Neste momento, Thomas Hughes, 43 anos, deveria estar em Portugal, para receber das mãos do Presidente da República o prémio Gulbenkian de Direitos Humanos, no valor de €100 mil, atribuído à organização que dirige – a Artigo 19 (uma referência ao artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem) – mas não está. Sente-se desolado, diz, por telefone, a partir da sede em Londres, por a sua vida não lhe permitir marcar presença na cerimónia desta sexta-feira, dia 20, em Lisboa. Até porque, apesar de ser considerada uma organização líder no que toca à defesa da liberdade de expressão e dos direitos humanos, só tinha recebido prémios mais locais e relacionados com organizações de jornalistas. “Nenhum como este”, nota o diretor da organização não governamental, “especialmente do ponto de vista monetário”. Pegamos nessa deixa e é por aí que começamos com as perguntas.
Já pensaram onde aplicar estes €100 mil do prémio?
Primeiro, temos de receber o dinheiro [risos], mas este será usado para o nosso trabalho de defesa da liberdade de expressão à volta do mundo e também representará um benefício para as pessoas que queremos apoiar. Para uma organização com um orçamento anual de €11 milhões, constituirá certamente uma excelente ajuda.
A Artigo 19 não opera em Portugal. Isso significa que não precisamos de ajuda no que toca à liberdade de expressão?
Trabalhamos em alguns países europeus, como o Reino Unido ou a Alemanha, onde nos focamos mais na parte legislativa, mas também na Hungria e na Polónia. No entanto, a Europa não é, realmente, a nossa maior preocupação, por isso temos presença mais forte na América do Sul, em África e na Ásia. À medida que o mundo se transforma, estamos a envolver-nos em outras regiões, como os EUA.
Têm escritórios em dez países. Porquê nesses e não noutros – são os que estão mais em perigo?
São aqueles em que investimos a longo prazo, locais onde há trabalho a fazer, mas que funcionam, ao mesmo tempo, como uma plataforma de compromisso para toda a região onde estão inseridos. Por exemplo: estando no México, atingimos a América Central; no Brasil, chegamos à América Latina; o Senegal faz ponte para a África Ocidental e o Quénia para a outra costa desse continente. Com esta estratégia, conseguimos ser influentes em cerca de 35 países. Trata-se de uma combinação de necessidades com potencial de impacto.
Estão a pensar expandir essa rede?
Abrimos recentemente um escritório em Nova Iorque e outro em Washington, para tratar das questões das Nações Unidas, com quem estamos bastante envolvidos. Também vamos inaugurar outro na Holanda, para garantir o nosso compromisso com a União Europeia e para influenciar a legislação – estamos preocupados com o Brexit.
A Artigo 19 nasceu em 1987. Houve alguma razão para ela surgir nessa altura?
Quando a Declaração Universal dos Direitos do Homem foi assinada, em 1948, centrou-se numa série de direitos humanos, especialmente na questão da pena de morte, dependendo em grande parte da Amnistia Internacional. Passados alguns anos, começou a pensar-se na criação de associações mais pequenas e mais específicas. Fazemos parte dessa segunda geração, focada em direitos individuais.
Como vê o mundo, passados quase 30 anos da fundação da Artigo 19?
Mudou tanto… E os nossos campos de influência também – agora preocupam-nos os atentados ao protesto, a discriminação, a privacidade e o acesso à informação, só para citar alguns exemplos.
Começaram centrados na garantia da liberdade de expressão e, depois, sentiram necessidade de alargar a vossa esfera de ação. Porquê?
Progressivamente, verificámos como a liberdade de expressão e de informação tem impacto noutras áreas e, ao mesmo tempo, sofre o impacto dessas outras áreas.
Contribuíram para que o mundo fosse um lugar melhor?
Queremos acreditar que sim. Ajudámos a criar legislação nacional, defendemos a liberdade de imprensa em vários países onde ela estava ameaçada. Achamos, por isso, que contribuímos para que a liberdade de expressão seja mais bem compreendida e protegida. Porém, a luta é constante. Às vezes, países onde atuamos há anos têm retrocessos, outros melhoram quando elegem um Governo mais progressivo… Continuo otimista: vamos ganhar esta batalha, apesar da corrupção e do enfraquecimento das instituições democratas.
Como operam no terreno?
Recebemos fundos, especialmente de agências de desenvolvimento com sede na Suécia, na Holanda, no Canadá e nos EUA. Usamos esses fundos para desenvolver projetos no terreno, nos países onde trabalhamos. E esses projetos podem passar por “treinar” jornalistas, garantir que eles estão mais seguros, tratar com organizações locais questões de saúde ou de cuidados infantis. Também estamos atentos aos direitos digitais, ao acesso à internet, a proteger a comunidade LGBTI, as pessoas com deficiência, mulheres ou qualquer grupo que esteja vulnerável. Não esquecemos os discursos de ódio, a legislação para condená-los e a defesa dos protestos como forma de expressão.
Como definem os locais onde atuar?
Temos uma estratégia global, que chamamos expression agenda, e é ela que define onde atuamos e as grandes mudanças que queremos ver no mundo. No entanto, a decisão de ir para um país e não outro é tomada a nível regional e definida pela necessidade e pelo impacto que pode ter. A cada dois anos, olhamos para esses objetivos e renovamo-los, embora eu acredite em compromissos de longa duração.
Que países estão a evoluir positivamente nas áreas em que estão envolvidos?
Diria que a Malásia, a Gâmbia e o México, depois das eleições. No outro extremo, falaria no Irão, na Rússia, na Turquia e no Myanmar. E nos Estados Unidos da América, que são um novo país para nós.
Pensa que a Administração Trump é a responsável pela decadência das condições de liberdade dos jornalistas norte-americanos?
Não. O empurrão contra a Imprensa vem do tempo de Obama. Houve um retrocesso na forma como passaram a perseguir os denunciantes, e o direito à informação começou a ficar minado. Claro que agora tudo está a acontecer de forma massivamente acelerada e a liberdade de expressão está a ser afetada brutalmente nos EUA. Ainda estamos apenas a observar, porque sabemos que os média norte- -americanos são vibrantes e era preciso muito para fechar a Imprensa livre.
Agora que os EUA deixaram o Conselho dos Direitos Humanos da ONU, só se pode esperar que as coisas piorem?
Tenho de admitir que não é um bom sinal. A forma como saíram foi mesmo muito feia, acusando uma série de organizações de minarem a intenção de reformar o conselho, incluindo nós.
O que alegaram para vos acusar?
Recebemos uma carta, dizendo que éramos responsáveis pela saída deles, e isto só porque nos opusemos ao tipo de reforma que queriam levar a cabo, pois achámos que seria muito prejudicial à defesa dos direitos humanos.
Nesta era de fake news, concorda que a missão dos jornalistas se torna ainda mais importante?
Absolutamente. Note-se, no entanto, que não existem fake news, mas desinformação e propaganda. Para Donald Trump, fake news são aquelas notícias que não saem como ele gostaria, em que a interpretação difere do que ele considera correto. Mas, atenção, há muitos políticos que tendem a ter a mesma opinião, ou seja, a ficarem zangados porque discordam da perspetiva dada pelos jornalistas.
O que pensa das redes sociais e do que elas têm feito ao jornalismo e à maneira de as pessoas se informarem?
Temos de perceber que a sustentabilidade do modelo dos média, particularmente no que se refere à publicidade, já não funciona. Há que encontrar outras formas de financiamento, e essas têm de basear-se na confiança. Acho que os leitores percebem que os meios de comunicação fornecem um tipo diferente de informação, com mais qualidade, mas precisamos de uma estrutura de autorregulação, algo como um conselho independente, para os conteúdos das redes sociais. Existem muitas questões no ar – estamos a lidar com uma quantidade enorme de informação e de algoritmos, os quais fazem na seleção baseada ninguém sabe muito bem em quê.
Porque diz que a liberdade nos média está nos seus níveis mais baixos desde 2006?
Todos os anos, medimos, com centenas de académicos de todo o mundo, diversas variáveis, como a transparência ou a proteção, que nos dão os níveis de liberdade de cada país.
Esse decréscimo é geral ou trata-se de uma média?
É uma média, pois alguns países até estão a melhorar.
Quais?
A Tunísia, por exemplo, tem melhorado imenso.
Qual é o mais mal classificado?
A Coreia do Norte, sem margem para dúvidas. Depois vem a Síria, o Paquistão, enfim, os óbvios.
E nos melhores, também não há surpresas?
Em 2016, estavam no topo a Suíça, a Dinamarca, a Noruega, a França, a Costa Rica, curiosamente, e Portugal.
O ano passado ficou para a História como o menos mortífero dos últimos 14 anos, no que diz respeito aos jornalistas no decorrer da sua profissão. Estamos perante uma boa notícia, apesar de ainda ter havido 65 mortes?
Qualquer notícia que registe menos jornalistas mortos tem de ser uma boa notícia – e esta está relacionada com o facto de, no ano passado, ter havido menos conflitos armados a serem cobertos. Mas não podemos esquecer–nos de que as ameaças – digitais, físicas ou legais – de que os jornalistas são alvo têm vindo a aumentar e a espalhar-se para outros países. Ou seja: não me parece que esse número reflita um mundo mais seguro para estes profissionais.
Porque estão tão preocupados com o direito ao protesto, atualmente?
O direito ao protesto não existe, mas existe o direito de reunião e de associação. E esse tem vindo a ser violado em vários países, através de restrições de financiamento, por exemplo. Temos também vindo a assistir a algumas proibições de governos em relação a protestos, como quando não permitem que as pessoas cubram os rostos, dificultam a autorização ou até criam áreas onde as manifestações não podem ocorrer. O espaço para protestar está a diminuir, e isso acontece em países como os EUA. Nunca nos podemos esquecer de como esse espaço é vital para o processo democrático.
Como se luta contra isso?
Envolvem-se vários agentes, como advogados para “estarem em cima” das leis, organizações internacionais para ficarem atentas ao processo, e a sociedade civil para garantir que se organizam. Não tratamos disso, mas podemos ajudar a que um protesto se realize, sem barreiras.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem continua a ser uma inspiração para a Artigo 19 ou precisa de alguma atualização?
Definitivamente não. Nada é perfeito, mas eu diria que é uma boa declaração, fruto de um imenso trabalho de décadas, criando leis e jurisprudência e instituições. Foi uma luta brutal na época para redefinir o mundo.
Nem as mudanças de que esteve a falar justificariam uma atualização?
Todos os direitos têm de ser interpretados e compreendidos, e ainda por cima a Declaração é muito curta em termos de texto. Por isso, temos de compreender o que aquelas palavras significam num mundo digital. Mas o documento em si não precisa de mudança.