Vive em Portugal há 12 anos e, confessa, ainda não encontrou razões suficientes para regressar aos Estados Unidos da América. Natural de Nova Jérsia, o neurocientista computacional Joe Paton, 42 anos, além de diretor do Programa de Neurociência da Fundação Champalimaud, coordena uma equipa de cientistas que investiga a forma como o cérebro perceciona o tempo e o seu impacto na aprendizagem das relações de causa e efeito. Compreende que a sociedade possa ter medo da Inteligência Artificial e defende que pode ser necessário introduzir princípios éticos nos algoritmos. À VISÃO, o norte-americano desvenda por que razão o tempo parece passar mais depressa à medida que envelhecemos.
Há muitos mitos acerca do cérebro. Qual deles gostaria de desfazer?
Um mito muito comum é o de que apenas usamos uma pequena fração do cérebro, o que é absolutamente falso. Dependendo das características de um ambiente particular, e das tarefas que são exigidas a um indivíduo, diferentes circuitos cerebrais podem ser ativados, mas isso não é o mesmo que dizer que apenas usamos 10% do cérebro.
Às vezes sentimos que o tempo voa, noutras parece que os minutos não passam. Porquê?
Imagine que está num primeiro encontro muito entusiasmante. Provavelmente, os seus neurónios de dopamina estão mais ativos e, quando olha para o relógio, percebe que já passou meia hora, quando lhe parecia que só estavam a conversar há cinco minutos. Por que razão é que isto pode ser útil? A vida é uma sucessão de decisões que consistem em continuar a fazer a mesma coisa ou em ir desempenhar outra tarefa. Se uma atividade é realmente compensadora, talvez uma das formas de o cérebro conseguir que continuemos a desempenhá-la seja fazer-nos acreditar que passou pouco tempo desde que a iniciámos.
As expectativas influenciam a forma como percecionamos o tempo?
Sim, claro. Foram escritos muitos artigos ao longo deste ano sobre a forma como o nosso sentido de tempo foi alterado por todas as mudanças provocadas pela pandemia. Algumas pessoas sentem que o tempo parou, enquanto outras sentem que tudo isto começou há anos.
A que se devem essas perceções tão diferentes?
Depende da forma como o seu comportamento se desviou ou não do padrão habitual. Se experienciaram muitas mudanças, é provável que pensem que já passou muito tempo porque um dos indicadores da passagem do tempo é a forma como as coisas mudam.
É por isso que o tempo parece passar mais depressa à medida que envelhecemos?
Quando somos crianças, cada ano é uma fração relativamente grande de toda a nossa experiência. À medida que envelhecemos, um ano é uma fração cada vez mais pequena da nossa vida. Ao mesmo tempo, também não criamos tantas novas memórias, cada novo momento é apenas uma variação ligeira do que já experienciámos antes. É bastante contraintuitivo porque pensamos que passou pouco tempo, mas o mundo parece estar a voar à nossa volta.
Isso é ligeiramente deprimente…
[Risos.] Sim, sinto o mesmo, mas depois olho para os meus filhos e penso que, pelo menos para eles, o tempo ainda passa mais devagar.
O tempo também desempenha um papel importante na aprendizagem?
Claro. Como é que eu sei que um determinado evento permite prever um acontecimento com significado para mim? É a relação temporal entre esse palpite potencialmente preditivo e o seu resultado que define se existe uma relação causal ou não.
Estamos sujeitos a tantos estímulos, que o cérebro desenvolveu mecanismos para aprender a selecionar aqueles que merecem atenção?
Sim. O cérebro tem de distinguir os estímulos que permitem prever um determinado acontecimento e, depois, usar essa informação para adaptar o nosso comportamento. A forma como o cérebro lida com o tempo é fundamental para conseguirmos resolver esse problema.
É por isso que temos o chamado relógio biológico?
Quando as pessoas falam em relógio biológico referem-se, muitas vezes, aos mecanismos circadianos [ciclo biológico de 24 horas], mas há muitos “relógios” no cérebro feitos à medida de diferentes funções. Quando tentamos localizar de onde veio um som no espaço, por exemplo, podemos avaliar a diferença do tempo que o áudio demorou a chegar aos nossos dois ouvidos.
Estes “relógios” permitem-nos prever determinados acontecimentos?
Sim, nós fazemo-lo naturalmente a toda a hora. Estamos parados num semáforo e prevemos que vai ficar verde, vamos lá fora e está nublado e prevemos que há a possibilidade de chover… É útil prever o que vai acontecer para podermos preparar-nos e para nos comportarmos da forma mais vantajosa.
O cérebro faz uma associação entre as nossas escolhas e as suas consequências, mas isso não nos impede de tomar más decisões…
Ser capaz de avaliar possíveis consequências, a curto ou a longo prazo, é importante quando pensamos em boas e más decisões. Podemos dizer que as pessoas muito impulsivas tomam más decisões ou podemos dizer que tomam decisões que favorecem a sua gratificação imediata. A mesma decisão pode ser boa ou má, dependendo do que o indivíduo pretende otimizar.
Levanta muitas questões éticas julgar o que são boas ou más decisões…
Sim, essa é uma questão com a qual os tribunais já lidam há algum tempo, por exemplo, quando descobrem que uma pessoa fez algo ilegal, mas que sofre de algum tipo de disfunção cerebral, o que a torna menos responsabilizável pelos seus atos. Obviamente, as pessoas devem ser responsabilizadas pelo seu comportamento mas, quando percebemos que os seus genes podem torná-las mais suscetíveis a coisas como o abuso de drogas, torna-se muito mais cinzenta a determinação da sua responsabilidade. Estas são algumas das questões com as quais vamos ter de lidar à medida que aprendermos mais sobre a base biológica do nosso comportamento.
Conhecer os circuitos cerebrais por detrás dos nossos comportamentos também poderá permitir encontrar tratamentos para doenças neurodegenerativas?
Sim, os circuitos e os neurónios que são críticos quando um animal precisa de suprimir a ação tornam-se anormalmente ativos numa doença como Parkinson, já na doença de Huntington estas células são perdidas precocemente. Conhecer os circuitos responsáveis por suprimir e controlar o movimento pode ter uma grande relevância na compreensão destas doenças. Agora, as pessoas pensam que a razão para financiar a Ciência é tentar curar doenças mas, embora esse seja um benefício potencial, há uma importância muito mais geral do apoio à investigação. Se olharmos para a história da medicina, a pesquisa que levou à descoberta de um determinado tratamento médico pode não ter tido nada que ver com esse domínio em particular. Ao mesmo tempo, compreender os mecanismos da inteligência natural também pode beneficiar a maneira como desenhamos a próxima geração de algoritmos de Inteligência Artificial.
O que distingue a forma como o cérebro e um computador fazem cálculos?
Um computador tem um determinado conjunto de sensores, como o teclado, o rato ou a câmara de filmar, e alimenta-se dos inputs que recebe através deles, seguindo fielmente as instruções que um programador inscreveu no seu software. O cérebro tem uma variedade muito grande de sensores e tem de inferir o que se passa ao seu redor tendo em conta todos os estímulos que recebe e toda a sua experiência e, depois, usa-os para guiar o seu comportamento. Os cérebros estão integrados num organismo que tem de controlar um corpo com determinadas necessidades, como comer, reproduzir-se, evitar predadores… Em geral, o computador é um “escravo” passivo, faz aquilo que lhe dissermos para fazer, de acordo com as regras definidas pelos programadores.
Algum dia as máquinas vão ultrapassar a inteligência dos humanos?
Acredito na possibilidade de as máquinas ultrapassarem a inteligência humana. Penso que teremos de refletir profundamente acerca da aceleração da capacidade da Inteligência Artificial. Qualquer nova ferramenta pode ser usada para o bem e para o mal e vamos confrontar-nos com algumas questões éticas complicadas. O nosso sentido de moral foi sendo construído ao longo da evolução, tivemos de pensar no impacto do nosso comportamento nas outras pessoas e desenvolvemos coisas como as emoções e a ética; podemos ter de pensar em como incorporar esse tipo de princípios em agentes artificiais.
Como se incorpora a ética na Inteligência Artificial?
Não há uma resposta fácil a essa pergunta. Os algoritmos são treinados com imensos dados e o tipo de dados a que temos acesso ou aqueles que escolhemos ou não recolher podem introduzir preconceitos no processo de tomada de decisão de um algoritmo de Inteligência Artificial. Será necessária uma grande supervisão por parte dos seres humanos porque eles estarão muito mais conscientes do tipo de preconceitos que podem ser incorporados na Inteligência Artificial.
Por vezes, dizemos que as máquinas nunca conseguirão ultrapassar os humanos porque não têm sentimentos, mas não serão os sentimentos uma desvantagem competitiva, em termos de sobrevivência?
[Longa pausa.] Depende do objetivo que definimos. As emoções derivam de uma série de sistemas no cérebro e no corpo que regulam coisas como o comportamento de fuga ou a sensação de familiaridade e também servem de sinal para os outros, socialmente. Por isso, dependendo do objetivo, as emoções podem ou não ser uma desvantagem. Há uma componente social das emoções que foi muito importante para o desenvolvimento e para a sobrevivência da espécie. Não creio que as emoções sejam necessariamente uma desvantagem ou elas não se teriam desenvolvido.
São importantes no nosso processo de tomada de decisão…
Sim, e nas nossas interações sociais. Somos uma espécie gregária, tal como muitas outras, e isso trouxe-nos vantagens. Se o que queremos é que a Inteligência Artificial atinja um único objetivo, como ganhar dinheiro, se calhar, as emoções são uma desvantagem. Mas o cérebro não evoluiu no sentido de ter um único objetivo, evoluiu no sentido de garantir a sobrevivência da espécie.
É compreensível que as pessoas tenham medo da Inteligência Artificial?
Existem algumas visões motivadas pela cultura popular, como os filmes do Exterminador, que incutem medos, mas tenho esperança de que consigamos anular alguns deles. Por enquanto, estamos muito longe desse tipo de coisas. Porém, acredito que existem problemas mais imediatos relacionados com a Inteligência Artificial.
Por exemplo?
Digamos que treinamos um agente artificial para analisar currículos, a forma como o ensinamos é baseada numa série de dados históricos que contêm todos os preconceitos manifestados pelos seres humanos. Nós devemos tentar corrigir isso, devemos ser mais objetivos e mais meritocráticos, ou o agente artificial vai perpetuar todas essas injustiças. É de questões como esta que precisamos de estar conscientes.
Como vê a eleição de Joe Biden?
Estou muito esperançoso de que represente uma mudança para melhor, não só nos EUA, mas também no mundo. Quando a pandemia chegou, diferentes países ouviram cientistas e especialistas em saúde pública para tomarem decisões. Nos EUA, nem sempre foi esse o caso. Espero que a administração Biden represente um regresso a esse tipo de valores. A Ciência é apenas uma forma de compreender o mundo, baseada em dados e na razão, não deveria ser partidarizada e, ainda assim, no mundo estranho de hoje, isso acontece. E é destrutivo.