Não sei onde é que Graça Fonseca estava quando foi aprovada a proposta de lei da cópia privada que aplicou taxas a quase todos os gadgets depois de 2015 – mas não tenho dúvidas de que já garantiu um lugar de destaque na defesa do Fundo de Fomento Cultural. Quando a maioria dos governantes se esgadanha com o ministro das Finanças para conseguir mais uns cêntimos do Orçamento de Estado, a ministra da Cultura alcançou o zénite do desprendimento com uma proposta que acaba com o teto máximo que obriga a reverter para o Fomento Cultural as receitas das taxas da cópia privada, assim que ultrapassem os 15 milhões de euros.
Coincidência ou não, a Associação para a Gestão da Cópia Privada (AGECOP), que representa produtores, editores e autores na coleta da taxa da cópia privada, congratulou-se com a iniciativa, e não se coibiu de dizer que o teto que estava na lei 49/2015 era ilegal. Podia lembrar aqui que Não Há Coincidências – mas não sei se os livros de Margarida Rebelo Pinto são apoiados pelo Fomento Cultural.
Pois bem, o teto já era: a proposta do Governo para acabar com a obrigatoriedade de encaminhar todos os valores coletados acima dos 15 milhões de euros no desenvolvimento de obras e espetáculos culturais no País foi aprovada no Parlamento, como se fosse benéfica para os portugueses. O que significa que, de ora em diante, o dinheiro acima desse teto passa a ir diretamente para os detentores de direitos de autor – que não são obrigatoriamente autores (a fatia de leão vai para produtores e distribuidores) e, tendo em conta a proveniência de músicas e filmes consumidos em Portugal, há mesmo uma parcela considerável que vai diretamente para o estrangeiro… muito provavelmente para os bolsos dos grandes patrões de Hollywood.
Por enquanto, o fim do teto tem pouco significado prático, porque o valor coletado anualmente pela taxa da cópia privada nunca superou os 15 milhões de euros (em 2019, foram coletados 13,6 milhões de euros). Mas esse é um argumento que os papalvos engolem junto com bolinhos quentes – e que, aparentemente, também não causou engulhos a quase todo o Parlamento na hora de aprovar a proposta de lei redigida no Palácio da Ajuda.
Graça Fonseca pode muito bem dizer que nada tirou aos autores portugueses. E é verdade. A ministra da Cultura “apenas” está a inviabilizar que, num futuro próximo, um qualquer governo encaminhe parte dos valores coletados pela taxa da cópia privada para o Fomento Cultural. Coisa pouca, portanto.
Confesso que o facto de a atual ministra se propor a limitar o seu próprio raio de ação não é obrigatoriamente mau, mas receio que também possa lesar os interesses nacionais. Até porque o teto de 15 milhões vai ser seguramente superado em breve, com a venda de cada vez mais equipamentos e a pressão permanente da indústria cultural para a atualização das taxas aplicadas à compra de telemóveis, computadores, discos rígidos, ou tablets. E se não for a pressão da indústria, será a inflação que tratará de levar a uma atualização das taxas. A ministra podia ter enveredado por um novo teto e, com isso, mantinha os gestores da cópia privada na ordem e fora dos lóbis ministeriais. Mas não. A solução passou mesmo por acabar com o teto de vez. Para quê ter chatices a negociar tetos, não é?
Mas convém não esquecer que as ministras da cultura só fazem aquilo que os deputados deixam fazer. E para que não haja dúvidas quanto à paternidade do diploma, deixo aqui uma descrição dos sentidos de voto no Parlamento:
A bancada do PS ainda propôs a revogação da proposta redigida pelo gabinete de Graça Fonseca, mas, à última hora, retirou-a para votar a favor daquilo que antes queria revogar… talvez para não criar obstáculos à aprovação de um novo orçamento para a República Portuguesa – e por acréscimo também para as sociedades de gestores de direitos de autor. O PSD, o PCP e o CDS também votaram a favor. E o BE absteve-se, como se fosse matéria sem importância.
Mas até os piores filmes de terror têm inesperados laivos de esperança: por exemplo, o PAN garante que votou contra.
É possível que, mesmo depois desta votação, os detratores de Manoel de Oliveira e César Monteiro sintam vontade de rir – mas só aqueles que preferem ver o dinheiro dos contribuintes aplicado no novo iate de um executivo da Sony em detrimento de filmes como Branca de Neve.
Pelo contrário, eu prefiro ser embarretado com Brancas de Neve na esperança de que um dia surjam mais Recordações da Casa Amarela. Até porque, bem vistas as coisas, 80% dos conteúdos que a indústria que procura o lucro lança despertam-me menos interesse que o famoso filme de ecrã negro e vozes em off de César Monteiro. Se o Fomento Cultural é uma coisa para os amigos do costume? Não sei… mas digam-me: como é que é com a indústria comercial? Respondam à vontade, mas poupem-me nomes e detalhes, por favor.
Aqui chegados, importa esclarecer o mais importante de tudo, que muitos ainda confundem sem saber – e tantos outros confundem de propósito: as taxas da cópia privada foram criadas por imposição da UE como mecanismo de compensação pelas alegadas perdas de receitas que recaem sobre autores, produtores ou distribuidores de vídeos, música, fotos, livros ou animação, quando um consumidor copia, para uso próprio, uma obra protegida para diferentes suportes.
As taxas têm por ponto de partida um direito absoluto: todas as cópias de uma obra com direitos de autor são ilegais – e apenas as exceções definidas por lei escapam a essa regra. As cópias de uso privado figuram nas exceções permitidas, mas só porque o legislador aceitou aplicar taxas de compensação aos diferentes suportes que permitem fazer cópias.
Resultado: a lei obriga fabricantes e distribuidores a pagar taxas que podem ir dos cinco cêntimos por um CD a um máximo de 15 euros por um disco rígido, mas nada impede que o preço final passe essa taxa para a carteira do cliente, quando quer comprar um novo suporte para poder continuar a ouvir uma música que está num vinil comprado nos anos 1980 de forma honrada e legítima.
Há a ideia de que as taxas da cópia privada são mecanismos de compensação da pirataria – mas não são. A pirataria continua a ser crime e algo me diz que, juridicamente, não é possível reverter um crime com a aplicação de taxas para todos, mesmo para os que não o praticam, como é o meu caso. Foi precisamente para combater a pirataria que Portugal passou a aplicar bloqueios de sites comprovadamente piratas – o que não me choca.
Além da taxa da cópia privada e dos bloqueios de sites piratas, os detentores de direitos de autor estão também salvaguardados pela cobrança de taxas a todos os estabelecimentos que passam música ou vídeo em público, para que não incorram numa reprodução pública ilegal. E quem duvidar disso que vá aos bares da Ribeira ou do Bairro Alto, ou à tasca da esquina enquanto passa a bola na TV, e perguntem aos gerentes o que pensam do assunto.
Não ponho em causa todos estes direitos – e, por absurdo, até posso acreditar que a AGECOP consegue arranjar os advogados que demonstram em tribunal que a contribuição para o Fomento Cultural é ilegal. Mas isso não chega como prova de boas intenções. Pelo que aproveito para recapitular tudo: o Parlamento aprovou uma alteração à lei apresentada pelo Ministério da Cultura que, em vez de uma proposta específica e avulsa, recorreu ao Orçamento de Estado para acabar com o teto máximo que os autores e representantes podem receber, depois de cobradas as taxas da cópia privada. Em consequência, todos os valores coletados acima de 15 milhões de euros deixam de ser aplicados num fundo de apoio estatal para a arte e cultura e vão para as contas bancárias da indústria cultural. Com sorte, depois desta explicação, Graça Fonseca e os deputados que aprovaram o fim do teto já terão percebido o que fizeram.