O acento agudo no primeiro nome caiu quando, aos 17 anos, foi estudar e viver para os EUA. E por lá tem estado, há já quase 35 anos. Nascida em Angola, a família regressou para Portugal no início da década de 1980, mas o percurso profissional levou-a vezes sem conta de volta até África, continente que tem vários países nos quais diz sentir-se “em casa”. Mas não é só o passado, o acolhimento das pessoas e a riqueza cultural que cruzam o percurso de Sonia Jorge com alguns dos países mais pobres do mundo – ali, a falta de acesso à internet por milhões de pessoas é um problema que precisa de ser resolvido. E a portuguesa lidera o movimento que tem estado a lutar pela mudança.
A Aliança para a Internet Acessível (A4AI na sigla em inglês) é uma organização que junta o apoio de diferentes entidades de todo o mundo, desde grandes empresas – Google, Cisco, Ericsson, Facebook, Intel, Huawei, Microsoft, entre outras –, a organizações do setor público – como o Departamento de Estado dos EUA, a Organização de Telecomunicações da Commonwealth, o Ministério das Comunicações da Guatemala, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Suécia e o Banco Mundial, entre outros – e mais de 30 organizações internacionais de sociedade civil.
E não é só o continente africano que precisa e tem beneficiado da atuação da A4AI. Países da América Central e Latina, e da Ásia, continuam com níveis de acesso à internet muito abaixo do que seria desejável. E não se trata apenas da falta de acesso a uma tecnologia que revolucionou o mundo – é também lutar contra o agravamento das desigualdades entre países já digitalizados e nações que ainda estão a dar os primeiros passos neste ‘admirável mundo’ – que novo só o é para quem não tem condições financeiras.
“Não, não é uma tarefa fácil, mas é importante – e isso é o foco do nosso trabalho”, começa por dizer Sonia Jorge, diretora executiva da A4AI em entrevista à Exame Informática, feita à margem da edição deste ano da Web Summit. “Hoje em dia, a parte do mercado que pode suportar isso [acesso à internet] já está de certa forma coberta. E o que não está coberto são as pessoas que no mundo inteiro não estão conectadas e que precisam de estar, porque se estamos realmente a evoluir para sociedades digitais, não podemos participar na exclusão, nem criar e alimentar as desiguldades”, sublinha.
Daí que a missão da A4AI se centre em objetivos concretos: garantir que há ligação à internet a preços mais baixos; garantir que esta ligação, apesar de ser mais barata, dá uma utilização digna aos utilizadores; e garantir que quem entra em contacto com esta tecnologia pela primeira vez, fá-lo em segurança.
“Reunimos todos esses atores, no nosso setor digital, para trabalhar em reformas políticas que tragam mais acesso à internet acessível e de qualidade”, explica. Se por um lado o trabalho da A4AI é muito sobre mostrar o caminho que deve ser seguido pelos países para que mais pessoas possam ter acesso à internet, através da recomendação de reformas políticas, por outro também trabalha diretamente com alguns países na implementação de programas de inclusão tecnológica.
Um exemplo é o da República Dominicana, um pequeno país na América. “As nossas recomendações a nível de acessibilidade, a nível de conectividade significativa e a nível de metas nacionais, de género e de ruralidade, foram todas integradas no plano nacional de banda larga, como na estratégia nacional para o desenvolvimento digital do país. E estamos neste momento também no comité presidencial de implementação dessa estratégia, para garantir que não é só um trabalho bonito no papel, mas que realmente é implementado, para que a população dominicana possa usufruir realmente de todo este trabalho”, conta a executiva portuguesa.
E quem diz a República Dominicana diz a República do Benim, Moçambique, Nigéria, Quénia, Gana, Myanmar, Bangladesh e Guatemala, todos países nos quais a A4AI já ajudou a definir políticas ou planos para que haja um aumento no número de pessoas que acedem à internet.
“Todos os países têm um contexto completamente único. Acreditamos que começar com uma situação em que o mercado tem concorrência é muito importante. Mas em muitos mercados a concorrência não é suficiente, a concorrência não é a solução mágica. Aquilo que tem de existir é, de acordo com a realidade de cada mercado, uma política pública que motive diferentes tipos de iniciativas. Podem ser parcerias público-privadas, pode ser – e deve ser muitas vezes – investimento público, principalmente para estimular não só o mercado, mas a procura. Os serviços públicos [online] são um desses grandes elementos do estímulo da procura”, explica a diretora executiva da A4AI.
Uma missão em andamento
Sonia Jorge reconhece que a missão da aliança é difícil, sobretudo porque ainda esbarra no modelo de negócio dos operadores de telecomunicações, a quem deixa críticas. “Se realmente o acesso à internet é um serviço público, não deve ser um serviço que está ali para criar rendimentos às empresas, tem que se oferecer o serviço, o objetivo é dar o serviço a todas e todos igualmente”, justifica. “O acesso à internet é um direito e um serviço público”, reforça.
A especialista em relações internacionais e regulação das telecomunicações reconhece que as empresas precisam de lucrar, mas lembra que um saldo financeiro positivo de 5% já é lucro e que os operadores “não fazem só dinheiro quando têm 25% de margens [de lucro]”. “[É preciso] Repensar o modelo de negócio para também ser mais flexível, principalmente ao nível das margens nas áreas rurais, para as populações mais marginalizadas”.
Mas não é preciso olhar para países mais empobrecidos para encontrar outro problema crítico no acesso à internet – nos países onde já está democratizado, assume-se que todos têm acesso à tecnologia, quando isso não é verdade. “Portugal tem tantos serviços públicos em linha, se as pessoas não têm acesso, como é que se pode dar serviços públicos em linha? Assume-se muito, não se pode assumir essa realidade quando não se cria as condições para as pessoas terem acesso a esse serviço público, senão é uma forma de os serviços públicos excluírem as pessoas das oportunidades”, alerta.
Apesar de todos os aspetos negativos que a pandemia trouxe consigo, Sonia Jorge diz que a situação, no entanto, foi crucial para um despertar de mentalidades para a necessidade de aposta no acesso à internet, sobretudo para serviços relacionados com a educação e a saúde. “[A internet] Não é um luxo, não é uma coisa que só se vê de vez em quando, é uma plataforma que tem que estar aberta, o tempo todo, sempre que as pessoas precisam”.
Pois a internet é mais do que poder aceder a um motor de busca, a uma rede social ou a uma plataforma de comunicação instantânea. “A internet e o acesso à internet não é só a parte económica, é também o apoio aos movimentos sociais, o apoio à mudança aos movimentos culturais, o apoio a todo o tipo de atividades que fazem parte de uma sociedade. E se realmente nos queremos chamar sociedades digitais, temos que ter a certeza de que todos e todas têm um acesso positivo e não um acesso no qual existe abuso, não gostamos de restrições – nem artificiais, nem sem ser artificiais”.
A portuguesa, que é ainda a líder de inclusão digital da Web Foundation, organização criada pelo fundador da World Wide Web, Tim Berners-Lee, diz não estar satisfeita com o estado atual daquilo a que comummente chamamos de internet, também pelo grande número de perigos que por lá proliferam – como o discurso de ódio ou de discriminação –, mas sobretudo pelo grande risco de exclusão que está criar.
“A minha preocupação maior é realmente o custo da exclusão. Não é só o estado da web, é o facto de mais de metade da população do mundo não fazer parte. E quando não faz parte, não pode beneficiar, não pode usufruir, não pode fazer nada do que estamos todos aqui a fazer. Enquanto nós não transformarmos esse tipo de ação, estamos todos a participar nessa exclusão, estamos a criar um mundo de desigualdade. Preocupa-me, no estado da web, o facto de não ser uma web diversificada, representativa. Vivemos num mundo lindo e, hoje em dia, a web não é representativa desse mundo lindo. Espero que um dia venha a ser”.