Num dia como os outros, em pleno maio de 2018, Jeff Bezos recebe uma mensagem de Whatsapp diretamente da conta de Mohammed bin Salman. Lá dentro, descobre um vídeo e clica para ver. Pouco depois, o telemóvel começa a enviar todos os dados que tem algures para a Internet. O método de ataque não é muito diferente daquele que afeta todos os dias vulgares internautas em vários pontos do mundo – só que Bezos e bin Salman não são propriamente internautas vulgares. O primeiro é o proprietário da Amazon e “visita” frequente do topo do ranking dos mais ricos do mundo; o segundo é o príncipe herdeiro do trono da Arábia Saudita. Pelo meio, une-os um terceiro nome: Jamal Khashoggi, colunista saudita, que viria a ser barbaramente assassinado depois de se destacar com denúncias impiedosas dos abusos da monarquia saudita no jornal Washington Post, que é detido pelo grupo empresarial de Bezos. Podia ser um enredo de um filme de espionagem, mas as Nações Unidas receberam provas que levam a crer que nenhum destes episódios é ficção, e acabam de solicitar uma investigação ao ciberataque de contornos quase inéditos ao telemóvel de um dos mais poderosos homens do mundo.
«O alegado ataque ao telemóvel do senhor Bezos, entre outros, exige uma investigação imediata das autoridades dos EUA e não só, incluindo uma investigação do envolvimento direto, pessoal, continuado e durante anos, do Príncipe Herdeiro (da Arábia audita) para atacar oponentes devidamente identificados», referem as Nações Unidas num alerta enviado para a comunidade internacional.
Aparentemente, as autoridades dos EUA não tiveram de esperar pelo alerta das Nações Unidas para tomar a iniciativa. De acordo com o Cnet, o senador democrata Ron Wyden enviou para Jeff Bezos com várias questões técnicas, que solicitavam os números de IP de onde terá vindo o software espião e também o tipo de tecnologia usada na proteção do telemóvel de Bezos.
O pedido do senador que representa o Estado do Oregon tem por propósito declarado encontrar formas de proteger os cidadãos americanos de futuros ataques do mesmo género, mas poderá não ser especialmente fácil de cumprir, mesmo que Bezos se esforce por dar toda a informação.

De acordo com os dados obtidos pela análise forense não há rasto de qualquer código malicioso no telemóvel atacado. Mas há um dado intrigante: logo depois de Bezos clicar no vídeo enviado pelo príncipe saudita o terminal começou a enviar, através de comunicações encriptadas do Whatsapp, de grandes quantidades de informação. Nos momentos que se seguiram ao visionamento do vídeo, a exfiltração de dados alcançou um pico que é 29.156% superior à média habitual do envio de informação para fora do telemóvel de Bezos.
Perante a ausência de uma infeção com um código malicioso, os especialistas forenses acreditam que a exfiltração de dados terá sido perpetrada com recurso a um pequeno programa que é conhecido por downloader, precisamente por fomentar a descarga dos dados a partir de um ponto remoto.
Apesar de tecnicamente plausível, a suspeita esbarra num obstáculo difícil de superar: o sistema de encriptação ponto a ponto que é usado pelo Whatsapp não permitiu, pelo menos até à data, confirmar a existência do downloader que, eventualmente, terá sido acionado a partir de uma conta controlada por alegados hackers, e consequentemente impediu que se soubesse que tipo de dados foram exfiltrados. A encriptação do Whatsapp também tem impedido que se confirme o uso de tecnologias do NSO Group, uma empresa israelita que já tem currículo em ataques ao Whatsapp – e que os peritos que analisaram o telemóvel de Bezos admitem como possível fornecedora do alegado downloader.
A investigação está em curso – mas já não restam dúvidas de que a vida de Jeff Bezos tem um antes e um depois do vídeo aparentemente inocente enviado por bin Salman, na primavera de 2018. Pouco depois desse episódio surgiram as primeiras notícias no tabloide americano National Enquirer com a transcrição de mensagens trocadas entre Jeff Bezos e Lauren Sanchez, pivô de TV com carreira feita na Fox, que indiciavam uma relação extramatrimonial. O que desencadeou de imediato dois divórcios: o de Jeff Bezos e Mackenzie Bezos; e o de Lauren Sanchez e Patrick Whitesell. Ambos casais eram amigos – mas dificilmente a amizade terá sobrevivido depois das estrondosas revelações do National Enquirer.
Jamal Khashoggi teve destino bastante mais horrendo e irremediável. O jornalista saudita que se encontrava exilado em Istambul, Turquia, viria a desaparecer de súbito no dia 2 de outubro de 2018. Mais tarde, com recurso a imagens de videovigilância e informações possivelmente veiculadas pelos serviços de inteligência, chegaram a circular teses de que Jamal Khashoggi teria sido desmembrado depois de entrar na Embaixada da Arábia Saudita na Turquia, a fim de tratar do casamento. Depois de diferentes versões mais ou menos oficiosas, as próprias autoridades sauditas haveriam de admitir que Khashoggi foi assassinado na embaixada de Istambul. Atualmente, a CIA apresenta a tese oficial de que o assassinato do jornalista saudita foi determinado pelo príncipe Mohammed bin Salman – que é a versão que fica para história, como se pode confirmar atualmente no Wikipédia, enquanto não forem revelados mais detalhes sobre as investigações que estão já em curso.