As imagens que nos chegam da Faixa de Gaza são invariavelmente de edifícios destruídos, corpos retirados dos escombros e hospitais lotados. Com uma atenção mediática que se intensifica apenas em momentos de conflito, pode ser fácil esquecer que há ali palestinianos a viver, a trabalhar, a consumir e a abrir negócios. Ou pelo menos havia. Richard Kozul-Wright diretor para globalização e estratégias de desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) explica à VISÃO de que era feita e como funcionava a debilitada economia de Gaza.
“Não lhe chamaria uma economia funcional, pelo menos desde o bloqueio de 2006/2007”, explica o responsável das Nações Unidas, referindo-se às restrições criadas após a retirada de Israel e a vitória do Hamas nas eleições (e na posterior guerra civil com a Fatah). “Tivemos um retrocesso nestes 16 anos, com o investimento a cair e a pobreza e o desemprego a aumentarem. A economia de Gaza tem sofrido um enfraquecimento dramático.”
Quando lhe pedem uma comparação com outro país, Kozul-Wright tem dificuldades em identificar algum. “É muito complicado, até antes deste bombardeamento. Talvez uma economia como a Somália no pico da guerra civil. Mas pelo menos na Somália havia algum controlo das alavancas económicas”, adianta a partir de Genebra. “Em Gaza não há controlo da política monetária, nem da política orçamental. Acho que não existe nada assim em lado nenhum do mundo. É uma economia de sobrevivência.”
As dificuldades materiais destacam-se. Mesmo antes deste conflito – que deverá arrasar qualquer resto de atividade económica -, mais de metade da população da Faixa de Gaza vivia em situação de pobreza. Cerca de 45% estava desempregada, com as mulheres e os mais jovens a serem os principais afetados.
A economia perde músculo há quase duas décadas. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), desde 2006, a Faixa de Gaza cresceu a um ritmo anual de 0,4%. Um número muito baixo, mas que até pode ser enganador. Tratando-se de um território com rápido crescimento populacional, é mais útil olhar para o PIB per capita, que tem caído 2,5% ao ano. Por contraste, na Cisjordânia, ele cresce a um ritmo anual de 2,8% (5,1% ao ano para o PIB) nesse período. “Isto reflete essencialmente o bloqueio de Gaza, após o domínio conquistado pelo Hamas em 2007 e guerras consecutivas”, escreve o FMI. O território já representou cerca de 1/3 do PIB per capita palestiniano, mas hoje tem um peso de apenas 17%.
Esta diferença face à Cisjordânia talvez não seja clara para todos. “Não é que a Cisjordânia seja um milagre económico, mas tem havido uma divergência. 25% da população ativa de território trabalha em Israel ou nos colonatos, onde os empregos são relativamente mais bem pagos. No mercado de trabalho em Gaza, é tudo muito informal”, refere Kozul-Wright à VISÃO. A taxa de desemprego é muito mais elevada (45% vs 13%) e os salários estão estagnados. Os trabalhadores na Faixa de Gaza ganham cerca de metade do que sucede na Cisjordânia, com diferenças ainda maiores no setor privado. “Uma das consequências das últimas três semanas foi perceber quão isolada está Gaza.”
Mesmo que juntemos os dois territórios palestinianos, o seu PIB per capita não chega a 10% do israelita.
“Restrições ao movimento de pessoas e bens, destruição de ativos produtivos, operações militares frequentes e proibição de importar tecnologia chave esvaziaram a economia de Gaza”, pode ler-se num relatório recente da UNCTAD. Os habitantes de Gaza precisam de autorização para atravessar um dos dois pontos terrestres controlados por Israel. “As restrições de movimento também impediram o acesso à saúde e outros serviços essenciais, com 80% da população dependente de ajuda internacional.”
Nos últimos anos, tal como no resto do mundo, Gaza foi abanada pela pandemia. Um choque do qual ainda estava a recuperar antes do ataque do Hamas e a atual retaliação israelita. No final do ano passado, a economia da Faixa de Gaza estava ainda 11,7% abaixo do nível de 2019 e muito próximo do seu valor mais baixo desde 1994.
Muitas vezes descrita como uma “prisão ao ar livre”, como era viver em Gaza em 2022? Significava “estar confinado num dos espaços mais densamente populados do mundo, sem eletricidade metade do tempo e sem acesso adequado a água potável e a um sistema de esgotos decente”, resume a agência da ONU.
Numa sondagem recente feita na Faixa de Gaza, 75% dos palestinianos diziam que, nalguma altura dos últimos 30 dias, tinham ficado sem comida e não tinham dinheiro para comprar mais. Em 2021, essa percentagem era 51%.
O que produz Gaza
Apesar de todas as dificuldades, a economia encontrava formas de funcionar na Faixa de Gaza, ainda que muito limitada. Segundo o FMI, o bloqueio de Israel impedia o desenvolvimento de uma indústria (que se ia expandindo na Cisjordânia) e os únicos setores com algum dinamismo eram a agricultura, o comércio e a “(re)construção”, que avançava 20% ao ano, frequentemente pelas piores razões.
No setor primário, a pesca está altamente limitada pelo bloqueio israelita (os barcos não se podem deslocar para muito longe da costa), mas a agricultura tem crescido a um ritmo mais rápido do que na Cisjordânia, conseguindo até exportar alguma da sua produção, concentrada em tomates, morangos, flores – muitos cravos -, beringelas e batatas. As vendas ao exterior são tão limitadas que se medem em camiões. “Em 2022, cerca de 1200 camiões com alimentos e materiais agrícolas foram exportados de Gaza, um aumento face a apenas 29 camiões em 2009”, estima o FMI.
As restrições comerciais são enormes. Além das limitações ao movimento de pessoas e mercadorias, Israel impõe um filtro adicional aplicado a “dual-use goods”. Isto é, bens que possam ser utilizados para fabrico de armas pelo Hamas estão proibidos de entrar sem visto prévio. Responsáveis palestinianos e organizações internacionais notam que as listas são excessivamente vagas. Teoricamente, quase tudo pode ser abrangido por elas. Por exemplo, baterias de telemóveis e impressoras estão na categoria “equipamento eletrónico”, o que significa que têm de pedir uma autorização especial para entrarem em território palestiniano. Isso exige “um processo burocrático longo, opaco e imprevisível”, escreve o Banco Mundial. Maquinaria civil, químicos, a maior parte do equipamento médico e todos aparelhos de telecomunicações fazem parte dessa lista.
Para a Faixa de Gaza, este processo tem camadas extra de complexidade na fronteira, que inclui uma investigação do histórico do importador, da sua empresa e da sua família. Veja-se esta descrição do FMI:
É difícil aceder a cimento, madeira e aço, o que adia ainda mais qualquer esforço de reconstrução ou lançamento de infraestruturas essenciais. O mesmo relatório das Nações Unidas aponta que “excessivos custos e barreiras à produção e transação com o resto do mundo deixaram [os territórios palestinianos] com um défice comercial crónico e uma dependência abrangente e desequilibrada face a Israel, que representava 72% de todo o comércio palestiniano em 2022”. Ao mesmo tempo, “a ausência de uma divisa nacional e a dependência do shekel israelita deixam pouco espaço para política monetária”, uma vez que a utilização de uma moeda forte prejudica a competitividade dos produtores palestinianos.
Claro que o que está aqui descrito é apenas a face visível do comércio. Grande parte dos bens que entram na Faixa de Gaza são transportados pelo sistema capilar de túneis que ligam a região ao Egipto, servindo de passagem para um pouco de tudo: armas, animais, medicamentos, alimentos, combustível, máquinas de lavar. É provável que o volume das trocas comerciais seja superior nesta “economia de túneis” do que pelos canais oficiais. Para ilustrar a sua importância, a ONU tinha estimado que demoraria 80 anos a reconstruir as habitações destruídas durante a operação de militar israelita de 2008/09. Acabou por ser feito em cinco anos.
Engenho económico
Uma infraestrutura deficiente intensifica ainda mais estas dificuldades económicas. A eletricidade em Gaza vem de três fontes: 2/3 de Israel; uma central a diesel em Gaza; e, até 2018, importações do Egipto. O FMI estima que a procura por eletricidade no território é três vezes superior à oferta, o que se traduz em interrupções de 12 em 12 horas. Famílias e empresas têm de utilizar geradores para compensar.
Ainda assim, mesmo num contexto de enormes dificuldades, vão surgindo nichos daquilo a que se pode chamar “normalidade” económica. Nos últimos anos, Gaza conseguiu desenvolver as sementes de uma pequena cena de startups, algumas delas apoiadas por gigantes internacionais, como a Meta, com academias de programação e aceleradoras.
“Os seres humanos são engenhosos. E isso também é verdade na Cisjordânia e em Gaza. Apesar de as comunicações dependerem muito de Israel – o que explica porque as conseguem cortar – há certamente jovens a tentar fundar startups. As pessoas encontram formas de sobreviver”, explica Kozul-Wright.
A Gaza Sky Geeks, nascida com apoio da Google, parece ter sido destruída durante os bombardeamentos.
Poupar é um luxo para os habitantes de Gaza. Tal como ter conta no banco. Dados publicados pelo FMI mostram que 76% da população guarda o dinheiro em casa e 2/3 preferem (ou só podem) pedir dinheiro emprestado a família e amigos. Os depósitos de particulares representam apenas 40% do PIB (77% na Cisjordânia).
A dimensão dos obstáculos estruturais significa que o apoio humanitário é decisivo para sobreviver. Mas assistimos a um paradoxo: embora haja cada vez pessoas dependentes dessa ajuda, ela tem um peso cada vez mais pequeno na economia, tendo recuado de 27% para 3% do PIB palestiniano, entre 2008 e 2022.
Mais destrutivo do que um furacão
A descrição que fazemos nestes parágrafos tem um risco óbvio: está quase de certeza desatualizada. Se até a economia israelita enfrenta dificuldades desde o início do conflito, dificilmente restará algum pingo de normalidade económica na Faixa de Gaza, depois de um mês de bombardeamento incessante e uma invasão terrestre que ainda agora começou.
Cerca de 1/4 dos edifícios no Norte da Faixa de Gaza terão sido destruídos e o número de mortos já se aproxima dos 11 mil, mais de quatro mil dos quais crianças, segundo o Ministério da Saúde, controlado pelo Hamas (no passado, os números das Nações Unidas bateram certo com os avançados pelos palestinianos, a Casa Branca sugere que podem até ser mais elevados do que está a ser reportado). A confirmarem-se estes dados – que só devem aumentar -, 0,5% da população da Faixa de Gaza já morreu devido aos ataques. Há 1,5 milhões de deslocados. Uma estimativa muito preliminar da Organização Internacional do Trabalho conclui que mais de 60% dos empregos foram destruídos em Gaza desde o início da retaliação israelita, a que se junta mais 24% dos postos de trabalho na Cisjordânia. A ONU diz que a economia afundou 4% num só mês, criando 400 mil novos pobres. O que ficará depois desta guerra?
“É muito difícil antecipar. Basta olhar para os danos que já existem. Em 2012, dissemos que as restrições levariam a economia de Gaza a tornar-se inabitável em 2020. Não se confirmou, mas ficou perto. Será essa a consequência: um espaço onde não se poderá viver”, projeta Kozul-Wright. “O que significará lidar com 2,1 milhões de pessoas é uma pergunta em aberto acerca da qual ainda ninguém pensou. Mas a população de Gaza é muito resiliente e está determinada a não ser expulsa de um território onde vive há décadas, nalguns casos séculos.”
O ataque do Hamas – que matou 1.400 israelitas e raptou outros 240 – e a invasão israelita que se seguiu tornam mais difícil imaginar uma interrupção deste ciclo de violência e ressentimento. Nestas alturas, é comum atirar-se para o ar um lugar comum como “precisamos de avançar para a solução de dois Estados”. Como seria de esperar, o responsável das Nações Unidas defende esse caminho, mas está cansado dessa conversa sem passos concretos no terreno. “Falar de dois Estados não deveria ser algo que se diz por dizer. Significa algo em termos económicos, políticos e de segurança.”
Neste momento, o número de mortos e feridos é tão elevado que a economia será uma das últimas preocupações dos palestinianos. Porém, quando a invasão terminar, será preciso pensar nela. E na reconstrução. Kozul-Wright diz que não é fácil fazer uma estimativa, mas sugere que o custo da recuperação ascenderá a milhares de milhões de euros em ajuda. “Talvez uma boa comparação seja a reconstrução de Nova Orleans depois do furacão Katrina. Mas será muito mais difícil”, antecipa.
Tanto em Gaza como na Cisjordânia, as Nações Unidas concluem que “desde o seu nascimento, em 1994, o governo palestiniano teve de enfrentar responsabilidades económicas, políticas e sociais únicas e complexas, muito maiores do que os recursos políticos e económicos que tem à sua disposição”.
Essas dificuldades não param de aumentar. E os recursos vão desaparecendo.