A russa Anna Neistat fez o liceu todo a achar que ia seguir arquitetura. O avô paterno era arquiteto, o pai é escultor e ela sentia-se inspirada por arquitetos como Le Corbusier. Mas quando a União Soviética se dissolveu desistiu da ideia e foi bater à porta de uma rádio independente. Pouco depois estava a dirigir um programa sobre a reforma da lei penal e nunca mais olhou para trás.
Aos 41 anos, é uma das mais conceituadas investigadoras na área dos Direitos Humanos. Após mais de uma década nas equipas de emergência da Human Rights Watch (HRW), dirige a investigação da Amnistia Internacional, a partir de Paris, onde vive com o marido e os três filhos, o mais novo de seis meses. O seu papel, agora, é de supervisão, mas sempre que pode volta ao terreno. “É viciante”, admite nesta entrevista que deu numa breve passagem por Portugal para assistir à apresentação do documentário E-Team, que protagoniza com o marido, o norueguês Ole Solvang, com quem trabalhou na HRW, em regiões de conflito (disponível na Netflix).
Ia para Artes, mas um dia acordou e decidiu “Vou salvar o mundo”. Foi assim? Teve uma epifania?
(Ri-se) Não… A verdade é que quando agora volto ao liceu os meus antigos professores não ficam surpreendidos com o que faço. Era considerada uma agitadora porque tomava a injustiça como algo pessoal – e como andava numa escola muito soviética havia sempre injustiças a acontecer.
Entretanto, viu o sistema desmoronar-se.
Só se desmoronou a sério no fim do liceu. A Perestroika começara bastante antes, mas 1991 e 1992 foram anos transformadores. Para começar ficámos a conhecer a nossa história de uma maneira diferente da versão destilada dos velhos livros soviéticos. Até se costuma dizer que a Rússia tem um passado imprevisível.
De repente era tudo novo?
E as coisas estavam a acontecer no momento! No liceu passávamos horas a ouvir as sessões parlamentares porque tínhamos finalmente um Parlamento em que se debatia alguma coisa. Era emocionante e as pessoas perguntavam-se se tinham lugar nesse processo. Para mim o primeiro passo foi o jornalismo. Durante a tentativa de golpe de Estado de 1991 passei dias colada à emissão da Ekho Moskvy, uma estação de rádio independente, e pareceu-me algo que gostaria de experimentar. Nessa altura a Rússia era uma terra de oportunidades. Uma pessoa podia entrar numa rádio aos 18 anos e dizer “Quero ser jornalista”. Pouco depois dirigia um programa sobre direitos humanos e lei, duas coisas sobre as quais não sabia nada.
Costuma referir-se aos seus pais como dissidentes discretos. Lá em casa não se falava de política?
Nesse tempo toda a gente falava. Os meus pais nunca tinham feito parte do sistema, nem sequer eram membros do Partido Comunista. Também não pertenciam a nenhuma oposição secreta, mas o meu pai orgulhava-se de ter sido o único do seu liceu a faltar ao funeral de Estaline. Portanto, havia esta atmosfera lá em casa, mas não esperavam que fosse para uma rádio. Ser jornalista, até então, era o quê? Ia–se trabalhar para o Pravda [jornal do Partido Comunista, entre 1918 e 1991], não parecia uma carreira interessante.
Pensou que podia fazer a diferença na rádio?
Sim. Mas foi só durante a guerra no Tajiquistão que me apercebi de que podia realmente fazer alguma coisa e, ao mesmo tempo, das limitações dos jornalistas. Uma amiga mais velha, que era uma espécie de mentora e estava gravidíssima, ligou-me a dizer: “Temos de evacuar uma família de uma aldeia remota e só um avião militar pode voar até lá. Consegues um?” Eu respondi-lhe “Deves estar louca”, mas ela insistiu: “Podias ao menos tentar”. E eu tentei.
Como jornalista?
Como uma mulher maluca (ri-se). A verdade é que naquela altura os jornalistas eram respeitados e, por isso, quando liguei e disse que era da Ekho Moskvy, prendi-lhes a atenção. Mas foi só ao fim de uns 36 telefonemas que cheguei a alguém que se preocupou. Um médico. Ouviu-me até ao fim e, em vez de dizer “É maluca”, disse: “Ok, deixe ver o que posso fazer.” A família foi evacuada e aprendi uma lição. Hoje, mesmo quando me parece impossível, tento sempre. Costumo dizer aos meus investigadores: “Já têm um ‘Não’ garantido, por que não tentam um ‘Sim’?”. Nove em cada dez vezes não adianta nada, mas aquela única vez pode salvar uma vida.
Ficou então a pensar que não queria apenas informar?
Já não me bastava. Fundei uma ONG, onde fizemos programas de rádio sobre as prisões, ajudámos prisioneiros a organizarem os recursos e dedicámo-nos à questão do perdão, que funcionava mal.
Entretanto tirara Direito?
Ainda não. Foi preciso uma das convidadas do programa, autora da reforma do processo penal na Rússia, convencer-me. Tinha uma licenciatura, em História e Filologia, mas realmente não fazia sentido continuar sem estudar Direito.
Depois do curso, entrar na Human Rights Watch era o percurso natural?
Não estava nos meus planos. Após o mestrado, em Harvard, queria apostar no direito criminal, como procuradora. Falei com empregadores na Rússia e nos Estados Unidos, em diferentes agências, no FBI, mas aquilo não era para mim, por causa dos meus limites morais. Depois fui a entrevistas para o Banco Mundial e uma série de firmas de advogados, posições que na verdade não me interessavam, até que surgiu uma oferta na Human Rights Watch, em Moscovo. Não queria regressar à Rússia, mas o que pediam parecia copiado do meu currículo.
Lembra-se da sua primeira missão?
Claro! Era uma especialista em Direito Criminal, em prisões, polícia – e na Rússia havia muito para fazer nessas áreas –, mas um mês depois de entrar na Human Rights estava num avião a caminho da fronteira com a Chechénia porque a guerra parecia prestes a terminar. Foi um choque. A visão daquele campo de deslocados sem fim, as histórias que nos contavam e pensar que tudo aquilo acontecia a duas horas de voo de Moscovo… Estamos a falar de execuções em massa, tortura, desaparecimentos, violações, pessoas atiradas de helicópteros.
Não estava preparada?
Agora, quando enviamos investigadores para terrenos hostis, preparamo-los para o que vão encontrar, treinamo-los, mas naquela altura não havia nada. O meu briefing foi no avião. Lembro-me de perguntar ao meu colega o que faria se um entrevistado começasse a chorar, e ele encolheu os ombros: “Não sei, dás-lhe um lenço de papel e um copo de água?” Foi assim que me prepararam para lidar com o trauma. Hoje, dá-se um curso de três dias sobre como entrevistar testemunhas traumatizadas, mas minha preparação foi uma frase.
No documentário E-Team diz que o facto de ser mulher pode trazer vantagens no terreno.
Em geral penso que me ajudou enormemente. Nunca seria capaz de fazer metade do que faço se não fosse mulher. Infelizmente, somos menos levadas a sério, o que significa que somos menos ameaçadoras. Lembro–me de chegar a postos de controlo, os meus colegas terem de responder a perguntas e os guardas nem olharem para mim. Às vezes basta pôr um lenço e ficar calada porque ninguém examina de perto quem somos ou o que estamos a fazer. Já fingi ser uma mulher surda em tantos sítios! Se alguém fala comigo, abano a cabeça assim [faz uma cara sem expressão].
E também ajuda quando é preciso entrevistar mulheres?
Em alguns sítios elas não falariam com um homem, de todo. Mas quando interagimos com homens também é incrível o que conseguimos por não sermos agressivas e intimidantes. Conseguem-se confissões de crimes de guerra só porque eles querem vangloriar-se em frente a uma mulher.
“Eu fiz isto, fiz aquilo…”
Exato! Um tipo das milícias dá-nos boleia sem saber bem quem somos e desata a contar que esteve nesta aldeia, o que fez naquela outra. Ficamos ali sentadas a pensar: “Tenho de me lembrar dos pormenores, quem me dera poder sacar do bloco de notas”.
É verdade que as mulheres são as melhores testemunhas porque se lembram dos pormenores?
É. E enquanto os homens têm tendência para serem o centro da história, falam mais do que aconteceu do que sobre si próprias. Mesmo emocionadas continuam focadas.
A Anna emociona-se nas entrevistas?
Já chorei, mas costumo dizer aos meus investigadores que não podemos criar uma situação em que os entrevistados sentem que têm de tomar conta de nós. Devemos sentir empatia, raiva e indignação, como motivadores de ação, mas temos de pensar que se nos vamos abaixo não estamos a fazer o nosso trabalho. Estamos ali para obter informação e ajudá-los, não é para satisfazer a nossa curiosidade ou só para eles desabafarem. No mínimo, o mundo tem de saber o que aconteceu.
Tanto a Human Rights Watch como a Amnistia Internacional têm equipas de crise. A ideia é chegarem rapidamente aos locais para recolherem as provas?
Antes que desapareçam, sim, mas o grande objetivo é parar as violações dos direitos humanos. Uma vez chegámos à Ossétia do Sul, vimos uma aldeia a ser saqueada e queimada, e não escrevemos nada. Ligámos a jornalistas e ao ministro das Situações de Emergência russo e a Cruz Vermelha para termos a certeza de que aquilo parava. E parou no dia seguinte.
Teria parado à mesma se o caso não aparecesse nas notícias?
Provavelmente não. A divulgação é extremamente importante.
Diz que estar no terreno é viciante.
E é, mas agora, como diretora das equipas de investigação, vou pouco. No ano passado fui à Ucrânia em grande parte porque tenho passaporte russo, depois estive no Quirguistão por causa da detenção de uns ativistas de direitos humanos e em julho fui numa missão louca a Nauru.
No seu relatório [Island of Despair, disponível no site da Amnistia Internacional] comparou Nauru com uma prisão a céu aberto para refugiados. É o tipo de situações que a levam a fazer o que faz?
É [suspira]. Nauru é uma ilha no meio do nada, um Estado separado mas controlado pela Austrália que tem lá centros de detenção. Um pedido de visto de jornalista custa 8 mil dólares [€6,7 mil] e 99,9% das vezes é indeferido. A Amnistia pediu seis vezes e negaram sempre. Como Nauru foi um dos poucos Estados que reconheceu a República da Ossétia do Sul e a Abecásia, teoricamente eu podia entrar porque os russos não precisam de visto, mas na prática bastaria um clique no Google para descobrirem quem sou. Felizmente não têm computadores na fronteira e, uma vez lá dentro, não perceberam quem era. Não sei como, porque a ilha tem 21 km2, não é como a Síria rural, onde pomos uma burca e nos escondemos…
Como é que foi estar em Nauru?
Foi um choque. Se for agora ao Bangladesh, sei o que me espera: o horror, o horror, o horror [por causa dos refugiados rohingya]. Mas como Nauru é um Estado muito fechado, não ia preparada para o que encontrei. A percentagem de tentativas de suicídio é de loucos… Quando falamos com um rapazinho de 9 anos que não quer continuar a viver porque aquilo por que está a passar é horroroso, e a mãe nos conta que ele já tentou matar-se de várias maneiras… Parece um filme de terror. E é orquestrado pela Austrália, não é pela Síria ou a Coreia do Norte.
A maioria das pessoas nem sequer sabia onde é Nauru.
Quando contactei a [estação de rádio americana] NPR tive de soletrar Nauru. Mas o facto de chegarmos aos media americanos teve influência no facto de um primeiro grupo de 54 refugiados ter ido recentemente para os Estados Unidos. Há dias assim, em que sentimos que não trabalhamos em vão.