“Se perguntarmos a alguém por que investe em bitcoin, na maioria dos casos a resposta será que esperavam que o preço suba, e não que o investimento resultou de qualquer consideração sobre o valor da bitcoin”, considera Margarida Abreu. Em respostas por escrito à EXAME, a professora de Economia no ISEG refere: “Se, adotando uma abordagem contemporânea, descontássemos a pegada carbónica da bitcoin, dado o enorme consumo de energia necessário à mineração de cada unidade de bitcoin, o seu valor fundamental poderia mesmo ser considerado negativo”.
A bitcoin e outras criptomoedas aparentam começar a ser encaradas mais como um ativo para investimento e não tanto como uma moeda ou um sistema de pagamentos. Esse poderá ser o futuro da bitcoin e de outras criptomoedas?
A popularidade inicial das criptomoedas é indissociável de um sentimento anti-sistema financeiro, contra as instituições financeiras e os bancos em particular, vistas como responsáveis (e com alguma razão) pela crise financeira internacional de 2007-2009. Pessoas e organizações abraçaram a ideia da existência de meios de pagamento alternativos que curto circuitassem o sistema e as libertassem dos bancos responsáveis pela crise. Mas este sentimento teve pouca tradução de facto na sua utilização como meio de pagamento. O seu sucesso parece-me estar mais ligado à possibilidade que oferece de transferir valor sem deixar rasto identificável das partes envolvidas na transação e, portanto, ao sub-mundo das transações de legalidade duvidosa e, mais recentemente como ativo de investimento financeiro de elevadíssimo risco.
A bitcoin e as critomoedas em geral nunca constituíram, na verdade, moeda, no sentido económico do termo. Do ponto de vista dos economistas uma moeda deve cumprir três funções: meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor. A bitcoin satisfaz marginalmente a primeira destas funções na medida em que poucas empresas aceitam bitcoins como meio de pagamento, embora algumas recentemente, como a Tesla tenham anunciado que tencionam considerar a sua aceitação, mas está longe de vir a ser universalmente aceite. Já as outras duas funções da moeda são claramente insuficientemente satisfeitas, essencialmente devido à forte volatilidade do seu valor. Esta volatilidade é incompatível com a função de unidade de conta, pois implica que o preço de bens e serviços expresso em bitcoins teria de estar constantemente a ser alterado. Por outro lado, também não é boa ideia guardar valor num ativo cujo preço pode variar abruptamente e não forçosamente no bom sentido.
Mas se a bitcoin se aproxima mais de um instrumento financeiro de elevadíssimo risco, do que de moeda, a tecnologia de pagamentos extremamente inovadora que a suporta – a blockchain – foi revolucionária e veio para ficar, marcando uma nova fase na evolução dos sistemas de pagamento, mais desmaterializada, mais digital, mais segura e mais rápida.
Em conclusão, a bitcoin é essencialmente um ativo financeiro cujo valor não é garantido por nada nem ninguém, nem tem qualquer relação com a economia ou com qualquer outro ativo subjacente. Faria, por isso, talvez mais sentido chamar-lhes ativos financeiros encriptados do que criptomoedas. Mas se a bitcoin se aproxima mais de um instrumento financeiro de elevadíssimo risco, do que de moeda, a tecnologia de pagamentos extremamente inovadora que a suporta – a blockchain – foi revolucionária e veio para ficar, marcando uma nova fase na evolução dos sistemas de pagamento, mais desmaterializada, mais digital, mais segura e mais rápida.
São cada vez mais os grandes bancos internacionais a criar unidades ou negócios dedicados às criptomoedas. Existem também gestoras de ativos que já aconselham os seus clientes com maior perfil de risco a alocar uma pequena parte do portfolio a criptomoedas. Isto pode significar que a bitcoin e outras criptomoedas se podem tornar num investimento mais comum?
Há claramente uma evolução no mundo das recomendações de investimento, no sentido em que as criptomoedas passaram de intocáveis há uns anos atrás, para ativos recomendados em carteiras para muitos investidores individuais. A bitcoin valorizou muito e muito rapidamente e esta valorização criou uma criptomania que atraiu novos investidores, mais jovens, mais digitalizados, com maior tolerância ao risco e que está a ser rentável para muitos agentes no mercado. Mas o apetite por este tipo de investimentos parece circunscrito a investidores individuais, a um certo tipo de fundos de investimento, também a algumas empresas, mas continua a não atrair investidores institucionais.
São sobretudo as empresas que transacionam em bitcoins quem parece estar a aproveitar melhor o momento, cobrando com moeda fiduciária comissões que em qualquer outro mercado seriam consideradas escandalosas.
São sobretudo as empresas que transacionam em bitcoins quem parece estar a aproveitar melhor o momento, cobrando com moeda fiduciária comissões que em qualquer outro mercado seriam consideradas escandalosas: a Coinbase cobra 1,49% por qualquer compra ou por qualquer venda que seja feita. A mesma taxa é requerida pela Revolut ou pelo recente unicórnio austríaco Bitpanda.
Há alguma literatura académica que justifica a incorporação de bitcoins em carteira na medida em que permite elevar a fronteira eficiente, isto é elevar o conjunto das melhores combinações risco /rentabilidade esperada possíveis de obter numa carteira a partir dos ativos disponíveis no mercado. Mas estes resultados são claramente muito dependentes do período de analise das observações.
Alguns analistas e entusiastas das criptomoedas têm defendido a tese de que a bitcoin e outras moedas virtuais são uma espécie de ouro digital, funcionando como reserva de valor numa altura em que os bancos centrais têm expandido a base monetária a um ritmo quase sem precedentes. Este argumento tem algum tipo de fundamento? Pode ser um sinal de alerta para os bancos centrais?
A maioria dos ativos está associada a um fluxo de rendimentos (ações, obrigações, papel comercial) ou a uma utilidade (a moeda é usada como meio de pagamento) ou ao uso que deles podemos fazer (terrenos, casas). A bitcoin, tirando a utilidade de se poder transferir anonimamente valor para outrem sem ser identificado, têm de facto pouco valor intrínseco: não proporciona nenhum fluxo de pagamentos, nem qualquer outro serviço. Se, adotando uma abordagem contemporânea, descontássemos a pegada carbónica da bitcoin, dado o enorme consumo de energia necessário à mineração de cada unidade de bitcoin, o seu valor fundamental poderia mesmo ser considerado negativo.
Se, adotando uma abordagem contemporânea, descontássemos a pegada carbónica da bitcoin, dado o enorme consumo de energia necessário à mineração de cada unidade de bitcoin, o seu valor fundamental poderia mesmo ser considerado negativo.
Se perguntarmos a alguém por que investe em bitcoin, na maioria dos casos a resposta será que esperavam que o preço suba, e não que o investimento resultou de qualquer consideração sobre o valor da bitcoin. Um ativo sem valor intrínseco pode subir de preço devido à crença coletiva de que o seu preço continuará a subir, mas esse mercado tem o risco de gerar perdas dramáticas. A evolução do preço da bitcoin é uma grande incógnita, a criptomania pode rebentar a qualquer momento e a possibilidade de uma depreciação estrondosa idêntica ou superior à de 2018 está longe de excluída.
A bitcoin tem em comum com o ouro a sua raridade, dada a sua limitação quantitativa por conceção. Mas ao contrário da bitcoin, o ouro tem usos industriais e tem utilidade como ativo de cobertura contra a inflação. Não me parece que a bitcoin possa vir a rivalizar com o ouro ou se possa constituir como um ativo de reserva de valor.
Os bancos centrais aparentam estar a preparar o lançamento das suas próprias moedas digitais (CBDC). Esta poderá ser uma solução eficaz para garantirem que não perdem o monopólio do dinheiro e da supervisão dos meios de pagamento e travarem a ascensão e a maior utilização de critptomoedas como a bitcoin e de stablecoins como a diem? A moeda é um bem público, depende da confiança coletiva e, nesse sentido, a moeda e a soberania dos Estados estão inexoravelmente ligadas, para bem de todos nós.
Precisamos de instituições públicas, os bancos centrais, que inspirem essa confiança e garantam o valor da moeda e o bom funcionamento dos sistemas de pagamento. Isso é compatível com iniciativa privada, com inovação financeira, com fintech, com a chamada distributed ledger technology (DLT) mas a regulação e a supervisão das instituições ligadas ao processo de criação de moeda terá que ser sempre pública, tal como daquelas ligadas ao sistema de pagamento, para obviar conflitos de interesse e para que o interesse publico prevaleça.
Foi em larga medida a política monetária implementada pelo Eurosistema que nos permitiu ultrapassar a crise financeira internacional de 2007-2009, a crise das dividas soberanas europeia 2011-2014 e que hoje é central na recuperação da crise pandémica.
Os bancos centrais não têm o monopólio da emissão monetária no sentido em a moeda banco central (notas e moedas em circulação) coexiste com moeda escritural emitida pelos bancos, sendo esta ultima claramente dominante. Mas a centralização do sistema, e um controlo indireto são necessários para garantir um saudável financiamento da economia e garantir que dispomos coletivamente do instrumento “política monetária” para nos protegermos nos piores momentos. Foi em larga medida a política monetária implementada pelo Eurosistema que nos permitiu ultrapassar a crise financeira internacional de 2007-2009, a crise das dividas soberanas europeia 2011-2014 e que hoje é central na recuperação da crise pandémica.
Hoje mais de 80% dos bancos centrais no mundo está a refletir sobre a possibilidade ou já iniciou a implementação de moeda digital. É o desenvolvimento natural do sistema de pagamento que aproveita a inovação tecnológica e responde à procura de serviços de pagamento duma sociedade crescentemente digitalizada e mobilizada em reduzir a pegada ecológica. A moeda central digitalizada vai permitir às pessoas ter acesso a um meio de pagamento digital simples, sem risco e tão confiável como qualquer outra forma de moeda banco central, isto é, como as notas e moedas em circulação que continuarão a existir.
No que respeita à função meio de pagamento, nem a bitcoin nem as demais criptomoedas constituíram nem penso que venham a constituir uma verdadeira ameaça aos bancos centrais, na medida em que têm sido sobretudo veículos de investimento financeiro como referi anteriormente. As criptomoedas permitem a transação direta entre pessoas/empresas sem envolvimento de instituições monetárias, no entanto pelo facto de ninguém nem nenhuma instituição garantir o seu valor, e por esse valor ter sido historicamente muito instável, nunca se desenvolveram como meio de pagamento. Acresce ainda que são relativamente limitadas no número de transações que possibilitam por unidade de tempo: enquanto que, por exemplo, a Visa pode executar 24000 transações por segundo, a bitcoin só permite realizar 7 por segundo. A bitcoin e as criptomoedas em geral não foram, portanto, e até hoje, disruptivas das funções chave dos bancos centrais nem dos mecanismos de transmissão da política monetária.
As stablecoins podem vir a influenciar a liquidez e afetar o os mecanismos de transmissão da política monetária, dependendo do nível de aceitação que venham a ter e da importância de cada moeda no seu cabaz de referência. A supervisão terá de se reinventar para acompanhar estes desenvolvimentos.
As stablecoins são outro tipo de desafio e talvez não se possa dizer o mesmo. Sendo o seu valor estável por definição pois é indexado a um cabaz de ativos estáveis (moeda, títulos, etc), por ser proposto por empresas tecnológicas com acesso direto a muitos consumidores finais (no caso da diem estamos a falar das pessoas que têm conta no Facebook) e por se constituírem como alternativa a pagamentos que envolvam transações cambiais, têm potencial para se poderem vir a constituir como meios de pagamento universais e eventualmente como reserva de valor. As stablecoins podem vir a influenciar a liquidez e afetar o os mecanismos de transmissão da política monetária, dependendo do nível de aceitação que venham a ter e da importância de cada moeda no seu cabaz de referência. A supervisão terá de se reinventar para acompanhar estes desenvolvimentos.