colocar as coisas é olhar para a pandemia. 2020 foi o ano mais intenso de confinamentos e mudança de comportamento individual. Os números das emissões caíram 5% no mundo e 10% nos EUA e na Europa. O que isto nos diz é que esta abordagem de guiar o comportamento individual não é suficiente. As alterações climáticas obrigam a transformar a infraestrutura energética, industrial, de transporte e de habitação. Neste momento, estamos a tentar influenciar as pessoas com sinais suaves nos preços. Pode mexer com o comportamento individual, mas do que precisamos é de transformar a infraestrutura.
Parece haver uma dissonância cognitiva no debate: os nossos líderes dizem-nos que as alterações climáticas são uma ameaça à nossa sobrevivência, mas as medidas não seguem essa dramatização. Porquê?
A raiz é falta de vontade política. Se ela existisse, poderíamos encontrar dinheiro e produzir conhecimento. A questão é: porque é que não temos vontade política, se é um risco existencial? Acho que é uma combinação de fatores. Um deles é a timeline. Os efeitos catastróficos das alterações climáticas não acontecem amanhã. É algo lento e é uma probabilidade. E depois, claro, há interesses que ganham com uma economia de combustíveis fósseis e que obstruem e enfraquecem essa vontade política.
Recentemente explodiu a popularidade do ESG [Governança Ambiental e Social] no mundo empresarial, ao mesmo tempo que fomos tendo muita discussão sobre a importância do comportamento individual, por exemplo, através da substituição de palhinhas de plástico. Estas coisas são úteis ou são distrações?
Para mim é claro que não são soluções. É complicado perceber dinâmicas políticas, mas a minha intuição é que são úteis como formas de chamar a atenção. O ESG não funciona, baseia-se em premissas frágeis. Mas se apostar nisso e, anos depois, as pessoas virem que não resultou, pode levá-las a experimentar outras coisas que inicialmente não estariam dispostas a tentar. A questão é saber se temos tempo para aprender tudo o que não funciona.
Quais são as limitações da abordagem de mercado face a uma maior centralização?
Ambas são ferramentas para criarmos a economia que queremos. E, tal como todas as ferramentas, funcionam bem para certas tarefas e não para outras. Se olhar para a História Económica do século XX, os mercados parecem uma ferramenta geral boa e melhor do que o planeamento. As alterações climáticas devem ter algo de especial para fazer com que os mercados não funcionem. Para mim, o que faz com que não funcionem é a incerteza. Os mercados não funcionam bem em contextos de muita incerteza. O primeiro problema que se coloca é a má alocação de investimento. Quando há muita incerteza, o investimento fica muito aleatório, deixa-se levar por narrativas, há bolhas… Durante a pandemia, tivemos as “ações meme”, como AMC e GameStop. Foram injetadas grandes quantidades de capital nessas empresas aleatórias. É isso que queremos? O cripto, por exemplo, é uma moda que não traz nada de bom para ninguém e também teve uma enorme injeção. O segundo problema da incerteza é que cria uma espécie de paralisia, podendo reduzir o volume de investimento. Como não sei o que aí vem, eu, como investidor, tiro o meu dinheiro da economia real e coloco-o no ativo mais seguro que consigo encontrar. As alterações climáticas forçam-nos a agir depressa e os mercados não são bons para isso quando há incerteza.
Falar em centralizar a tomada de decisão vem normalmente acompanhado de acusações de querer reeditar a União Soviética. Num artigo que escreveu, distingue entre economia planeada e economia dirigida. Pode explicar a diferença?
Não sei quão bem os leitores conhecem a economia alemã, mas a forma como reagiu à guerra na Ucrânia é um ótimo exemplo dessa diferença. Após esse choque, o governo alemão explicou como ia reagir – não vamos depender mais do gás russo e vamos facilitar a construção de novos terminais LNG – e, além desse planeamento, fez também uma gestão de preços, introduzindo tetos máximos no gás e na eletricidade. Numa situação de enorme incerteza, o Estado desenhou um caminho para o futuro e usou diferentes instrumentos para o executar. Nenhum desses instrumentos foi de uma economia dirigida. O ministro da Economia não ordenou que se produzisse isto ou aquilo. Passa por escolher uma direção – planear – e usar instrumentos que funcionem e que, muitas vezes, são instrumentos de mercado.
Que riscos existem nessa abordagem mais planeada?
O maior perigo é apostar nas tecnologias erradas. Uma abordagem planeada significa desenhar caminhos específicos. Quando fazemos isso, temos de tomar decisões: quanto solar, quanta hídrica, quanta eólica? Como se vai transportar? Podemos usar algoritmos avançados, big data e modelos económicos que apontem a forma mais eficaz, mas nós não sabemos como é que essas tecnologias evoluem. Há dez ou 20 anos, as pessoas talvez dissessem que as baterias eram tão caras que a mobilidade elétrica nunca funcionaria. Agora são superbaratas. E sinceramente foi porque Elon Musk decidiu investir 20 mil milhões de dólares nelas. Não saber que tecnologias ficarão mais baratas em comparação com outras é um grande desafio. Por isso é que, ao planear, não deve dizer “vamos fazer a coisa mais eficiente”. Em vez de uma grande aposta, provavelmente deve ter um portfólio de diferentes tecnologias. Avaliar, avaliar, avaliar. E adaptar à medida que se avança.
A economista Mariana Mazzucato tem falado na necessidade de o Estado agir um pouco como as empresas, aceitando algum risco e fazendo apostas que pode perder.
A questão é: quem assume o risco? Se eu, com o meu dinheiro, assumisse um grande risco numa tecnologia e me enganasse, ficaria pobre, sem dinheiro. Entre os diferentes atores, o Estado é aquele que pode assumir mais risco, que tem os ombros mais largos. Se tivermos de navegar neste campo incerto, é o Estado que pode absorver o falhanço de uma forma que as empresas não conseguem. Pode pensar no planeamento como uma forma de passar a incerteza do setor privado para o público, reduzindo-a.
O Estado é aquele que pode assumir mais risco, que tem os ombros mais largos. Se tivermos de navegar neste campo incerto, é o Estado que pode absorver o falhanço de uma forma que as empresas não conseguem
As nossas Administrações Públicas estão preparadas para um futuro mais planeado? Em Portugal, o planeamento quase desapareceu do Governo.
Não, não estão. Os governos que eu conheço, em específico o alemão, não estão preparados para esse planeamento. E o que falta é especialização industrial. Isso viu-se com a Covid-19. O governo alemão não percebia de cadeias de abastecimento farmacêuticas, energéticas, alimentares. Se não sabe, não há forma de planear a transformação da economia. É necessária uma grande mudança na especialização nos governos. Há muito conhecimento legal, sabe-se muito sobre criar mercados ou sobre concorrência, mas muito pouco sobre operações industriais. Conseguiremos obter isso a tempo? A História deixa-me otimista e pessimista. Se olharmos para o planeamento francês a seguir à II Guerra Mundial, um país em ruínas muito rapidamente criou uma estrutura que permitiu planear. Ou se olhar para a rapidez da transformação americana e britânica de economias de paz para economias de guerra. O pessimismo vem de perceber que, tanto no caso francês como no americano/britânico havia uma vontade política muito forte e um grande consenso para reconstruir a economia. Isso não existe hoje.
Com a Covid-19 e a reação dos Estados à pandemia, mudou a forma como olhamos para o setor público? Há mais músculo orçamental a ser usado, alguma política industrial.
Estou muito, muito, muito, mais otimista. E isso é porque estou a olhar para a vontade política. O Next Generation EU tem dinheiro suficiente? Não. É demasiado pequeno e não resolve sequer as cicatrizes de Itália ou de Portugal da última década. Mas o repensar que teve lugar é encorajador. E vê-se nas pequenas coisas. Por exemplo, o governo alemão tem uma estratégia de hidrogénio, há uma estratégia europeia para microchips. Também muito encorajador é o American Inflation Reduction Act. Quando os EUA se mexem, mexem-se mesmo. Criou uma pressão competitiva para fazer algo na Europa.
Seria útil assumir que o combate às alterações climáticas terá inevitavelmente alguma dor?
Eu perguntaria sempre: dor para quem? Os 20% mais pobres do mercado de trabalho alemão são precários, têm salários baixos e poucas oportunidades de aumentar rendimentos. Podemos facilmente fazer a transformação e tornar a vida melhor para 50% ou 80% da população. Que pessoas são responsáveis pela maior parte das emissões? O top 10%. Se usar uma perspetiva nacional, haverá perda de prosperidade, crescimento mais baixo do que se espera, mas não é certo para mim que tenha de se traduzir em austeridade para quem já está a sofrer.
A questão era mais saber quão popular pode ser esta transição. Como não alienar segmentos da população? É tão simples como gastar dinheiro?
Acho que é quase tão simples quanto isso. Mas talvez não como esperamos. Não podemos simplesmente gastar dinheiro em programas sociais. Seria melhor do que temos agora, mas há limites. Uma transição num enquadramento de emergência mexe com o mercado de trabalho. Se dissermos que todas as janelas têm de ser substituídas amanhã, precisa de muitos trabalhadores para o fazer. Se mantiver essa pressão positiva no mercado de trabalho, os salários no fundo da pirâmide vão aumentar, os lucros vão cair, haverá um reequilibrar da economia para mais longe do top 1% e mais para o centro da distribuição. Olhemos para a História Económica e para como foram mobilizados recursos para a II Guerra Mundial. Foi muito benéfico para os 50% mais pobres, para as mulheres, para os afro-americanos… Acho que a transição verde pode ser pró-social.
O movimento degrowth [crescimento económico zero ou negativo] tem vindo a ser mais debatido. É uma forma satisfatória de olhar para as alterações climáticas?
Não. Se o método de reduzir emissões é reduzir a atividade económica e se precisamos de reduzir as emissões a zero, quanto temos de reduzir a atividade económica? Além disso, eu gosto de prosperidade. A maior parte das pessoas gosta. O degrowth não faz sentido. Mas o crescimento, por si só, não chega. O PIB não é prosperidade. Prosperidade é ter uma casa quente, boa comida, tempo para passar com os amigos.
O debate sobre lidar com alterações climáticas está muito concentrado em restringir e limitar. Independentemente da sua necessidade, no final serão a inovação e a tecnologia a trazer uma solução?
Exatamente. Será a inovação. Em relação à tecnologia seria mais cauteloso, porque inovar não é apenas ter novas máquinas, pode ser usar as que já temos de outras formas.
Regressando ao início, se a chave é vontade política, como é que ela pode ser influenciada? Temos visto grandes manifestações de jovens, por exemplo.
Organizar, organizar, organizar. Envolver-se politicamente, falar com outras pessoas, protestar, fazer petições, escrever a deputados. Basta que mil pessoas enviem cinco cartas para fazer diferença.
Está otimista?
Em geral, sim. Mas ainda ontem estava a ouvir uma apresentação sobre pontos de rotura climáticos e fiquei assustado.