A relação entre as empresas de private equity e a bolsa é praticamente inexistente em Portugal, contrariamente ao que se passa nos mercados asiáticos e dos EUA, onde o mercado de capitais é uma ferramenta bastante usada por aqueles operadores. Se olharmos para os últimos anos, não têm existido casos de sociedades deste tipo que tenham recorrido à bolsa portuguesa como estratégia de saída para os seus investimentos, preferindo vender diretamente as empresas que detêm a terceiros. Há várias explicações para esta relação fria entre o setor de private equity e a bolsa. Mas a Euronext está a tentar dar os primeiros passos de aproximação a este setor, que tem contribuído para dinamizar outros mercados.
A entidade que gere a bolsa portuguesa colocou no terreno, em março deste ano, o PE Share, um programa que conta com a parceria da sociedade de advogados PLMJ e que tem como objetivo mostrar às empresas de private equity as potencialidades do mercado de capitais como estratégia de saída. Esta é mais uma das iniciativas da Euronext para sensibilizar alguns setores sobre as potencialidades do mercado de capitais para o crescimento das empresas. Além da área de private equity, a entidade já fez programas semelhantes para empresas tecnológicas (o TechShare) e também para empresas familiares (o FamilyShare). A operadora da bolsa nacional não quis revelar o nome das empresas de private equity e de capital de risco que participaram no PE Share. Indicou apenas que tem trabalhado “com instituições de relevo e dimensão e com forte atividade na área”.
O feedback tem sido positivo, tendo os participantes demonstrado muita curiosidade e, em alguns casos, tem sido manifestada a importância do programa para uma melhor perceção de que a bolsa é uma solução de saída de algumas participações.
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Nestes contactos, a Euronext afirma que “o feedback tem sido positivo, tendo os participantes demonstrado muita curiosidade e, em alguns casos, tem sido manifestada a importância do programa para uma melhor perceção de que a bolsa é uma solução de saída de algumas participações, ao alcance destes operadores”. As principais questões dos participantes no PE Share têm-se centrado na “possibilidade de admissão do capital das empresas em carteira, bem como, em alternativa, na admissão de fundos de capital de risco”, revela a entidade que gere a bolsa nacional.
Relação distante
Apesar dos sinais positivos da PE Share, existem muitos fatores a afastarem as empresas de private equity e capital de risco da bolsa nacional. Hugo Marques, partner da Deloitte, observa que “a saída em bolsa de participadas de private equities é uma opção com algum significado nos países asiáticos e nos EUA”. Mas realça, em respostas à EXAME, que esse “não é o caso na Europa e, particularmente, em Portugal”.
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No entanto, se noutros países do Velho Continente ainda se vão realizando algumas entradas em bolsa de participadas, em Portugal essa atividade é nula. Segundo os dados mais recentes da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), relativos ainda à atividade de capital de risco em 2019, na Europa, 11% das vendas de participadas de empresas de private equity e capital de risco passaram pela bolsa. Em Portugal essa proporção é, historicamente, zero. Luís Carvalho afirma que, “no que respeita ao mercado de capitais, a atividade de capital de risco em Portugal é nula, não se tendo verificado qualquer ‘exit’ [venda de empresa participada] por via de uma oferta pública ou colocação no mercado da bolsa, sendo privilegiada a venda direta dessas empresas ou participações a terceiros”. O presidente da Associação Portuguesa de Capital de Risco (Apcri) refere à EXAME que uma das possíveis explicações para este afastamento do setor do mercado de capitais está relacionada com a dimensão das empresas portuguesas que estão nas carteiras destas entidades. “Isto explica-se pelo facto de as empresas portuguesas que foram adquiridas por fundos portugueses de capital de risco não terem normalmente a dimensão adequada para a sua colocação na bolsa, já que são principalmente PME”.
Também Hugo Marques sublinha a dimensão (ou falta dela) das empresas portuguesas detidas pelos private equities como um entrave à ligação entre o capital de risco e a bolsa. Mas o partner da Deloitte enumera outros fatores, como “uma valorização mais competitiva proporcionada por investidores, nomeadamente dos que tenham perfil setorial em função das sinergias perspetivadas; a facilidade de potenciais investidores acederem a crédito em condições competitivas e o nível de dinamismo e desempenho do mercado de capitais”.
A Euronext sublinha que “a admissão em bolsa das empresas em carteira destes operadores é um processo sem maior dificuldade do que os de outras empresas”. Defende que “a experiência recolhida no PE Share demonstra que havia a necessidade deste trabalho de sensibilização e de informação” e acredita “que o PE Share possa ter desmistificado algumas ideias, clarificando que o processo é mais simples do que inicialmente algumas instituições previam”.
O caminho para a entrada em bolsa até pode não ser um quebra-cabeças tão grande como alguns receariam. No entanto, do lado do setor de capital de risco e de private equity a ausência de ligação com a bolsa é explicada, também, pela falta de atratividade do mercado. Luís Carvalho diz que o recurso do capital de risco à bolsa “está associado à capacidade desse mercado atrair investidores” e considera que “a dimensão do mercado de capitais português é reduzida, não apenas pela menor dimensão das empresas, mas porque o investidor português privilegia outros ativos e/ou mercados”.
Como dar o clique
Apesar de a bolsa estar longe de ser o destino da saída dos investimentos das empresas de private equity e de capital de risco, há formas de tentar incentivar essa alternativa. Hugo Marques salienta que “a atração de investidores institucionais internacionais para o mercado de capitais nacional e a agilização do processo de colocação em bolsa bem como dos custos associados são exemplos de medidas que irão no sentido de incentivar a ligação entre private equities e o mercado de capitais nacionais”. O partner da Deloitte considera que, “ao longo dos anos, a Euronext Lisbon tem vindo a adotar este tipo de medidas”. No entanto, para já, esses esforços e iniciativas como o PE Share ainda não deram resultados visíveis.
A atração de investidores institucionais internacionais para o mercado de capitais nacional e a agilização do processo de colocação em bolsa bem como dos custos associados são exemplos de medidas que irão no sentido de incentivar a ligação entre private equities e o mercado de capitais nacionais
hugo marques, partner da deloitte
A esperança recai agora nas alterações que serão promovidas pelo Governo, após terem sido conhecidas, no ano passado, as recomendações da OCDE para mobilizar o mercado de capitais português para o investimento e o crescimento. Após a divulgação desse relatório, foi criado um grupo de trabalho e o Parlamento já aprovou na generalidade, com os votos favoráveis do PS e da Iniciativa Liberal, uma revisão do Código dos Valores Mobiliários que o executivo considerou ser a “mais significativa dos últimos 20 anos”. O diploma ainda será discutido na especialidade, e Hugo Marques refere que, “em função da redação final que tenha o novo quadro legislativo, este pode dar um contributo positivo no sentido de trazer as capitais de risco para o mercado de capitais em função da maior flexibilidade e simplicidade que possa permitir e das opções adicionais que pode abrir em termos de modelo de governo”. Ainda assim, o partner da Deloitte ressalva que não será esta alteração legislativa a resolver alguns dos fatores estruturais que têm afastado os private equities da bolsa, como a pequena dimensão das empresas detidas, por exemplo.
No entanto, da parte da Euronext há esperança de que estas mudanças possam ajudar a incentivar o recurso ao mercado de capitais por parte das empresas de private equity e de capital de risco. A entidade liderada por Isabel Ucha considera que “o quadro legislativo recentemente aprovado enforma alterações muito importantes na linha da simplificação do regime instituído e do alinhamento com o quadro comunitário o que torna mais percetível e antecipa muitas das questões colocadas no âmbito do mercado de capitais”. E detalha que “o recurso ao mercado por parte de private equities pode acontecer de várias formas, designadamente as mais recentes e amplamente discutidas com as autoridades nacionais, através das SIMFE [sociedades de investimento mobiliário para fomento da economia) e das SPAC”.
Seria fundamental aumentar a atratividade para investidores privados e institucionais, nomeadamente, tributando as mais-valias com ações de empresas de pequena e média capitalização da mesma forma que se tributam as das pequenas empresas não cotadas.
Luís carvalho, presidente da apcri
Mais ainda do que instrumentos como as SIMFE e as SPAC, a forma de dar o clique na relação entre a bolsa e as empresas de private equity passaria, na perspetiva de Luís Carvalho, sobretudo por medidas fiscais que tornem o mercado mais atrativo: “Seria fundamental aumentar a atratividade para investidores privados e institucionais, nomeadamente, tributando as mais-valias com ações de empresas de pequena e média capitalização da mesma forma que se tributam as das pequenas empresas não cotadas”. Defende que esta era uma forma de canalizar liquidez para a bolsa. O presidente da Apcri relembra ainda que a subida da taxa de retenção na fonte relativa a rendimentos de ativos financeiros subiu de 20% para 28% antes da chegada da Troika e ainda não foi revertida. Além disso, considera que, à exceção dos fundos regulados, existem dificuldades em termos fiscais e de burocracia relativamente à entrada de investidores estrangeiros no mercado nacional, sejam eles privados, family offices ou estruturas corporativas.
Até aqui, quer a pequena dimensão das empresas nas carteiras dos private equities portugueses quer a menor atratividade do mercado de capitais português têm esfriado a relação entre a bolsa e o capital de risco. A esperança do setor e da entidade que gere a bolsa é que as alterações prometidas pelo Governo para a dinamização do mercado de capitais ajudem a incentivar estratégias de saída das empresas de capital de risco que passem por uma oferta pública de venda ou por outra solução a envolver o mercado de capitais.
Os “cheques em branco” que podem ajudar a dinamizar o mercado
As SPAC (special purpose acquisition companies) são empresas constituídas com o objetivo específico de fazer aquisições. Têm sido bastante populares nos EUA e são conhecidas como as empresas dos cheques em branco, que captam investimento em ofertas públicas de venda para depois conseguirem realizar uma compra que rentabilize esse capital. Geralmente, têm uma equipa de gestão experiente em determinado setor que procura alvos para fusões ou aquisições.
A Euronext acredita que utilizar soluções deste tipo no mercado nacional ajudaria a dinamizar a bolsa portuguesa e seria mais uma opção para as empresas de private equity e de capital de risco. A operadora da bolsa nacional revela que o Governo e a CMVM estão a trabalhar “num quadro normativo” que torne possível a existência de SPAC no mercado nacional. E acredita que poderão ter “mecanismos catalisadores de uma dinâmica de financiamento alternativo e complementar às tradicionais utilizadas pelos private equities”. Por exemplo, uma SPAC poderia ajudar a aumentar os potenciais compradores para empresas detidas por sociedades de capital de risco. “Na medida em que as SPAC se possam afirmar como instrumentos que potenciem as saídas das private equities, elas serão benéficas”, considera Hugo Marques. Mas o partner da Deloitte realça que pode haver outra face da moeda. “Caso seja um instrumento usado mais para angariação de fundos para investimentos específicos, o impacto para as private equities será neutro ou mesmo negativo, pela concorrência acrescida que podem representar”.
O setor de capital de risco mostra ceticismo. Luís Carvalho, presidente da Apcri, observa que “a grande maioria dos investidores privados portugueses tem evitado investir em fundos de capital de risco, justificando frequentemente essa decisão pelo facto de não controlarem a sociedade gestora e os investimentos que estes irão efetuar”. Numa SPAC também não teriam esse controlo. ”Assim, temos dúvidas de que a implementação de um regime específico para regular este novo instrumento venha trazer benefícios e/ou valor acrescentado significativo, pois os investidores serão confrontados com a mesma questão de falta de controlo”, diz o presidente da Apcri. No entanto, admite que “é algo que teremos de analisar com mais profundidade”.
Artigo publicado originalmente na edição 448, de agosto de 2021, da EXAME