O Governo não prevê usar as redes móveis para localizar pessoas e confirmar se estão ou não cumprir os períodos de quarentena ou de isolamento social impostos no combate à pandemia Covid-19. “Essa medida não está, para já, a ser equacionada”, refere o gabinete do Ministro das Infraestruturas e Habitação Pedro Nuno Santos. Além de não prever o uso das redes móveis para monitorizar pessoas previamente identificadas e que, eventualmente, tenham sido sujeitas a quarentena por suspeita de contágio, o Governo também não tem planos para a localização, através dos telemóveis, de multidões cujos dados tenham sido previamente anonimizados, apurou a Exame Informática.
O uso dos dados que os telemóveis enviam para as antenas dos operadores pode revelar-se uma importante ferramenta no combate à pandemia, mas, eventualmente, poderá exigir uma alteração à lei nacional. E essa é uma das razões que, eventualmente, poderá travar o Governo se quiser deitar mãos ao desenvolvimento de uma ferramenta de monitorização tanto de indivíduos previamente identificados como de populações depois da anonimização dos dados.
Raquel Brízida Castro, especialista na Constituição portuguesa e professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa recorda que há uma única exceção contemplada para o tratamento de metadados, que incluem informação sobre o tráfego, elementos necessários para uma ligação à rede, ou a própria localização de intervenientes de uma chamada telefónica ou de um SMS, através das coordenadas que ambos telemóveis enviam para antenas dos operadores móveis.
Uma das questões que temos de colocar é se existe um meio menos restritivo para limitar a propagação de uma epidemia do que estabelecer controles de localização de pessoas em tudo semelhantes à pulseira eletrónica”
Luís Neto Galvão
Os metadados “são consensualmente protegidos pelo sigilo das comunicações”, recorda Raquel Brízida Castro, para depois acrescentar: “A Constituição estabelece apenas uma exceção a essa regra proibitiva. Essa ingerência é possível, mas apenas em processo criminal. E mesmo em processo penal, de acordo com a nossa jurisprudência, o juiz de instrução só autoriza o acesso pelo Ministério Público a metadados de suspeitos determinados ou determináveis, perante a notícia de um crime”.
O decreto presidencial, que define os limites do que o Governo pode ou não fazer em termos de limitação dos direitos dos cidadãos, é omisso quanto ao uso de tecnologias para a monitorização de pessoas – mas admite “o confinamento compulsivo no domicílio ou em estabelecimento de saúde, o estabelecimento de cercas sanitárias, assim como, na medida do estritamente necessário e de forma proporcional, a interdição das deslocações e da permanência na via pública”. O que levanta a questão quanto à legalidade do uso de tecnologias de monitorização de pessoas, caso esse uso seja feito à luz da declaração do Estado de Emergência
Luís Neto Galvão, especialista em privacidade e proteção de dados da SRS Advogados, recorda que a Constituição portuguesa “proíbe a ingerência nas telecomunicações e demais meios de comunicação”, mas admite que o Estado de Emergência possa abrir caminho a exceções devidamente justificadas: “a declaração do Estado de Emergência permite ir muito mais longe na restrição dos direitos fundamentais. Como em tudo, é determinante analisar em detalhe as circunstâncias em que têm lugar restrições a direitos, liberdades e garantias, nomeadamente se é respeitada uma certa proporcionalidade ao fazê-lo. Uma das questões que temos de colocar é se existe um meio menos restritivo para limitar a propagação de uma epidemia do que estabelecer controles de localização de pessoas em tudo semelhantes à pulseira eletrónica”.
José Magalhães, deputado do PS que assumiu, no passado, cargos governativos nos ministérios da Administração Interna e Justiça, também se pronunciou sobre este tema em entrevista à Exame Informática que se encontra disponível no Facebook. Veja aqui a entrevista:
Nos casos em que é usada a pulseira eletrónica, há uma decisão de um juiz, após provas confirmadas em tribunal ou indícios suficientemente fortes que levem a suspeitar da prática de um crime – e é essa decisão que suporta a monitorização de pessoas através das redes móveis. A declaração do Estado de Emergência admite o “confinamento compulsivo” a pessoas que revelam sintomas associados com o Covid-19, mas a Constituição apenas permite que pessoas com distúrbios psíquicos sejam colocados compulsivamente nos locais indicados para esse efeito. Mas essa mesma Constituição prevê o direito à proteção de saúde. O que levanta a questão: qual o direito que deve prevalecer?
Raquel Brízida Alexandra recorda que “o que está em causa é a admissibilidade de uma afetação brutal de direitos fundamentais num sentido clara e expressamente rejeitado pela Constituição”. O confinamento compulsivo, apesar das dúvidas levantadas quanto à constitucionalidade, até pode ter alguma justificação técnica em casos de suspeita de contágio, mas não pode ser aplicado de forma indiscriminada a quem não apresenta esses sintomas. “O princípio da proporcionalidade ferirá de inconstitucionalidade qualquer medida que permita, sem a intervenção de um juiz, no âmbito de um processo penal, o acesso aos metadados de cidadãos saudáveis, que não estão infetados nem suspeitos”, refere.
Perante este quadro legal, o raciocínio é fácil de seguir: Se é inconstitucional o confinamento compulsivo sem ordem de juiz para pessoas que não estão a cometer crimes nem têm “anomalias psíquicas”, logo também deverá igualmente ser ilegal o uso de tecnologias para a localização de pessoas nestas circunstâncias.
Mesmo nos Estados de Emergência, a supressão de direitos tem de ser definida com limites temporais e de extensão e tendo em conta fins e meios usados. “Estando em causa uma emergência sanitária, as medidas a adotar devem sobretudo ser restritivas da mobilidade e liberdade dos cidadãos. Para garantir o confinamento obrigatório de infetados não excluiria à partida a adoção de uma medida de monitorização. Mas isso teria de respeitar a proporcionalidade e, nas circunstâncias atuais, em que são limitados os casos de desobediência, julgo dificilmente aceitável tal medida”, explica Luís Neto Galvão.
Nos diferentes países afetados pela pandemia do Covid-19, as tecnologias de monitorização de indivíduos e multidões tem vindo a ser aplicada. A Coreia do Sul protagonizou provavelmente o caso mais extremo: com o crescendo do número de infetados, as autoridades aprovaram a inserção dos dados que os telemóveis enviam para as antenas dos operadores num mapa dinâmico de acesso livre para o público que não só permite saber onde é que se encontra uma determinada pessoa, como também pode ser útil para, através do cruzamento de dados com transações de cartões bancários ou até acessos à Net, dar a conhecer os percursos de alguém contagiado nos dias anteriores.
Em Israel, foi aprovada legislação que abre caminho à localização de pessoas sem mandado judicial através das redes de telecomunicações. No Irão, há notícias de apps que abusam da privacidade dos internautas, e na Rússia, o reconhecimento facial não foi enjeitado como ferramenta para detetar se uma pessoa está ou não a respeitar a quarentena.
José Magalhães admite que o combate à Covid-19 dá o mote para um futuro debate sobre a legislação nacional pós-Covid19. E dá como exemplo a monitorização de ajuntamentos e grupos de pessoas, com dados previamente anonimizados, que poderia ser útil para conter situações de disseminação do vírus: “Esses dados anonimizados e de grande dimensão, os megadados como se diz numa expressão que hoje é vulgar, podem ajudar muito a saber onde é que há concentrações (de pessoas) que indiciam o desrespeito pela lei ou pelas instruções das autoridades encarregadas da aplicação da lei”.
A Exame Informática contactou a Comissão Nacional de Proteção de Dados com o objetivo de obter comentários sobre este texto, mas a entidade que supervisiona as políticas de privacidade no País não estava disponível para comentar.