Uma bebé de meses gatinha em cima da cama, agarra o telemóvel com as duas mãos, ri-se – um bebé a ser um bebé! Enquanto isto, o irmão, mais velho, está sentado no chão, com as pernas imóveis, a lutar para manter o equilíbrio da cabeça. Depois de um enorme esforço para levantar um braço, ri-se, vitorioso, quando consegue erguer a mãozinha e tocar no seu cuidador. A cena faz parte de um vídeo divulgado pela iniciativa belga Sun May Arise on SMA, que defende o rastreio neonatal à Atrofia Muscular Espinal (AME), e não podia ser mais ilustrativo da urgência de um diagnóstico, e tratamento, da doença genética, que, nos casos mais graves, limita a esperança de vida aos dois anos de idade, em virtude da degeneração motora galopante. Nos últimos anos, dois tipos de terapias vieram mudar completamente o panorama e hoje a diferença entre tratar e não tratar mede-se em anos de vida e também em qualidade de vida. Mas para garantir ambas é preciso atacar o problema enquanto os danos neuro-musculares não estão instalados: “tempo são neurónios motores”, dizem os especialistas.
Sendo uma doença de origem genética – resultante da alteração no gene SMN1, que causa déficit na produção da proteína SMN –, a forma mais célere e rigorosa de chegar a um diagnostico é através de um teste genético. Que em Portugal, como na maior parte dos países, só é pedido quando surgem suspeitas, ou seja, sintomas, ou seja, danos permanentes. No caso das crianças da campanha belga, o menino só começou a ser tratado quando já havia manifestações da doença, ao contrário da irmã, a quem a terapia foi dada numa fase ainda pré-sintomática.
Esta urgência no diagnóstico tem levado médicos e famílias de doentes a baterem-se pela inclusão do teste genético à AME nos programas de rastreio neonatal – conhecido em Portugal como “teste do pezinho” e no qual são despistadas patologias como a fenilcetonúria, que resulta da falta de uma enzima digestiva. Além de reclamarem a entrada da AME, que atinge uma criança em cada dez mil nascimentos, pede-se uma maior uniformização a nível europeu, já que o número de doenças contempladas no rastreio varia muito de país para país.
“Existem tratamentos aprovados? Resultados comprovados e disponíveis? Porque não diagnosticar e tratar o doente mais cedo? Porque não poupar recursos?”, questionou Joaquim Brites, da Associação Portuguesa de Neuromusculares durante uma sessão para jornalistas sobre a doença, promovida pela Novartis, a farmacêutica que detém a propriedade do tratamento Zolgensma, que ficou conhecido como o medicamento mais caro do mundo (o do ‘caso da bebé Matilde’, cujos pais iniciaram uma campanha de recolha de fundos para assegurar o tratamento, que acabaria por vir a ser inteiramente assegurado pelo Estado).
Na sessão, a presidente do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, Maria do Carmo Fonseca, especialista em Genética, também se mostrou favorável à inclusão do teste à AME no rastreio nacional, neste momento em avaliação pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. “Só faz sentido realizar um teste genético a uma doença quando há tratamento disponível”, sublinha a presidente do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, Maria do Carmo Fonseca. “Quando não existe solução, é melhor não saber, porque o diagnóstico não é mais do que uma condenação para o futuro. No caso da atrofia muscular espinhal existem até três terapias disponíveis”, sublinha. A investigadora levanta até a hipótese de se testarem os bebés ainda no útero. “Já é possível fazer o teste numa fase ainda mais precoce – como sabemos qual é a alteração [genética que dá origem à doença] podemos fazer o teste durante a gravidez. Uma em cada 50 pessoas são portadoras do gene alterado, o que significa que também pode fazer sentido testar aos casais, quando começam a planear ter filhos.”
Duas das terapias disponíveis passam pelo recurso ao RNA de interferência, que atua ao nível da produção da proteína alterada – Spinraza e Evrysdi. O tratamento da Novartis é uma terapia genética, um dos únicos dois tratamentos do género aprovados em todo o mundo (o outro é para um tipo de cegueira), em que o objetivo é repor o gene SMN1. “Uma doença genética é como um erro numa linha de código. Na terapia de substituição genética tentamos repor a linha de comando que está errada”, ilustra Carmo Fonseca. Ciente dos receios que a ideia de terapia genética pode desencadear, a cientista antecipa-se: “O erro está no disco rígido. Uma terapia genética é como colocar uma pen, ou disco externo, com a correção. Não mexemos no âmago do genoma.”
No contexto europeu, Portugal, com 29 patologias abrangidas pelo Rastreio Neonatal, está muito bem posicionado. Logo a seguir à Itália, com 48. A última doença genética a ser incluída foi a fibrose quística, em 2018, depois de um longo processo de avaliação. Países Baixos, Polónia e Sérvia já incluíram o teste à AME, bem como 32 estados americanos. Bélgica, Alemanha e Itália já completaram, com resultados positivo, os programas piloto de avaliação. “Com a terapia, a mortalidade foi invertida, passou de 90% de mortalidade aos dois anos, para 100% de sobrevivência”, sublinhou o neuropediatra, José Pedro Vieira, durante a mesma sessão. Mas para ter efeitos ao nível da mobilidade, realçou, “tem de ser dado antes dos sintomas aparecerem.”
Nuno Barata, Diretor Médico para a Europa (Mid Size Countries) na Novartis, acrescenta que “apesar do benefício na sobrevivência, a AME é uma doença neuromuscular que tem uma rápida progressão da degeneração motora, pelo que é fundamental inverter esta tendência e permitir a estas crianças ter o máximo de mobilidade possível. Até porque se trata de uma doença sem degeneração cognitiva, mantendo os doentes todas as suas capacidades intelectuais. E é neste ponto onde se notam as maiores diferenças entre um tratamento na fase pré-sintomática versus fase sintomática.”
Num artigo publicado na revista científica Degenerative Neurological and Neuromuscular Disease, a médica polaca, especialista em doenças raras, Maria Jędrzejowska, escreve que “o tratamento deve ser introduzido quando os neurónios motores ainda são viáveis.” Portanto, defende, “todo esforço deve ser feito para diagnosticar a atrofia muscular espinhal no período pré-sintomático”, através do rastreio, para a doença, de todos os recém-nascidos.