1h30. Foi mais ou menos o tempo que passou entre a notícia de que o défice orçamental de 2022 tinha ficado a quilómetros do valor orçamentado e o anúncio do Governo de novas medidas de apoio ao rendimento dos portugueses. Um Executivo que, desde o primeiro ano, tem superado sempre as metas de contas públicas, voltou a mostrar-se surpreendido com a dimensão do desvio e, seis meses depois do pacote anterior, apresenta outro programa para as famílias.
IVA zero para bens alimentares de primeira necessidade (condicional à negociação com produtores e distribuidores), apoios à produção agrícola, mais 1% de aumento para os funcionários públicos e um apoio extraordinário de 30 euros/mês a pagar às famílias mais pobres durante um ano. Estas foram as principais novidades apresentadas pelo Governo. Numa conferência de imprensa com Mariana Vieira da Silva e Ana Mendes Godinho, Fernando Medina voltou a assumir a importância das “contas certas” e de serem elas que permitem ao Executivo ir mais longe, recusando que haja falta de transparência na forma como gere o orçamento.
“Assumimos um compromisso com os portugueses: ter contas certas, porque elas permitem tomar boas medidas”, sublinhou o ministro das Finanças, argumentando que é um défice controlado que lhe dá “liberdade de agir e decidir” e que o Governo se comprometeu a distribuir “toda a receita adicional” alcançada neste momento de inflação, tendo já apresentado o quarto maior pacote de apoio da zona euro. “Hoje distribuímos às famílias vulneráveis e de classe média o que o país conseguiu em 2022. Acertamos as contas com os portugueses no momento que mais necessitam.”
Talvez não fosse este o plano desde o início. Afinal, entre uma referência do primeiro-ministro no Parlamento e a apresentação das medidas passaram apenas dois dias, com um “brilharete” no défice pelo caminho. Esta manhã, os dados do INE mostraram que o saldo orçamental de 2022 tinha ficado num défice de 0,4% do PIB. Muito longe dos 1,9% orçamentados inicialmente e até dos 1,5% que António Costa começou a citar há três meses.
A diferença é de 3,5 mil milhões de euros. Mais do que o Governo injetou na TAP para a salvar. Num momento em que as idas ao supermercado são cada vez mais dolorosas para as famílias portuguesas – apertadas ainda com outras subidas de preços e com agravamentos dos juros -, essa poupança extra para o Estado poderia ser difícil de justificar. O Governo não deixou passar duas horas entre o momento em que ele foi conhecido e e a hora de anunciar novas medidas.
Durante a conferência de imprensa, Fernando Medina procurou contrariar a ideia de que essa folga era desejada, notando que a enorme diferença se deveu a um crescimento económico surpreendentemente elevado e a questões contabilísticas (mecanismo de controlo dos preços do gás só conta em 2023 e impostos diferidos não entram no défice) e que o Governo foi aprovando mais medidas à medida que se ia apercebendo da folga que poderia ter, procurando desmistificar que tenha havido algum jogo de expectativas.
“Nós não trabalhamos para obter um resultado excepcional. Queremos é cumprir as metas. É importante. Portugal tem uma dívida pública que diminuiu, mas é significativa e os encargos [com a dívida] estão a ter uma subida significativa”, acrescentou Fernando Medina, não deixando de notar os méritos dessa cautela orçamental. “O que vemos todos os dias é que a incerteza é uma constante no mundo em que vivemos e há desenvolvimentos que não dominamos. Uma gestão prudente é essencial para a tranquilidade das famílias.”
Neste capítulo, horas depois, o ministro teria o apoio de Mário Centeno que, na conferência de imprensa do Banco de Portugal, disse que não reconhecia “o conceito de folga orçamental”, num país com dívida pública tão alta.
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Dia da Marmota em 2023?
Se o compromisso é ir apoiando mais a economia à medida que os resultados vão sendo melhores, é impossível não projetar o que pode acontecer no médio prazo. É que ainda só estamos em março e há já bastantes sinais de que a projeção de crescimento do Governo (1,3%) voltará a ser ultrapassada este ano. O primeiro de todos diz respeito ao ano passado: o facto de a economia se ter comportado melhor em 2022 dá automaticamente um impulso à atividade em 2023. Além disso, poucas horas depois de o Governo apresentar estas novas medidas, o Banco de Portugal estava a atualizar as suas previsões económicas, assumindo agora que a economia nacional crescerá 1,8%.
Como em 2022 – e em quase todos os anos desde 2016 – mais crescimento traduz-se em mais espaço orçamental. Ainda sem conhecer as novas medidas, o Conselho das Finanças Públicas antecipava esta semana que o défice de 2023 ficaria abaixo do orçamentado (0,6% vs 0,9% do PIB).
Desde 2016, quando o PS assumiu a governação do país, só por duas vezes o défice ficou melhor que a meta, quando o Estado teve de injetar dinheiro na Caixa Geral de Depósitos e quando a pandemia revolucionou as nossas vidas. No final deste ano, irá o Governo novamente mostrar-se surpreendido? Existindo margem, pode carregar mais nos apoios ou optar por descer ainda mais rápido o rácio de dívida pública. De qualquer forma, a estratégia parece continuar a ser a apresentação de pacotes de apoio extraordinários e não programas mais estruturais e prolongados no tempo.
Fernando Medina não se quis comprometer para este ano. “Só temos um mês de execução de IVA, apresentaremos o Programa de Estabilidade em abril. Posso reafirmar estes princípios fundamentais: trabalhamos para cumprir os objetivos de défice e de dívida, porque são fundamentais para proteger o País, mas não procuramos ir além desses objetivos”, voltou a sublinhar.
Mais: o governante admitiu que, caso o ano corra pior do que se espera, poderá até deixar o défice derrapar. “Deixaremos flutuar os estabilizadores automáticos”, afirmou, embora “tenha a expectativa de que estaremos do outro lado”. Isto é, bater novamente a meta orçamentada.
Para já, apesar das dificuldades, a economia está a aguentar-se. Esta tarde, o Banco de Portugal reviu a previsão de crescimento em alta (1,8% vs 1,5%), ao mesmo tempo que estima um recuo mais rápido da inflação (5,5% este ano) e está um pouco mais otimista acerca das exportações e do consumo privado. Este último campo, apesar da subida de preços, ainda não colapsou, mas a resistência das famílias será testada. Ainda esta manhã o INE noticiou o recuo da poupança de 9,9% para 6,1%, o que significa que, em breve, os portugueses já não poderão recorrer a essa almofada para manter o consumo.
O que foi apresentado?
Este é o segundo grande pacote de apoio à economia apresentado pelo Governo em reação à explosão dos preços e aparece seis meses depois do anterior – o “Famílias Primeiro”, que tinha medidas diferentes mas ambição orçamental semelhante. Este não tem slogan e foi recebido por um coro de críticas da oposição, com as acusações a variarem entre a ineficácia e a falta de ambição. No total, são 2,5 mil milhões de euros em medidas, das quais apenas 1,6 mil milhões são verdadeiras novidades (900 milhões de euros dizem respeito ao pacote de habitação). As duas que pesam mais são claramente o novo apoio às famílias vulneráveis (580 milhões); e o IVA zero para os bens alimentares essenciais (410 milhões).
A primeira medida será aplicada durante um ano e alcançará cerca de um milhão de famílias mais pobres, com um apoio de 30 euros por mês (pago trimestralmente), a que acrescem 15 euros por filho abrangido pelo abono de família (até ao quarto escalão). O Governo estima que chegará, no total, a três milhões de portugueses.
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A segunda medida é bem mais polémica, até porque o Governo – com a companhia de muitos economistas – tem dedicado os últimos meses a criticá-la duramente, citando o exemplo espanhol, onde o IVA foi reduzido, mas esse alívio foi absorvido pelos distribuidores e teve apenas um efeito passageiro na inflação. Qual é a diferença? O ministro das Finanças explicou que a medida apenas avança se as negociações com o setor da produção alimentar e das grandes distribuidores forem bem-sucedidas. Nessas negociações, o Estado procurará ter garantias de que a descida de IVA é totalmente repercutida no preço pago pelas famílias.
“Estamos a negociar um quadro muito diferente, num acordo que junta produção, distribuição e Governo, para enfrentar em conjunto” esta crise, explicou Fernando Medina, dando poucos detalhes sobre que mecanismos podem estar a ser considerados para garantir a eficácia da medida. Disse apenas que as negociações têm avançado rápido. “Unilateralmente, a medida não funciona, mas no âmbito de um acordo – que está a ser negociada com a APED – pode e vai funcionar.” Neste campo, há ainda a destacar um apoio de 140 milhões de euros para o setor da produção agrícola, a pagar ao longo de 2023, mas ainda sem detalhes.
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Fazem ainda parte deste pacote medidas específicas para a Função Pública. Em específico, um aumento de mais 1% dos salários dos trabalhadores do Estado, assim como um reforço no subsídio de alimentação (passa de 5,2 para 6 euros). Por arrasto, aumentará também a isenção deste subsídio para os trabalhadores do privado (permitindo um aumento líquido sem gastar mais). As duas medidas terão um custo de 195 e 250 milhões de euros, respetivamente.
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Pode ler mais sobre as medidas apresentadas aqui.