Estamos cada vez mais perto de ter uma conta criada no BCE, ou noutras instituições financeiras, carregada com euros digitais emitidos pelo banco central. Isso poderá levar a uma revolução na forma como fazemos pagamentos e guardamos as nossas poupanças, mas também no próprio papel dos bancos comerciais e no modo como se operacionalizam as decisões de política monetária. A digitalização da economia, a ascensão das criptomoedas e a concorrência de projetos como a Libra fizeram com que os bancos centrais acelerassem o desenvolvimento das suas próprias moedas digitais. As autoridades monetárias querem defender o monopólio da emissão de dinheiro, garantir a fiabilidade e o controlo do sistema de pagamentos, e explorar novos instrumentos de política monetária.
Na China e na Suécia, os bancos centrais estão adiantados no desenvolvimento das suas moedas digitais, e o Banco Central Europeu (BCE) também deverá seguir esse caminho. A decisão só será oficializada em meados deste ano, mas os responsáveis da instituição têm preparado o terreno para a emissão de euros digitais. “O que está em causa é nada menos que o futuro do dinheiro. Com o dinheiro privado a tornar-se digital, o dinheiro soberano também precisa de se reinventar”, defendeu Fabio Panetta, presidente do grupo de trabalho do banco central sobre o euro digital, num discurso feito em novembro do ano passado. O membro da comissão executiva do BCE acrescentou ainda que esse objetivo “requer que o dinheiro do banco central esteja disponível, sejam quais forem as circunstâncias – na forma de numerário ou, claro, possivelmente também como um euro digital”.
A questão já não é tanto se teremos moedas digitais emitida por diversos bancos centrais, mas sim quando e como é que essa solução será implementada. Essa será a forma de as autoridades monetárias protegerem a soberania e defenderem o seu monopólio na emissão de moeda, respondendo à cada vez maior popularidade das criptomoedas e às ambições das grandes tecnológicas de desenvolverem moedas digitais globais, como é o caso da libra, patrocinada pelo Facebook.
“Uma das motivações para a investigação e desenvolvimento de moedas digitais por parte dos bancos centrais são as preocupações de que uma alternativa credível e conveniente ao dinheiro soberano se torne disponível aos cidadãos, reduzindo a capacidade do banco central de influenciar as condições monetárias”, afirma Andrew Tilton, economista do Goldman Sachs, num estudo a que a EXAME teve acesso. Também os analistas da Moody’s consideram, num relatório, que “o potencial da moeda digital libra e de outros projetos similares para substituir as moedas oficiais levou muitos bancos centrais a defender o papel do dinheiro público”.
A pandemia serviu como um catalisador, acelerando a transição rumo a um novo normal digital.
christine lagarde
Os trabalhos para estudar o lançamento das moedas digitais dos bancos centrais foram acelerados por causa da pandemia. Apesar de, nos últimos anos, já se notar uma diminuição da utilização de notas e moedas, essa tendência tornou-se mais pronunciada nos últimos meses, em parte, por receios sobre a transmissão do vírus. Um estudo divulgado pelo BCE no final de 2020 mostrava que quatro em cada dez inquiridos usaram menos o numerário desde o início da pandemia, e a maior parte deles admite continuar a depender menos de notas e moedas. “É improvável que esta tendência seja revertida”, considerou Christine Lagarde, num discurso recente. “A pandemia serviu como um catalisador, acelerando a transição rumo a um novo normal digital”, observou a presidente do BCE.
Como funcionaria um euro digital
No percurso para decidir sobre um eventual lançamento de moeda digital, o BCE criou um grupo de trabalho que apresentou um relatório em outubro do ano passado sobre as vantagens e os riscos dessa opção e qual a melhor forma de a implementar. “Dependendo da sua conceção, o Euro digital poderá ter implicações, por exemplo, ao nível do funcionamento dos sistemas de pagamentos, da concessão de crédito à economia, da estabilidade financeira e da condução da política monetária”, explica Hélder Rosalino, num artigo de opinião que pode ler nesta edição da EXAME. O administrador do Banco de Portugal, que integrou o grupo de alto nível criado pelo BCE para a elaboração do relatório, explica o que poderá representar essa nova forma de moeda: “Na prática, o Euro digital será uma forma de os cidadãos europeus terem acesso a moeda de banco central (logo, sem risco) desmaterializada e no contexto de um sistema de pagamentos cada vez mais digital.”
Na prática, o Euro digital será uma forma de os cidadãos europeus terem acesso a moeda de banco central (logo, sem risco) desmaterializada e no contexto de um sistema de pagamentos cada vez mais digital.
hélder rosalino
Existem diversas formas de os bancos centrais emitirem as suas moedas digitais (CBDC, na sigla em inglês). Num estudo sobre o tema, a Moody’s enumera as opções de design que podem ser seguidas. Uma prevê o acesso direto às CBDC por particulares e empresas junto do banco central, através da abertura de uma conta ou de e-wallets. Essa hipótese é uma das analisadas pela autoridade monetária da zona euro. O relatório desenvolvido pela instituição indica que, “neste cenário, o Eurosistema tornar-se-ia no único fornecedor de serviços de pagamentos para o euro digital”. Os analistas da Moody’s consideram que este modelo traria “uma mudança radical à arquitetura financeira existente”, já que o banco central seria responsável por gerir e processar os pagamentos de retalho, função desempenhada atualmente por instituições financeiras comerciais sob supervisão das autoridades monetárias.
A desvantagem desta opção é que implicaria grandes investimentos em tecnologia por parte dos bancos centrais e prejudicaria as instituições financeiras tradicionais. Além disso, seria o banco central a ter de fazer o trabalho de know your customer, de prevenção ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Em última análise, isso abriria a porta ao fim do anonimato do dinheiro, já que o banco central poderia passar a ter o registo e validação de todas as transações. O próprio BCE enumerou uma série de riscos, caso se optasse por este modelo.
Outro dos caminhos, o mais próximo do sistema atual, passa pelo acesso indireto ao euro digital. Neste cenário, o banco central continuaria a ser o emissor da moeda digital, mas esta chegaria aos cidadãos e empresas através da intermediação dos bancos comerciais ou de outras instituições financeiras ou de serviços de pagamentos. Existe ainda a solução de se adotar um modelo híbrido, em que os particulares e as famílias podem ter conta, tanto junto do banco central como das instituições financeiras privadas, cabendo a estas últimas encontrarem formas de atrair os clientes.
Independentemente da arquitetura que venha a ser adotada, o BCE garante que a intenção não é “matar” as notas e moedas, e que o euro digital seria apenas um complemento à forma como lidamos atualmente com o dinheiro. Os autores do estudo do banco central realçam que, além de facilitar os pagamentos e acompanhar a digitalização, uma CBDC responderia “à necessidade de mitigar o risco que um incidente cibernético, desastre natural, pandemia ou outros eventos extremos poderiam colocar à prestação de serviços de pagamento”.
(Mais) um risco para os bancos
A banca tradicional, que já está sob pressão pela aceleração do digital, poderá ficar a perder também com o lançamento de moedas digitais por parte dos bancos centrais. “Algumas formas de CBDC poderão ter profundas consequências negativas para a banca comercial, já que seria substituída no papel que desempenha no sistema de pagamentos, e forçar mudanças no seu modelo de financiamento”, consideram os analistas da Moodys. A opção mais penalizadora seria a emissão direta sem a intermediação das instituições financeiras. Mas os especialistas da agência de notação financeira sublinham que “mesmo um modelo híbrido menos disruptivo iria impor, provavelmente, novos custos aos bancos e reforçar as pressões existentes aos seus modelos de negócio”.
Além dos avanços dos bancos centrais nas CBDC, os bancos vinham já a enfrentar, nos últimos anos, a concorrência das fintech e das big tech. E a expectativa é a de que, com o passar do tempo, estes rivais se tornem mais fortes e agressivos. “Isso vai afetar os bancos de várias formas”, alertam os mesmos analistas. Os principais efeitos poderão ser a diminuição da capacidade de os bancos tradicionais reterem clientes, a quebra nas suas receitas com serviços de pagamentos, o risco de pagarem mais no longo prazo para atraírem depósitos e a perda da relação direta com clientes, tornando-os apenas fabricantes de produtos financeiros com margens baixas. Para continuarem em jogo, os bancos tradicionais terão de fazer investimentos avultados em tecnologia, o que poderá levar a mais consolidação no setor.
Se o BCE decidir emitir euro digital do banco central, deve ser muito claro qual o contributo que isso pode dar que não esteja já coberto ou possa vir a ser desempenhado pelas soluções privadas de pagamentos e depósitos
federação bancária europeia
Dado o potencial que o euro digital tem para revolucionar o sistema de pagamentos e as ameaças que pode trazer à estabilidade financeira, o BCE colocou o tema em consulta pública, após divulgar o relatório sobre o mesmo – processo que terminou em meados de janeiro deste ano. O feedback bateu recordes. Houve mais de oito mil contributos de cidadãos, empresas e associações, o que é um indício do interesse e das dúvidas que a adoção de uma CBDC na zona euro está a gerar. No topo das preocupações estão questões como a privacidade, a segurança e a própria estabilidade financeira.
Entre os participantes esteve a Federação Bancária Europeia, que representa os interesses do setor. Esta associação defendeu que, “se o BCE decidir emitir euro digital do banco central, deve ser muito claro qual o contributo que isso pode dar que não esteja já coberto ou possa vir a ser desempenhado pelas soluções privadas de pagamentos e depósitos”. Considera que o setor pode suprir muitas das necessidades que o banco central considera que seriam resolvidas pelo lançamento do euro digital. A Federação deixa vários avisos sobre o que este passo pode implicar para o setor bancário, como o risco de limitar a capacidade de a banca conceder crédito à economia ou, em tempos de crise severa, levar a corridas aos bancos para transferir o dinheiro para a segurança do banco central. Se, ainda assim, o BCE optar pela sua CBDC, a Federação Bancária Europeia recomenda que “seja desenhado apenas como meio de pagamento, e a sua utilização como instrumento de poupança ou de investimento deve ser desincentivada”. Aconselha também que, caso se avance, se defina um limite para o valor de euro digital que cada cidadão ou empresa possa deter na sua wallet, para salvaguardar as outras formas de dinheiro e de pagamento.
O advento de stablecoins como a Libra e o rápido avanço de fornecedores de pagamentos à escala nacional e global motivaram os bancos centrais a considerarem, de forma urgente, as CBDC como uma estratégia defensiva.
moody’s
O BCE prometeu analisar os contributos da consulta pública até à primavera, para depois decidir sobre o lançamento da sua própria moeda digital. No entanto, as últimas indicações vindas dos responsáveis do banco central são de que é mesmo para avançar – mas com cautelas. Num fórum online organizado pela Reuters em janeiro, Christine Lagarde defendeu que “há procura” para a moeda digital. Sublinhou, no entanto, que serão necessários até cinco anos para se ter a confiança de que o sistema será seguro. O mais provável é começar-se com pequenos projetos-piloto para testar a solução.
O equilíbrio é difícil. “Os bancos centrais enfrentam um dilema”, considera a Moody’s. Os analistas da agência constatam que “o advento de stablecoins como a Libra e o rápido avanço de fornecedores de pagamentos à escala nacional e global motivaram os bancos centrais a considerarem, de forma urgente, as CBDC como uma estratégia defensiva. Se não se adaptarem, os consumidores podem na mesma mudar o comportamento e ficar com um papel debilitado”. O reverso da moeda é “que, caso se adaptem muito depressa, podem prejudicar a posição dos bancos comerciais”.
Uma nova arma de política monetária?
As moedas digitais emitidas por bancos centrais podem trazer uma revolução ao sistema de pagamentos. Mas permitiriam também travar o risco que o florescimento de cada vez mais alternativas de pagamentos fora do sistema tradicional traz para a transmissão da política monetária. Além disso, as CBDC têm potencial para serem um instrumento poderoso para as decisões dos bancos centrais se refletirem de forma mais eficaz na economia. E isso pode ser uma arma importante, numa fase em que mesmo as medidas não convencionais, como compras maciças de ativos ou juros negativos, teimam em não trazer os efeitos desejados em termos de inflação e crescimento, e alimentam o risco de bolhas e desequilíbrios em vários ativos. Nos últimos anos, por exemplo, muitos economistas têm alertado que as políticas de juros baixos e compra de ativos dos bancos centrais conduziram a sobreavaliações no mercado imobiliário e nas bolsas, já que forçam os investidores a procurar alternativas aos depósitos e à dívida pública para encontrar algum rendimento.
Atualmente, o principal canal de transmissão é através dos bancos comerciais. Mas a moeda digital pode ignorar a banca comercial, afetando não só os seus modelos de negócio mas também a forma como a política monetária do BCE influencia a economia
ing
Mas, na prática, como poderiam as moedas digitais ser um instrumento de política monetária? A forma convencional de os bancos centrais tentarem influenciar as decisões de poupança, consumo e investimento de particulares e empresas é através das taxas a que emprestam dinheiro aos bancos e do juro que oferecem para que estas instituições financeiras guardem liquidez junto da própria autoridade monetária. Com isso, tentam fazer com que o sistema bancário transmita à economia real as condições monetárias que consideram essenciais para atingir as metas de inflação e crescimento na economia.
“Atualmente, o principal canal de transmissão é através dos bancos comerciais. Mas a moeda digital pode ignorar a banca comercial, afetando não só os seus modelos de negócio mas também a forma como a política monetária do BCE influencia a economia”, referem os economistas do ING, numa nota a que a EXAME teve acesso. No relatório sobre o euro digital, o BCE explica como isso poderia acontecer: “A introdução da CBDC pode reforçar a transmissão da política monetária, permitindo ao banco central determinar a taxa de juro do euro digital para influenciar diretamente as decisões de consumo e de investimento do setor não financeiro.” No entanto, para já, a opção de usar o euro digital como um instrumento de política não aparenta ser uma das prioridades de Frankfurt, já que as possibilidades não foram estudadas a fundo no relatório.
Mas a porta fica aberta. E as CBDC podem ser também um instrumento poderoso em medidas menos convencionais que os bancos centrais venham a adotar. Alguns economistas defendem que as moedas digitais emitidas por bancos centrais ajudariam a tornar mais eficazes as políticas de taxas de juro negativas. Além disso, poderiam contribuir para concretizar o conceito do helicóptero do dinheiro, em que o banco central despeja liquidez diretamente nos cidadãos e/ou empresas sem o fazer passar pelo sistema financeiro. Neste caso, o dinheiro seria digital e a imagem talvez fosse mais semelhante a um drone do que a um helicóptero. Esta é uma das poucas medidas não convencionais a que os bancos ainda não recorreram e que poderia ser um meio de operacionalizar o conceito do rendimento básico universal – ideia que tem vindo a ser defendida por cada vez mais economistas como uma possível resposta à crise de rendimentos causada pela pandemia.
China e Suécia lideram corrida das moedas digitais emitidas por bancos centrais
> China
O gigante asiático tem em curso, desde o início de 2020, projetos-piloto da sua própria CBDC, a e-RMB, em grandes cidades. Nuno Loureiro, que venceu o concurso Champion Chip 2020 organizado pela Católica Porto Investment Club, com um trabalho sobre esta moeda, detalhou nesse trabalho que alguns funcionários públicos recebem já parte do salário em moeda digital e que Pequim pretende potenciar a utilização da moeda digital nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022. “Para fomentar a internacionalização da moeda, a China poderá fazer uso do projeto ‘Belt and Road Initiative’. Neste âmbito, poderá conceder empréstimos em e-RMB aos países participantes ou incluir cláusulas que obriguem os bancos centrais destas nações a aceitar pagamentos em e-RMB.”
> Suécia
A Suécia é o país do mundo que mais depressa caminha para uma sociedade sem notas e moedas. O numerário já só é utilizado por 9% da população, e começam a existir dificuldades de aceitação de numerário em muitos segmentos da sociedade. O banco central do país tem alertado que não há alternativa à implementação da sua CBDC, a e-krona. Desde o início do ano passado que a autoridade monetária tem em curso, em conjunto com a Accenture, um projeto-piloto para testar as melhores soluções tecnológicas e começar a emitir moeda digital. Além de Suécia e China, outros países estudam o tema, se bem que em fases mais atrasadas. O BCE está a preparar a decisão sobre o assunto, e a necessidade de CBDC também já foi alvo de discussão nos EUA.