Em investigações anteriores, Riccardo Marchi deparou-se com a rejeição dos intelectuais ligados à direita tradicional portuguesa em relação ao populismo do Chega. Evocando o convívio com o populismo na sua Itália natal, ainda durante a sua juventude, o historiador e politólogo, a residir em Portugal há 20 anos, seria surpreendido por essas reações, dedicando-se a fundo a refletir sobre o fenómeno. No livro A Bolha – Uma Direita Antipopulista (Edições 70, 238 págs., €17,90), Marchi reúne conclusões sobre esta oposição entre duas formas de fazer política.
No livro A Bolha – Uma Direita Antipopulista, aborda a forma como a maioria dos intelectuais da direita portuguesa se distanciou do populismo do Chega. Como surgiu o interesse nesta questão?
Quando estava a fazer investigação para o livro A Nova Direita Anti-Sistema: O Caso do Chega, cruzei-me com os principais opinion makers portugueses de direita e reparei imediatamente que todos tinham uma postura muito antipopulismo e anti-Chega. Na altura, confesso, estranhei. Vivi o surgimento do populismo em Itália, com o aparecimento do telepopulismo de Berlusconi, da Liga Norte ou da Aliança Nacional, e, na época, os opinion makers italianos de direita dividiram-se: uns suportavam aqueles movimentos, outros não; mas nunca foi criada esta “cerca sanitária” como existe em relação ao Chega, em Portugal. Achei que era um tema que me interessava. Numa primeira abordagem, de forma superficial, achava que estes comentadores políticos, com presença de relevo nos média, tinham receio de serem conotados com um partido demonizado pelo meio cultural nacional. Depois, com a investigação, modifiquei esta resposta final e penso que a conclusão mais importante d’ A Bolha – Uma Direita Antipopulista é que esta rejeição tem, de facto, bases bastante sólidas.
Essa rejeição pode estar ligada a um “complexo de culpa” da direita em relação ao Estado Novo?
Não creio. O que caracteriza esta geração de intelectuais de direita, notada a partir de meados dos anos 80 – como Rui Ramos, Vasco Rato ou Luciano Amaral, etc… –, é que são pessoas que tinham entrado na política, precisamente, para afirmarem uma direita distante do Estado Novo, sem esse “peso”. Quando surge o populismo do Chega, “caceteiro”, que fala de lei e ordem, de castração química, de prisão perpétua, que se designa, em ciência política, como bastante autoritário, a direita intelectual não se identifica. Considera, aliás, que este é o género de direita que interessa à esquerda, pois permite fazer essa ligação entre Chega e antigo regime. Para um grupo de intelectuais que, durante anos, tinha andado a “libertar” a direita desse rótulo, colado pela esquerda, este não é o caminho.
Mas estas divergências são mais uma questão de forma ou de conteúdo?
Diria mais de forma, porque muitos dos temas que André Ventura trouxe para o debate político já existiam dentro da direita mainstream (liberal e conservadora). Simplesmente, não eram mencionados publicamente, porque os políticos sabiam que eram melindrosos e que podiam torná-los alvos da esquerda. A questão islâmica, por exemplo: muitos dos intelectuais de direita não têm dúvidas de que existe uma hierarquia entre culturas, ou seja, que a cultura liberal ocidental, em termos de defesa dos direitos individuais, é melhor do que a islâmica. Mas não utilizam este argumento, pois sabem que seriam imediatamente acusados de racismo. Ventura faz exatamente o oposto; pensa: “Os intelectuais de direita não falam disto por causa do ‘politicamente correto’. Então, eu falo, porque abre as primeiras páginas dos jornais e permite captar o eleitorado farto do ‘politicamente correto’.”
Concorda, então, que o populismo não chegou a Portugal apenas com o Chega, mas que já tinha sido usado por outros políticos considerados moderados?
Ventura quis construir um partido que “agarrava” os temas disruptivos que não eram incluídos na agenda política portuguesa. Isso não é algo novo. Já tivemos outros casos, como a fase populista de Paulo Portas, nos princípios de 2000, em que Portas quis ser a voz do povo contra o sistema. Tinha um discurso contra a subsidiodependência, mas, depois, recuou, ao aperceber-se de que as desvantagens começavam a ser maiores do que as vantagens. Ventura faz exatamente o contrário: a estratégia funciona, e ele continua.
Como se explica esta diferença de reação, no seio da direita, entre o populismo de Portas (e outros) e o de Ventura?
Os discursos populistas dos políticos portugueses foram sempre contingentes e episódicos. Ventura, pelo contrário, decide fundar o Chega precisamente com um discurso antissistema. E ainda aproveita para conquistar espaço graças a uma grande crise à direita: com o desaparecimento do CDS, o enfraquecimento do PSD (devido à estratégia centrista de Rui Rio), com o aparecimento de um novo ator de direita, a Iniciativa Liberal, que nem sequer se posiciona claramente à direita… Estes fatores permitem que, em apenas três anos, o partido cresça de um para 12 deputados.
Esse crescimento “obriga” a direita tradicional a, mais cedo ou mais tarde, fazer acordos com o Chega para regressar ao poder?
Se a dinâmica de reconfiguração da direita portuguesa continuar desta forma, com a consolidação e o crescimento do Chega (e também da Iniciativa Liberal), todos os partidos de direita estão condenados a sentar-se à mesa para conversar com o Chega. Nem faria sentido não o fazerem, até porque o Chega não é um partido como o Aurora Dourada da Grécia, de cariz neonazi… Em toda a Europa, os partidos desta nova direita populista, quando têm percentagens de votos significativas, são incluídos em fórmulas de governo pelos partidos de centro-direita.
Não acho que o discurso racista, xenófobo ou homofóbico esteja a aumentar em Portugal. Não me parece que o Chega esteja a ter esse impacto. O que aconteceu é que, em Portugal, se passou a falar de determinados temas
O partido de referência da direita portuguesa, o PSD, tem agora nova liderança, com Luís Montenegro. Isso pode alterar esse cenário?
O partido de referência, sozinho, não vai a lado nenhum. Não há nenhum indicador que nos diga que, a médio prazo, o PSD de Montenegro consiga, mesmo acompanhado pela Iniciativa Liberal, conquistar o poder. Sinceramente, também não estou a ver o PSD a renunciar, sine die, a ser governo apenas porque decidiu criar “cercas sanitárias” em relação a um parceiro. O facto de Ventura ter entrado no Parlamento há três anos e de a direita portuguesa ainda não se ter sentado a conversar é que, para mim, é muito estranho.
A oposição ao Chega existe, à partida, por um motivo: o populismo não põe em risco a democracia?
Não. Nos últimos 30 anos, na Europa ocidental, muitos partidos da direita radical já participaram em parlamentos e governos, tornando-se atores fundamentais das democracias liberais… E as democracias estão aí!
Isso significa que os partidos populistas e radicais, quando chegam ao poder, se adaptam à democracia?
Essa é uma das polémicas que tenho com os meus colegas. Estes partidos não se adaptam à democracia porque, na verdade, já nasceram democráticos. Ventura construiu o Chega com pessoas que saíram do PSD ou do CDS. O Chega não quer acabar com os pilares das democracias ocidentais. Se dissermos que parte do eleitorado de esquerda acredita que o Chega quer impor um regime autoritário, sim, isso é verdade. Agora, a direita portuguesa achar que o Chega quer impor um regime salazarista… isso não.
Santana Lopes recebeu recentemente uma comitiva do Chega liderada por André Ventura na câmara da Figueira da Foz. Isso não poderá ser um sinal de aproximação das direitas?
Santana Lopes pode dizer que é uma obrigação institucional receber a comitiva de um partido com representação parlamentar, mas é um político realista, e o Chega, neste momento, com estas percentagens, é indispensável para uma eventual alternativa de poder ao socialismo. E acredito que Santana Lopes não hesitaria em contar com o Chega para encontrar uma alternativa de poder ao PS.
Perante este cenário, os intelectuais de direita não podem alterar a sua postura de oposição ao Chega?
Não creio que mudem. Estes intelectuais têm uma ideia clara: o estilo do Chega e de Ventura não é o nosso. Falamos de pessoas que só estão disponíveis para chegar ao poder de determinada forma e representando apenas determinado tipo de direita. Mantêm-se fiéis à ideia da direita mainstream – social-democrata do PSD, conservadora do CDS, caso o partido consiga regressar ao Parlamento, e liberal da Iniciativa Liberal. É apenas com estes projetos políticos que admitem construir uma alternativa ao socialismo, e até consideram que o populismo de direita não serve para nada e só prejudica a própria direita.
Entre as muitas críticas apontadas ao Chega está o facto de o discurso de Ventura poder contribuir para normalizar o discurso racista, xenófobo e homofóbico em Portugal. Concorda?
Francamente, não acho que o discurso racista, xenófobo ou homofóbico esteja a aumentar em Portugal. Não me parece que o Chega esteja a ter esse impacto. O que aconteceu é que, em Portugal, se passou a falar de determinados temas, e esse até é um dos efeitos positivos do surgimento do populismo de direita. Por exemplo, não se falava da questão étnica, que foi introduzida, e bem, por um movimento social de afrodescendentes. O que fez o Chega? Criou um antimovimento social para contestar a narrativa que defende que, em Portugal, existe racismo estrutural e institucional. Penso que esta divergência de pontos de vista é boa para a democracia, pois contribui para um debate que a torna mais viva.
Em 2015, tivemos uma solução política inédita no País, com a Geringonça, que uniu PS a BE e PCP. A posição do PCP em relação à guerra na Ucrânia, muito criticada em Portugal, pode favorecer a aproximação entre a direita tradicional e o Chega?
A política internacional é um ponto a favor de uma eventual aproximação futura dos partidos de centro-direita ao Chega porque, nesta matéria, o partido de Ventura está totalmente alinhado na tradição da direita portuguesa: atlantismo, ocidentalismo e europeísmo antifederalista. A questão ucraniana é um “às” na manga do Chega para se legitimar no centro-direita e atacar o extremismo da esquerda (BE e PCP), e acusar o PS de irresponsabilidade. Mas não creio que a posição do PCP em relação à guerra facilite a aproximação do centro-direita ao Chega. Simplesmente, é irrelevante. A política internacional não costuma ter grandes repercussões nas dinâmicas internas entre partidos.
Posso concluir que considera que é muito mais o que une do que aquilo que separa os partidos da direita portuguesa?
É, sobretudo, importante concluir que a chegada à política portuguesa do Chega e da Iniciativa Liberal foi positiva. Estávamos habituados aos mesmos atores e à mesma agenda desde 1974. Os tempos mudam, e estas forças ajudaram a que a direita se confrontasse internamente com outros temas. O Chega obriga a ala mais conservadora do PSD a falar de certas questões. Nos costumes, parte da Iniciativa Liberal é oposta ao Chega, mas existe uma ala conservadora dentro do partido que, pelo contrário, tem visões próximas das do Chega. Na parte económica, a Iniciativa Liberal até é muito próxima do Chega. Isto só prova que há ligações e que há margem para a direita portuguesa se sentar à mesa para discutir um programa político comum.