Regina Duarte, 50 anos, é, desde setembro, a nova comissária do Plano Nacional de Leitura 2027 (PNL). Trocou Oxford, onde vivia com a família, por Lisboa, e deixou o Instituto Camões em Londres, onde coordenava o ensino de Português no Reino Unido, e o lugar de adida de Educação na embaixada de Portugal. A sua passagem por Inglaterra deixou uma marca indelével: a criação da primeira escola bilingue Inglês-Português, um investimento de 20 milhões de libras do Estado inglês. Na semana em que se realizou a conferência anual do PNL, Regina Duarte falou à VISÃO dos seus novos desafios.
O que leva alguém que estava há 11 anos a trabalhar em Londres a mudar completamente a sua vida, para vir ser comissária do Plano Nacional de Leitura (PNL)?
Tem precisamente que ver com o facto de ser o PNL; a qualquer outro convite teria dito “não”. Gostava muito do trabalho que estava a fazer. Mas os livros são a minha paixão. São eles que dão coerência à minha carreira. Em certas alturas, achei que a tinha perdido, porque sou muito curiosa e gosto de projetos desafiantes. Trabalhei no Ministério da Educação em Desenvolvimento Curricular, fiz investigação e terminei o doutoramento; a seguir, fui para Londres e, a certa altura, pensei: “Se calhar, foi curiosidade a mais e perdi coerência.” Ter a oportunidade de aliar esta grande paixão pessoal pelos livros ao que investi, ao longo da minha carreira, em conhecimento sobre leitura e literatura é reunir coisas que estavam desencontradas. Sinto que, de alguma forma, me andei a preparar durante a vida para este lugar.
Qual o seu entendimento do que é um PNL?
Querermos que todo o País leia mais e melhor, que os níveis de literacia sejam mais altos, é uma ambição enorme, mas é válida e temos de trabalhar para ela. Considero importante trabalharmos com diferentes áreas da comunidade, e não apenas com o público escolar. Temos de olhar para a população em geral e pensar de que modo é que a leitura pode melhorar a vida de alguns grupos mais desfavorecidos – a leitura pode fazer a diferença. Na minha vida, fez essa diferença. Cresci em Mafra, um meio rural, com muito pouca oferta cultural. Vivia numa quinta grande, quase autossuficiente; portanto, pouco saíamos, e os livros mostraram-me que havia vida para lá daqueles muros. Temos de olhar para populações mais isoladas do Interior ou mais envelhecidas – e, por isso, mais solitárias –, ou até para algumas com problemas sociais graves, e ver de que forma lhes podemos propor a leitura como um meio de saírem, de se projetarem para fora daquela realidade e perceberem que há caminhos. Às vezes, pensamos na leitura só como prazer estético, como algo de que podemos usufruir no nosso tempo livre, mas ela tem também um papel social muito importante e muito mobilizador, que pode, de facto, transformar a vida das pessoas. A leitura tem esse papel incrível.
Trabalhar com adultos, em comunidades periféricas, no sentido geográfico ou social, é ambicioso. Como o vai conseguir?
A equipa do PNL é a que trabalha nas instalações centrais, não tem agentes no terreno. Vamos trabalhar com parceiros locais: municípios, associações culturais locais, entidades sociais, até com empresas com responsabilidade social. O que não queremos é propor ideias que tenhamos aqui e que, depois, não se adequam às necessidades e aos contextos. Não pode ser uma ideia brilhante que parte do centro. Estamos a iniciar trabalhos com esses parceiros para perceber quais são as necessidades, o que se adequa. Não temos um projeto para o País todo; temos projetos que são distintos e ajustados a cada realidade.
Essas áreas geográficas estão já identificadas?
Algumas sim, mas ainda estamos no início. Apostamos num trabalho cuidado, monitorizado, sem medo de recuar, se não estiver a funcionar, e sem receio de começar de novo, se for preciso. Preferimos não anunciar que vamos mudar o mundo em dois dias – queremos fazer um trabalho que cresça paulatinamente e que tenha sempre a preocupação de ser eficaz para o público a quem se destina.
Como se leva alguém a ler?
Há várias formas. Diria que o principal é tentarmos conhecer a pessoa; caso contrário, corremos o risco de sugerir um livro que é extraordinariamente bom para nós, mas que não lhe diz nada. Há sempre um livro que nos torna leitores. É aquele que não se consegue parar de ler e que, no fim, provoca uma sensação gratificante, que vamos querer voltar a sentir. Se conseguirmos proporcionar esse encontro certo com o livro certo, a pessoa terá vontade de ler mais.
Esse é um trabalho microscópico.
Sim, mas é possível criar algumas regras, estabelecer perfis de leitor. Há níveis de competência de leitura que fazem com que uma pessoa que está a iniciar o seu percurso na leitura (que nada tem que ver com a idade, pode ser um adulto) prefira um livro em que se identifica com a personagem principal, com os seus problemas, e que prefira uma história com poucas linhas narrativas, poucas personagens, uma estrutura clara e transparente. Isto já nos permite criar algumas regras. O nível de complexidade que o leitor aceita vai aumentando à medida que progride. Por exemplo, um leitor com pouca experiência de leitura recusa um fim aberto; já outro mais proficiente aceita que tenha de ser ele a construir o fim para a história. Temos muitos dados da investigação que podemos usar para proporcionar às pessoas experiências mais individualizadas.
Um estudo do Instituto de Ciências Sociais indica que 61% dos portugueses não leram qualquer livro impresso em 2020. Em Espanha, a percentagem foi de 38%. Há algo que o PNL possa fazer, em termos massivos, para combater este atraso?
É sempre difícil inverter uma tendência cultural de um país, mas creio que há algumas medidas. Estamos a preparar uma biblioteca digital gratuita, financiada por fundos do PRR, com um sistema de Inteligência Artificial que dialoga com o leitor para lhe definir o tal perfil e, a partir dele, fazer sugestões personalizadas, acreditando que, se a pessoa tiver a tal experiência gratificante, vai associar a leitura à gratificação e começar a dedicar-lhe mais tempo. Em parceria com a Universidade Nova de Lisboa e financiado pelo programa Horizon, temos outro projeto, o iRead4skills, cujo objetivo é, recorrendo também à Inteligência Artificial, ajudar a melhorar os baixos níveis de literacia dos adultos. Estes serão sempre leitores mais reticentes. Ler é semelhante a fazer desporto: se somos maus, desistimos. Há uma barreira técnica inicial que tem de ser vencida, a pessoa tem de ter algum conforto a ler para, depois, conseguir ter prazer no que lê. O projeto está desenvolvido de forma a tornar os textos mais acessíveis, para as pessoas conseguirem avançar na complexidade da leitura e melhorar a sua literacia.
Porque é importante sermos capazes de ler um texto complexo?
Por um lado, é a nossa própria competência de fazer inferências, de comparar, contrastar, de tirar conclusões, de tentar resolver os problemas que a intriga nos coloca, que se vai desenvolvendo, porque a literatura nos desafia a isso; e, por outro, permite-nos aceder a um mundo mais rico, mais poético, mais colorido, com níveis de sentido vários, e não apenas ao sentido literal. O mundo real não tem uma única dimensão. Quando olhamos para uma paisagem, vemos muitos níveis de complexidade: a folha, a árvore, a sombra que a árvore nos faz, a floresta – e também temos de conseguir fazer isso quando lemos um livro.
Voltemos aos 61% de portugueses que, em 2020, não leram um livro. O que falhou para, quase 50 anos depois do 25 de Abril, termos números tão maus?
Não creio que tenhamos falhado. Herdámos da ditadura um País com níveis de literacia baixíssimos. Em 1900, a Finlândia tinha 90 e tal por cento da população letrada. Os finlandeses aprendiam a ler para lerem a Bíblia em casa, em família. Estou a falar de famílias de todos os estratos sociais. Era habitual as pessoas lerem em casa, em voz alta, uns para os outros – e isto não era uma prática nossa. Nós temos uma tradição da Bíblia lida em latim e pelo padre. Portanto, há logo aqui uma relação com o texto que vem de séculos, difícil de recuperar. Mas eu sou muito positiva, não acho nada que estejamos mal. Temos feito um caminho excecional.
A sua tese de doutoramento é sobre o ensino da literatura nas escolas. O que poderia ser melhorado nesse domínio?
Precisamos de investir muito na didática da literatura, que convoca conhecimentos de muitas áreas: teoria literária, estudos linguísticos, psicologia, filosofia, história da leitura. A escola tem a missão de ensinar instrumentos de análise do texto literário, preparar os alunos para compreender o que estão a ler. Trata-se de uma missão difícil, pesada, porque exige muitos anos das tais competências cada vez mais complexas, com linguagem mais técnica. É como na Ciência: os meninos aprendem sobre o Meio Ambiente na primária e, no 12º ano, são capazes de usar um vocabulário técnico enorme em Biologia. Mas, às vezes, esse processo de aprendizagem deixa pouca margem para leituras mais pessoais. Muitos professores não assumem um espaço de liberdade de que dispõem, que permitiria aos alunos falar à vontade sobre os livros de que gostam, sobre aqueles de que não gostam, para poderem dizer que desistiram de um livro porque não tem nada que ver com eles. Tudo isto é legítimo, é sinal de um leitor autónomo. São os tais leitores para a vida. Todos temos de ser capazes de ter uma opinião sobre os livros que lemos, e de a verbalizar sem vergonha.
Os livros de leitura obrigatória não são, então, uma boa estratégia para formar leitores?
Os livros de leitura obrigatória são necessários. Há um capital cultural do País que temos a obrigação de transmitir aos alunos. Todos os países o fazem, com diferentes abordagens e de diferentes formas. Repare: a escola pública tem este grande papel de proporcionar uma educação equitativa a todos. Se não transmitirmos este capital cultural, há pessoas que terão acesso a ele e outras, não. Portanto, os livros de leitura obrigatória são necessários, mas eu diria que há espaço para outras leituras. O cânone não tem de tomar todo o tempo das aulas. Há leituras riquíssimas, algumas publicadas agora, que o podem acompanhar. A Olga Tokarczuk, por exemplo, tem um livro excecional passado num ambiente rural e muito pequeno. É fascinante comparar como ela e o Eça olham para a relação entre as pessoas neste meio.
Que livros tem, neste momento, na mesinha de cabeceira?
Não sou daquelas pessoas que leem vários livros ao mesmo tempo. Tendo a ler um livro, acabá-lo e começar outro. Desisto de alguns sem problemas de consciência, não faço fretes. Leio mais de 100 livros por ano. Agora, estou a ler A Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery. É hilariante, porque brinca com imprevistos, com os disparates que fazemos ao etiquetar as pessoas ou ao colocá-las em gavetas.
Como escolhe os livros que lê?
De muitas maneiras. Pode ser numa livraria. Procuro sugestões em jornais, em revistas literárias e no Goodreads. Há uma fonte segura que uso quando estou preguiçosa: a lista do Man Booker Prize. Além disso, falo com amigos. Um dos livros do top 5 da minha vida, The Garden of Evening Mists, de um escritor da Malásia, Tan Twan Eng, foi-me sugerido por um holandês que não tem nada que ver com a área da leitura, é gestor de projeto.
Quais são os outros quatro livros do seu top?
A Jangada de Pedra, um livro pouco amado do Saramago, que considero lindíssimo. Memórias de Adriano, da Yourcenar. O Senhor dos Anéis foi o primeiro a entrar para a lista, aos 15 anos. Hesito entre alguns da América do Sul, mas talvez Cem Anos de Solidão, do García Márquez.