
A AT vai dar a conhecer em setembro quais são as marcas e consultoras que se pré-qualificaram para o acordo-quadro de fornecimento software, serviços e afins. “Este processo encontra-se em fase avançada e a AT estima que a celebração do acordo-quadro ocorra em setembro deste ano. Porque ainda não foi celebrado, a AT não está habilitada a fornecer quaisquer informações sobre a identificação dos candidatos”, refere o Ministério das Finanças, quando inquirido pela Exame Informática.
O lançamento do acordo-quadro, que teve lugar em julho de 2013 com a devida publicação em Diário da República, promete pôr fim aos sucessivos ajustes diretos que a AT tem levado a cabo no que toca à compra de software e ao investimento em serviços de consultoria. No Portal Base, é possível confirmar que seis empresas garantiram dois terços dos cerca de 30 milhões que a AT investiu em software e derivados, durante os últimos 17 meses.
A avaliar pelos prazos descritos no anúncio feito em Diário da República, haverá uma grande probabilidade de o processe já se encontrar atrasado, apesar de não fugir à média de outros procedimentos equivalentes da Administração Pública. A seleção de fornecedores de software é descrita na indústria como um processo complexo – e por isso quase ninguém estranha uma espera de mais de um ano até à publicação de resultados. Nos bastidores há quem descreva o conjunto de requisitos e exigências como um cenário delicado, que poderá ficar suspenso com relativa facilidade, caso uma das candidatas apresente uma reclamação formal.
Álvaro Amorim Pinto, presidente da Associação de Empresas Portuguesas de Open-Source (ESOP) admite que o acordo-quadro não ponha termo a algumas das tendências verificadas durante os sucessivos ajustes diretos: «Todo o acordo-quadro tem requisitos muito exigentes e de grande complexidade, que pressupõem vastos recursos técnicos e humanos. Provavelmente, só as grandes integradoras (consultoras que instalam tecnologias ou prestam serviços de outsourcing) têm pessoas suficientes para serem selecionadas».
A crítica de Álvaro Pinto sobe de tom quando se trata de defender os interesses da comunidade open-source: «Num dos requisitos do acordo-quadro, é exigida experiência nas versões pagas de software open-source. O que não faz sentido do ponto de vista técnico e contraria as orientações políticas do Governo que promovem o uso das versões grátis do software open-source».
Os contratos misteriosos
É um mistério tão antigo quanto o primeiro sorteio da Fatura da Sorte, que data de 17 de abril: quanto gastou a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) na plataforma tecnológica que sorteia os carros de alta cilindrada aos contribuintes que pediram fatura? Seria uma questão fácil para a AT responder, mas a entidade que o Governo criou com o objetivo de agilizar a cobrança de impostos e combater a fraude fiscal, não responde quando inquirida sobre o que faz com a parte do erário público que lhe é atribuído.
Poderia ser a única questão envolta em mistério – mas não é. Por explicar ficam ainda as seguintes questões: por que é que a AT recorreu ao ajuste direto em 505 dos 508 contratos que celebrou com fornecedores (de todos os tipos de bens e serviços) desde fevereiro de 2012?; por que é que 60 dos 267 contratos com empresas de software em 2013 e 2014 são justificados com razões de “segurança” e “interesses essenciais do Estado”?
No Portal Base, há alguns números que ajudam a contornar a escassez de respostas do Ministério das Finanças: entre janeiro de 2013 e 30 de maio, a AT gastou 29.730.747,26 euros em software, serviços e derivados. No total, são 267 contratos – todos por ajuste direto. Os valores até poderão ser ligeiramente maiores: nem sempre os contratos são inseridos no Portal Base no dia em que são celebrados. O que significa que, depois da data de publicação deste texto, poderão vir a ser publicados contratos mais antigos.
Quando toda – ou quase toda – a Administração Pública está dependente da aprovação do Ministério das Finanças para proceder a ajustes diretos superiores a 150 mil euros, será legal a AT usar o mesmo mecanismo em mais de 20 vezes (sendo que há, pelo menos, quatro contratos que superam 1,4 milhões de euros)? A resposta é: sim, é legal.
A prova pode ser encontrada num dos contratos celebrados recentemente pela AT, num valor de 1,490 milhões de euros para a aquisição de uma ‘applicance’ de grande poder de computação. O recurso ao ajuste direto é justificado com um despacho de julho de 2013, em que a atual ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque atribui à AT autonomia financeira, apenas limitada por um outro despacho, de 1999, que fixa tetos de investimento ainda nos antigos ‘contos’. Porém, essa limitação pode ser levantada pelo ministro da tutela (neste caso a própria Maria Luís Albuquerque) ou por delegação, pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (Paulo Núncio).
Em resposta enviada por e-mail, a AT reforça a tese da legalidade dos ajustes diretos que têm sido levados a cabo: “todos os contratos sujeitos a visto prévio foram devidamente visados pelo Tribunal de Contas, o que atesta a conformidade dos seus procedimentos e das respetivas fundamentações com as disposições legais em vigor em matéria de contratação pública”.
Mas será que o Estado sai beneficiado com o uso sucessivo de ajustes diretos quando se trata da compra de software? “A ganhar não estará certamente, na medida em que estes procedimentos [ajustes diretos] não permitem a apresentação de propostas concorrentes para a prestação dos serviços ou o fornecimento de produtos. Ou seja, privilegiam a relação com uma só empresa e a contratação com base em preços artificiais, normalmente acima dos preços de mercado. Provavelmente o Estado português estará a ser lesado com esta situação”, adianta Álvaro Amorim Pinto, presidente da Associação de Empresas de Open Source Portuguesas (ESOP).
Os seis grandes
A par do recurso ao ajuste direto, há outras tendências que podem ser apuradas na análise dos números extraídos do Portal Base: seis marcas/consultoras garantiram cerca de dois terços do valor investido pela AT em software e derivados desde janeiro de 2013 (19,361 milhões de euros, num total de 29,730 milhões).
Os nomes são conhecidos por quem frequenta o circuito das tecnologias: Opensoft, Accenture, IBM, Oracle, ITEN e Novabase. Os valores envolvidos não têm propriamente correspondência direta com o número de contratos celebrados: a Opensoft lidera no valor total (mais de quatro milhões) e número de contratos (37), mas há também casos como o da IBM, que apenas celebrou dois contratos, mas garantiu 2,5 milhões de euros; ou da ITEN que celebrou 11 contratos e que chegou aos 3,6 milhões de euros, muito por força de um contrato de mais de 2,5 milhões de euros relacionado com licenças de tecnologias Microsoft; ou ainda a Oracle, que celebrou quatro contratos, mas superou os três milhões de euros (num deles em consórcio com a Time Stamp).
Num segundo plano, é ainda possível, encontrar empresas como a Glintt e a CPCIS, que não constam no “top 6”, mas conseguiram firmar negócios que superaram, no total, um milhão de euros entre 2013 e a atualidade. Álvaro Pinto classifica de “preocupante” a recorrência do ajuste direto na AT, e não hesita em descrever a prática como “pouco concorrencial e pouco saudável”. “A lei confere a possibilidade de recurso ao ajuste direto em algumas situações. Mas estas deveriam ser a exceção e não a regra”, garante.
Na ESOP e noutras associações que defendem o software livre ou de código aberto (que geralmente não cobram pelas licenças e disponibilizam os códigos de programação), há muito que as práticas de ajuste direto são seguidas de perto – e alvo de críticas. Em causa está a disputa com as grandes marcas de software proprietário pelas compras do Estado – uma missão que nem sempre se revela fácil para as empresas de open-source que, na maioria, são de pequena dimensão e têm um raio de ação confinado a uma área geográfica reduzida.
Quanto valem 30 milhões?
Afinal, 30 milhões de euros é muito ou pouco? O histórico permite ter uma ideia: a Direção Geral de Informática Tributária e a Aduaneira (DGITA), que foi, até à reformulação governamental, responsável por grande parte das funções assumidas pela AT, investiu cerca de 8,6 milhões de euros em 106 contratos durante 2011 (acrescidos de um único contrato assinado em 2012). O valor confirma que, desde que a AT foi constituída, o investimento em software não parou de aumentar – e que, caso se mantenha o ritmo registado nos primeiros cinco meses, 2014 poderá terminar mesmo com mais do dobro do investimento registado em 2011 – ou até de 2013.
Projetos como a fatura eletrónica ou do guia de transporte de bens poderão estar na linha da frente das justificações para os investimentos levados a cabo nos últimos tempos, mas também há quem recorde que estas soluções não só se pagam, como poderão reduzir “a peanuts” os 30 milhões de euros investidos em ano e meio – especialmente quando se procede à comparação com o montante que o Estado passou a coletar junto de empresas e contribuintes através do cruzamento de dados.
“O problema dos ajustes diretos não será tanto o dinheiro investido, mas antes a dependência que o Estado tem de algumas empresas e a inexistência de um modelo de governação e de arquitetura tecnológica”, refere fonte bem colocada na indústria, que não quis ser identificada.
A alegada dependência do Estado face a um punhado de marcas ganha novos contornos quando a análise dos 267 ajustes diretos que a AT publicou no Portal Base permite concluir que 60 dos contratos relacionados com software e afins recorreram a uma das alíneas do artigo 24º do Código de Compras Públicas (CCP) que legitima o ajuste direto quando estão em causa «medidas especiais de segurança».
Fará sentido as tecnologias usadas para a cobrança de impostos terem estatuto de segredo de Estado? O Ministério das Finanças não explica e, no Portal Base, não é possível saber com que fim são usadas as diferentes tecnologias compradas pela AT. Aos contribuintes mais não resta do que se contentarem com a transcrição da alínea f) do artigo 24º do CCP, que dá a conhecer uma das circunstâncias em que o recurso ao ajuste direto é legítimo: «Nos termos da lei, o contrato seja declarado secreto ou a respetiva execução deva ser acompanhada de medidas especiais de segurança, bem como quando a defesa de interesses essenciais do Estado o exigir».