Como secretário de Estado adjunto do Ministério da Administração Interna, do anterior Governo, renegociou aquilo que diz ser o “mau”contrato do SIRESP e encomendou, há mais de dois anos, as estações de comunicações móveis que só agora, depois da tragédia de Pedrógão, foram adquiridas. De regresso à academia, o lugar onde se sente melhor, deu-nos uma entrevista para falar sobre o bom momento da economia portuguesa e sobre Orçamento do Estado para o próximo ano. Com ideias muito assertivas sobre os equilíbrios da geringonça, elogia a habilidade negocial de António Costa e de Mário Centeno, mas acredita que o Bloco de Esquerda e o PCP não vão deixar que o Governo repita o “truque” das cativações para manter as metas orçamentais. Concorda com a reposição dos rendimentos aos funcionários públicos, mas rejeita que tenha havido um alívio da austeridade. É que, sem cortes e sem aumentos de impostos, “não teria sido possível alcançar o défice mais baixo da democracia”.
O que espera do Orçamento do Estado para 2018? Há folga para acolher as exigências dos partidos de esquerda, em matérias como o alívio do IRS ou o descongelamento de carreiras na função pública?
Os dados positivos do crescimento económico, a queda acentuada da taxa de desemprego e a descida dos juros da dívida pública terão um efeito muito positivo na execução orçamental de 2017 e poderão contribuir para uma boa execução em 2018. No entanto, o Governo terá mais dificuldade em recorrer a alguns dos truques, como a não libertação de cativações, que utilizou em 2016. Os partidos que o suportam – o Bloco de Esquerda (BE) e o PCP – vão estar muito atentos a essa questão e duvido que permitam que se repita no próximo ano. Por outro lado, a segunda parte das legislaturas costuma tornar os governos mais generosos com o eleitorado. Apesar dos riscos para a confiança dos investidores e para a recuperação da economia, decorrentes do incumprimento das metas orçamentais, não há dúvidas que vamos ter um orçamento mais generoso em 2018.
Se o Governo aceitar as propostas dos parceiros, como é que vai acomodar mais despesa pública, com a saúde e a educação, sem comprometer o equilíbrio orçamental? Aumentando os impostos indiretos?
Às pressões da esquerda nas áreas da saúde e da educação, juntam-se as pressões de áreas como a Segurança Interna e a Defesa, decorrentes das calamidades associadas aos incêndios, do assalto a Tancos e também ao contexto de terrorismo internacional. Penso que será mais uma vez o investimento público a ser sacrificado. Concordo com um alívio fiscal no IRS, uma vez que a carga fiscal em Portugal é muito elevada, mas admito que ainda possa haver aumentos nos impostos indiretos, especialmente naqueles que não afetam toda a gente.
Há boas notícias na economia: o PIB cresceu 2,8% no semestre, a meta de 1,5% para o défice parece alcançável e o desemprego está abaixo dos 9%. Estamos a combinar o crescimento mais alto do século com o défice mais baixo da democracia. Se o País está melhor, porque é que a vida das pessoas não está assim tão melhor?
A economia portuguesa está num bom momento, o que se tem refletido no aumento do emprego, na confiança dos investidores e também das famílias. Mas, para que esses bons indicadores tenham um impacto significativo na vida das pessoas, precisamos de taxas de crescimento acima de 2% do PIB, por um período longo.
Como é que olha para os “avisos amarelos” da economia: uma dívida pública que não para de crescer, a poupança que diminui, a produtividade que não descola…
São três problemas estruturais graves. O que mais me preocupa é não serem visíveis melhorias na dívida pública, apesar do contexto muito favorável. E sem se verem esses sinais não vamos ter melhorias no rating da dívida pública, que penso ser o mais importante objetivo no curto prazo.
Se temos a geração mais qualificada de sempre, porque é que a produtividade não melhora?
Esse é o grande quebra-cabeças da nossa economia. É preciso fazer uma análise mais fina das qualificações que os portugueses têm e das qualificações de que a economia precisa. Há desfasamentos, especialmente nas áreas técnicas, orientadas para a indústria, que é preciso corrigir. Por outro lado, é necessário que as organizações, públicas e privadas, tenham a capacidade de absorver e promover os mais capacitados.
Há um mito que cai por terra: afinal, podemos crescer sem investimento público em betão? As exportações e o turismo vão ser o motor da economia por muito mais tempo?
Depois de décadas em que o investimento público cresceu bastante acima da média da UE, é natural que nesta fase se invista menos. Terão de ser as exportações e o turismo a continuar a puxar pela economia. Ambos têm muito espaço para crescer. Com as políticas certas, o crescimento das exportações pode ainda surpreender-nos. Convém não esquecer que nenhum governo teve até agora políticas económicas focadas nos bens transacionáveis. O crescimento das exportações deve-se ao mérito dos empresários, muitos dos quais nem sequer contam com o financiamento da banca. Costumo contar a história de um empresário a quem o banco recusou um financiamento para investir na sua fábrica de colchões, mas a quem o mesmo banco propôs conceder um crédito para trocar de carro (risos). É preciso que o Governo não perca o foco na competitividade da economia e na captação do investimento. Claro que não espero que o BE faça esse discurso, porque o BE não tem um discurso de crescimento, tem apenas um discurso de distribuição de rendimentos. O PCP tem um discurso de crescimento, mas é o discurso errado.
A indicação do nome de Mário Centeno para presidente do Eurogrupo é um sinal de que há alternativa à austeridade?
Pelo contrário. Acho que é um reconhecimento do Eurogrupo por ele ter cumprido os compromissos orçamentais de Portugal, quando ninguém esperava. Os excelentes resultados da execução orçamental, que foram fundamentais para restaurar a confiança dos investidores, só foram possíveis através de medidas restritivas como os aumentos dos impostos indiretos, cortes nas despesas de funcionamento dos ministérios e no investimento público, entre outras. De outra forma não teria sido possível alcançar o défice mais baixo da democracia. Mas foi muito importante mostrar que Portugal quer cumprir com as suas metas orçamentais. Quando, há meses, o ministro Schauble elogiou Centeno, chamando-lhe “o Ronaldo da economia”, estava a realçar a habilidade deste Governo em prosseguir com a consolidação orçamental ao mesmo tempo que é suportado por partidos de esquerda e extrema-esquerda!
Mas não concorda que a reposição de salários aliviou a austeridade?
Não, não concordo. Há reposição de salários, mas também há impostos que aumentaram, cativações que se mantêm, redução de investimento público. O PS fez muito bem em repor a totalidade dos salários dos funcionários públicos porque apaziguou uma parte importante da sociedade portuguesa – e também porque havia um acórdão do Tribunal Constitucional nesse sentido. Não se reforma o Estado contra os funcionários públicos. Este primeiro- -ministro teve um mérito enorme, ao mostrar que Portugal é governável – o mesmo fez Passos Coelho em 2013, quando confrontado com a demissão de Paulo Portas. E depois teve a capacidade – que Passos Coelho não teve – de apaziguar a sociedade portuguesa. Mas houve outras medidas, como a reposição dos feriados e das 35 horas para os funcionários públicos (e não para os privados), que foram precipitadas e prejudicaram a imagem do País junto dos investidores. Imagine as multinacionais, com o ano a decorrer, a terem de informar a casa-mãe que iriam ter menos uma semana de trabalho do que o previsto…
Dez anos depois do início da crise financeira, aprendemos algo?
Demorámos muito tempo a perceber as causas da nossa crise, que começou em 2001 (a troika não é o início da crise, mas sim o resultado de um longo período de baixo crescimento e de acumulação de muita dívida). Por outro lado, a memória de muitos é curta, ao quererem de volta tudo o que a nossa economia não foi capaz de dar nos últimos 15 anos e ainda não tem condições para dar. Ouvir os sindicatos da função pública a pedirem a reposição das carreiras, com efeitos retroativos, é simplesmente uma falta de respeito por todos os que perderam o emprego no setor privado e que tiveram de emigrar. Apesar de tudo, a ênfase que o primeiro-ministro hoje coloca nas exportações, no investimento privado, numa economia do conhecimento dão alguma esperança. Sejam as políticas coerentes com o discurso….
Ficou surpreendido com as falhas do SIRESP durante o incêndio de Pedrógão? Porque é que o sistema falha tanto?
É preciso mais informação para avaliar as falhas do SIRESP. O relatório da KPMG, realizado quando eu era secretário de Estado, identificou fragilidades e, com base nesse diagnóstico, foi definido um plano de ação para colmatar as fragilidades do sistema. Quando abandonei funções, em abril de 2015, esse plano estava em execução. As estações móveis agora adquiridas estavam encomendadas quando saí do Governo. Fiquei surpreendido por saber que, mais de dois anos depois, esse plano não estava ainda totalmente implementado. Terão sido as cativações que impediram a realização da despesa que o plano de ação implicava? Sabemos que a reposição dos salários obrigou a cortar noutras áreas…
Escreveu que o contrato do SIRESP, que renegociou em 2015, “continua a ser mau para o Estado”. Defende a nacionalização do sistema? A sua substituição por outro? A mudança dos atuais acionistas privados?
A opção por uma parceria público-privada para o sistema de comunicações de emergência e segurança do Estado foi um erro. Não teve em conta o que era melhor para o País e para o Estado português. Foi antes uma forma de ultrapassar os constrangimentos orçamentais no curto prazo. Na área da segurança, sendo uma área de soberania, deve existir muita cautela na forma como se recorre aos serviços de privados. As comunicações de segurança do Estado não podem ser tratadas como uma infraestrutura qualquer. Foi um absurdo entregar esta área a privados. A SIRESP, SA, que tem total responsabilidade pela rede de comunicações, é 100% privada. Nos dois anos em que procurei interagir com a administração, esta respondia sempre com o que estava estipulado no caderno de encargos. Ou seja, não havia qualquer interação, dado que o objetivo da SIRESP, SA era sempre garantir que cumpria o caderno de encargos definido pelo Estado português, há quase 20 anos… Ou seja, se o Estado quisesse mudar alguma coisa, teria de pagar! Tendo em conta a falta de competências técnicas, o Estado terá sempre de ter um parceiro privado para a tecnologia e para a gestão de uma rede deste tipo. Mas o modelo de gestão e governação terá de ser totalmente controlado pelo Estado. O atual contrato acaba em 2021 e já não há muito tempo para definir o novo modelo. O Governo, para evitar os graves erros do contrato SIRESP, tem de dar absoluta prioridade à definição do novo modelo de comunicações e à escolha da tecnologia a utilizar. Mas receio que este ruído possa contaminar um processo que devia ser eminentemente técnico.