Na conferência inaugural do evento Próximos – Ideias de proximidade em tempo de distanciamento, na Fundação Gunlbenkian, – a astronauta e ex-Ministra da Ciência francesa, Claudie Haigneré, reforçou a importância de alimentar o espírito crítico e o interesse pela ciência. Para os candidatos a astronautas e para os jovens preocupados com o seu futuro profissional.
Com a saída anunciada da Rússia da Estação Espacial Internacional (ISS) e a recusa relativamente à entrada da China, parece que a ideia de cooperação em torno da exploração espacial se está a perder novamente para voltar a ser um tema de oposição. Concorda?
Talvez não seja uma oposição total. A ISS é uma organização multi-lateral. A China não estava lá no início, quando começou a ser planeada. Mas era de facto um projeto multi-lateral, envolvia os russos, o Canadá, a Europa. Até no código de conduta era verdadeiramente multi-lateral. Agora vivemos num novo contexto, com novos intervenientes, como os privados, novas potências espaciais, como a China, e há também uma certa bi-polarização, com os americanos, com o seu America First e a liderança no espaço, ao mesmo tempo que se abrem à cooperação…
Quando lhes interessa…
Exato. Mas a América quer definir as regras. E a Rússia não aceita isso, não é possível. É normal que a Rússia queira ter a sua participação na missão lunar, por exemplo. E sobre isso não tiveram qualquer resposta. Aí os chineses, que são muito espertos, disseram: temos um programa, temos a capacidade de o levar avante, estamos abertos à cooperação. Ao que os russos concordaram, desde que fosse encontrado um equilíbrio. Este entendimento foi atingido, o que resultou na formação de um bloco entre Rússia e China.
E em que é que ficamos na Europa?
Diria que entramos numa fase multi-bilateral. A ISS era multi-lateral. O que acho importante é que a Europa se possa expressar, com a sua capacidade técnica, com o seu capital humano, e também com o seu investimento. Temos de ter uma Europa ambiciosa, para conseguirmos estar presente na mesa das negociações. Se isso não acontecer, vamos ficar à mercê dos americanos, que irão condicionar o que fazemos. Ou então, aceitamos ficar com os chineses e aí os americanos vão acusar-nos de não estamos com eles. Temos mesmo de ter a visão e ambição.
Sob pena de sermos silenciados…
Exato. O conhecimento e a criatividade a Europa tem. Já o orçamento, é uma decisão política. Podemos aproveitar o plano de recuperação para fomentar a educação e a inovação. Há muitas oportunidades, mas temos de decidir. A exploração espacial é uma aventura da humanidade, não pode ser só dos americanos ou dos chineses. Para mim, a Europa representa os valores e princípios, como o multi-lateralismo, a paz, a sustentabilidade.
Vê a Europa como os que dão o exemplo?
Sim, é isso. Temos o soft power, uma forma de fomentar a cooperação pacífica.
O que espera do novo diretor-geral da ESA [Josef Aschbacher]?
Bem, ele é de um país mais pequeno, a Áustria, o que é importante para uma agência intergovernamental – não serem só DGs de um grande, como a Itália ou a Alemanha. É positivo que se reconheça a importância dos estados-membro mais pequenos. A Áustria nem tem agência espacial.
Consegue antecipar quais serão os programas prioritários?
Ele é muito a favor da digitalização, inteligência artificial, empreendedorismo, programas de observação da Terra – trabalhou muito com o Copernicus, junto da Comissão Europeia, que conhece bem e sabe como funciona. Saberá como promover a cooperação entre a ESA e a Comissão. Com Woerner [anterior diretor-geral] não foi muito fácil esta cooperação. Com agências como a chinesa e até mesmo a americana, é muito mais fácil definir um sentido, conjugar esforços.
Na Europa há muitos países, muitos estados-membro, muitas agências…
Pois. Espero que consigamos encontrar consensos. Tenho muita esperança que seja possível estabelecer novas parcerias com os privados, que se tomem decisões de forma mais célere. Porque na China e na América tudo está a acontecer de forma muito acelerada. Se a Europa não for ágil na tomada de decisão, na ambição, se não trabalharmos em grupo, ficaremos numa situação difícil. Há uma certa urgência e não é apenas no espaço. Espero que haja recuperação económica, afirmação política e que sejamos capazes de oferecer uma narrativa e uma perspetiva para o futuro. Porque as novas gerações têm muitos desafios pela frente: alterações climáticas, preservação da biodiversidade, desemprego. Acredito que a exploração espacial seja uma forma de abrir portas, mesmo que não seja possível concretizar tudo. É uma forma de olhar para cima, para o futuro, de ter perspetiva. Espero que os jovens tenham vontade de mudar, de fazer coisas novas.
Portugal tem uma agência espacial. Faz sentido para um país pequeno e não tão rico como a Áustria, por exemplo, que nem tem uma agência?
Não sou a pessoa certa para responder a isso. Mas acredito que Portugal possa ser um catalisador, em temas como a ciber-segurança, observação da Terra a partir do espaço, graças à sua posição no Atlântico. Pode ser um líder, um catalisador da visão do Atlântico, o que é essencial para o futuro.