É o indicador que parece preocupar a maior parte dos economistas: décadas depois, a inflação voltou a ser uma fonte de preocupação para responsáveis políticos e financeiros. Os textos que fomos escrevendo na EXAME sobre uma aparente capacidade de controlo total dos preços parecem ter envelhecido como leite fora do frigorífico. Também por isso é útil fazer um balanço do ano que fuja às análises mais imediatas. É a segunda vez que fazemos este exercício. No ano passado, o destaque foi para a atuação dos Estados e a resposta europeia à crise. Este ano, além da inflação, os economistas destacam as transformações no mercado de trabalho, agravamento da desigualdade, provas da importância da cooperação internacional e renovadas preocupações com a evolução do endividamento público.
Se 2020 foi o “A New Hope” da crise, 2021 trouxe-nos “A Inflação Contra-Ataca”. O desencontro entre oferta e procura num contexto de estímulos orçamentais e monetários inéditos mexeu com os preços de uma forma que não víamos há muito. À medida que o ano foi avançando, as fileiras do exército “isto é temporário” foram perdendo soldados.
“A grande lição económica deste ano foi o regresso da inflação”, sublinha Ricardo Reis, professor na London School of Economics, à EXAME. “Depois de 20 anos de inflação controlada, nos últimos anos muitos defenderam que os bancos centrais se deviam concentrar antes em estimular a recuperação, na estabilidade financeira, no combate a desigualdade, ou nas mudanças climáticas. 2021 mostrou que não há nada de natural em ter inflação baixa, e que quando a política monetária o permite, a inflação volta num ápice.”
Miguel Faria e Castro, da Reserva Federal de St. Louis destaca o mesmo tema: 2021 mostrou que a inflação não está morta. O recente período de avanços muito lentos dos preços a seguir à crise financeira convenceu algumas pessoas de que era possível fazer grandes estímulos sem que eles se refletissem nos preços. O economista assume ter pensado o mesmo. “Os últimos meses demonstraram que isto não é verdade e que ainda é possível gerar inflação moderada em economias avançadas ocidentais.”
Em novembro, a inflação nos Estados Unidos disparou 6,8%, o valor mais alto desde o início da década de 80. Na Zona Euro, os preços também estão a evoluir a um ritmo mais rápido das últimas décadas. As variações são mais modestas do que nos EUA (4,9% em novembro) e mais explicadas pela evolução dos preços na energia, mas não deixam de preocupar o BCE e os países mais desconfortáveis com picos de inflação. Portugal tem-se destacado por uma evolução contida do indicador. Em novembro, apresentava a segunda subida mais baixa da moeda única (2,7%).
Fernando Alexandre acha que estes números nos forçam a repensar a nossa relação com a inflação e com os fatores que a podem estar a provocar. “As condições que conduziram à vitória no combate à inflação desde os anos 1980 estão hoje muito alteradas”, aponta o professor da Universidade do Minho. Depois de se terem tornado nos principais agentes de política macroeconómica na última década, “os bancos centrais têm de convencer os mercados que o principal objetivo da sua ação é a estabilidade dos preços”. “Por outro lado, as tensões entre a China e os Estados Unidos antecipam uma reconfiguração mais permanente da globalização, com possíveis aumentos dos preços para suportar objetivos de soberania tecnológica e autonomia estratégica. Também se antecipa que os custos da transição energética para fazer face às transições climáticas se façam sentir por alguns anos”, acrescenta.
O grande debate macroeconómico dos últimos meses – e, previsivelmente, de 2022 – procura perceber se este pico de inflação se deve a elementos extraordinários muito ligados à recuperação da pandemia ou se é explicado por fatores estruturais. Alexandre Afonso, professor na Universidade de Leiden, lembra que, nos últimos anos, “a inflação tem estado consistentemente abaixo da meta do BCE” e que “não é claro” que o seu regresso seja permanente. “Deve-se a uma série de mudanças na estrutura da economia. A crise do coronavírus trouxe disrupção às cadeias de abastecimento, mas não à procura. As pessoas querem comprar coisas e têm meios para isso, mas há obstáculos na entrega.”
Nos EUA será mais complicado, mas há uma versão desta história da zona euro que acaba com uma normalização dos preços ao longo de 2022, à medida que a crise logística e de transporte marítimo se dissipa, o recuo da pandemia permite um reforço de produção e das cadeias de abastecimento, o mercado energético acalma e efeitos extraordinários (como mexidas nos impostos na Alemanha) deixam de influenciar o indicador.
No entanto, mesmo que se revele um fenómeno temporário, basta ficar connosco muito tempo sem certezas de quando desaparecerá para influenciar decisões importantes nos próximos meses, seja subidas de juros ou diminuição/interrupção de programas de compra de ativos.
Fernando Alexandre refere o beco sem saída em que se encontram os bancos centrais, divididos entre controlar uma inflação que não pára de aumentar e o receio de colocar em causa a retoma da economia e suscitar dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida de certos países, como Portugal. “Se o aumento da inflação se revelar persistente, o BCE será pressionado a adotar medidas de política mais restritivas, em particular pela Alemanha e os outros ‘frugais’”, afirma. “Nesse cenário, o aumento das taxas de juro será muito importante para preservar a reputação do BCE como garante da estabilidade do valor do euro. Por outro lado, o aumento dos juros poderá gerar tensões entre os membros da área do euro, mais acrimoniosas do que as verificadas durante a crise da dívida soberana. Será certamente o momento mais difícil da história do euro.”
Este pico de inflação está a ser encarado com preocupação, mas ele também permite conclusões mais otimistas sobre o futuro de longo prazo das nossas economias. É um sinal de que a economia norte-americana, e até a europeia, “ainda não estão totalmente ‘japanificadas‘ ”, aponta Faria e Castro.
O que não significa que não haja um período doloroso à nossa frente. “Vai ser interessante assistir às consequências do inevitável tightening da política monetária nos EUA. Isto poderá ter consequências interessantes e não muito positivas para o resto do mundo”, refere. “Assistiremos a um BCE que terá de “apertar” mais cedo do que gostaria, e a potencial fuga de capitais de economias emergentes.”
Relações de poder no mercado de trabalho
O ano económico não se fez só de preços. Ele repetiu tendências preocupantes, nomeadamente a capacidade de a pandemia penalizar ainda mais os grupos mais frágeis da sociedade. Nalguns casos os problemas já existiam, mas a pandemia trouxe-os à tona.
“As medidas de mitigação da Covid-19 tiveram um impacto desproporcional nos mais desfavorecidos, aumentando a desigualdade presente e futura. Parte das atividades encerradas, como o turismo, levou à perda de emprego de trabalhadores menos qualificados”, aponta Catarina Reis, professora da Universidade Católica.
Desde o início da pandemia que ficou claro que trabalhadores com vínculos precários e salários mais baixos estavam a ser mais penalizados. Homens e mulheres também não enfrentaram a crise da mesma maneira e talvez só dentro de décadas conheçamos os efeitos negativos nas crianças. “Mais uma vez fecharam-se as escolas, o que fez com que muitas crianças com acesso limitado à internet e com pouco apoio em casa vissem comprometida a sua possibilidade de usar a educação como elevador social. Com as crianças em casa, foram as mulheres a gastar uma maior parte do seu tempo a cuidar delas, com custos elevados para o seu desempenho profissional”, nota Catarina Reis.
2021 foi também marcado pela recuperação dos mercados de trabalho um pouco por todo o mundo avançado, começando a detetar-se problemas de escassez de mão-de-obra, especialmente visíveis nos Estados Unidos, mas também em algumas bolsas na Europa e em Portugal. Ao longo do ano, não foram faltando notícias de indústrias a queixarem-se de dificuldades de contratação, a que Joe Biden deu uma resposta conhecida.
Este tema é destacado por Susana Peralta à EXAME. “Nos EUA fala-se da “grande resignação” (no sentido de demissão, não de submissão). Na Europa, especula-se que as políticas públicas de retenção de postos de trabalho (como o layoff simplificado em Portugal) mitiguem este efeito. Dos dois lados do Atlântico, a falta de imigrantes contribui para a escassez”, afirma a professora da Nova SBE. “É provável que o afastamento forçado do trabalho tenha levado as pessoas a repensar a sua relação com empregos penosos e mal pagos. O lado positivo desta história é que, nos EUA, os salários subiram 1,5% no terceiro trimestre (o maior aumento trimestral em duas décadas) e os trabalhadores têm conseguido mais benefícios, como horários de trabalho flexíveis. Por cá, os patrões continuam a jurar que aumentos salariais não vão ajudar a atrair trabalhadores.”
Esta escassez de mão-de-obra pode, aliás, contribuir para o problema de inflação referido anteriormente. A transmissão da subida de preços aos salários é uma forma de garantir que o fenómeno será mais persistente. Por outro lado, depois de décadas em que perderam poder de negociação, esta pode ser uma oportunidade única para os trabalhadores equilibrarem um pouco os pratos da balança.
Pedro Pita Barros, professor da Nova, refere a necessidade de flexibilidade e de recorrer ao teletrabalho, com tendências a destacar no mundo empresarial de 2021. “Inclui o repensar das formas de trabalho (a intensidade e frequência das reuniões à distância face ao que eram as reuniões presenciais pré-pandemia é um exemplo). Os limites de vida profissional e vida familiar continuarão a ser redefinidos, conforme vamos testando e aprendendo”, antecipa.
O milagre científico
A 8 de dezembro de 2020, Margaret Keenan estava a uma semana de fazer 91 anos. Naquela terça-feira, às 6h31, ela teria aquilo a que chamou “uma prenda de anos antecipada”. Foi a primeira pessoa do mundo a receber uma dose da vacina da Pfizer como parte do megaprograma de vacinação que preencheu o ano e serviu de combustível à recuperação das economias.
Será relativamente consensual ver no arranque da vacinação o acontecimento mais relevante para o desempenho económico dos países mais ricos do mundo. Foi isso que permitiu uma retoma relativamente forte da atividade e do emprego. Contudo, ao contrário do que se chegou a pensar e argumentar, não marcou um ponto final na pandemia. As bolsas de resistência à vacinação e a enorme desigualdade na sua distribuição permitiram a ascensão de novas variantes e constantes reviravoltas na gestão da emergência de saúde pública.
“A esperança de 2021 ser o ano do fim da pandemia COVID-19 não se concretizou. Assim, uma das principais características de 2021 foi a incerteza quanto ao equilíbrio possível e desejável entre economia e saúde. A vacinação, disponível e assumida pela população, possibilitou um crescente retomar de (alguma) normalidade na vida social e económica. As novas variantes, primeiro a Delta e, no final do ano, a Ómicron, relançaram os receios no campo da saúde”, afirma Pita Barros. “Até haver um tratamento eficaz da Covid-19, ou o predomínio de variantes pouco agressivas, a incerteza sobre as necessidades e consequências da pandemia estará presente na vida, pública e privada, de cada um.”
Ricardo Paes Mamede também menciona à EXAME o efeito positivo das vacinas, destacando o facto de, no final de 2021, muitos países terem mais de metade da sua população vacinada e alguns chegarem a 95% dos elegíveis. “Isto é notável e teve um impacto forte nas expectativas, com algum regresso à normalidade da vida quotidiana – até à chegada da nova variante”, refere.
Para o professor do ISCTE, isso não deve servir para nos maravilharmos com esse feito científico e logístico, mas também para tirarmos daí lições: “a capacidade de organizar uma resposta logística – mas também financeira e política – a uma doença (quantas poderiam beneficiar disso); a vulnerabilidade que, ainda assim, as sociedades humanas têm face à dinâmica de um vírus (que apesar da resposta notável não foi possível controlar); a noção clara das interdependências globais; as consequências das desigualdades e da ausência de mecanismos abrangentes de cooperação internacional.”
Sérgio Rebelo, professor na Kellogg School of Management na Northwestern University, considera que o sucesso das vacinas deve ensinar-nos a valorizar coisas que, por vezes, merecem pouca atenção, nomeadamente “ importância do financiamento de longo prazo da investigação básica”. “Foi graças a esse financiamento ao longo de 30 anos que as vacinas mRNA puderam ser desenvolvidas tão rapidamente.”
Tal como Paes Mamede, também destaca a necessidade de cooperação entre Estados. Recorde-se que a pandemia teve altos e baixos neste campo. O início foi marcado por decisões unilaterais, limitações de exportação de material médico e açambarcamento de doses de vacina. Pelo meio, houve momentos mais positivos, como o acordo para emissão de dívida conjunta pela UE e a criação de um fundo de recuperação comum, assim como os programas de entrega de vacinas aos países mais pobres. No entanto, chegamos ao final de 2021 com um gigantesco fosso na vacinação entre países ricos e pobres: as taxas superiores a 70% em países europeus contrastam com um continente africano onde a percentagem de totalmente vacinados ainda não chega aos dois dígitos.
“Precisamos de colaborar a nível mundial para solucionarmos os problemas que enfrentam a humanidade”, diz Sérgio Rebelo. “No caso da Covid, cada nova infeção é uma oportunidade de o vírus se aperfeiçoar, por isso só estaremos seguros quando todo o mundo for vacinado.”
Um ponto também sublinhado por Pita Barros. “Na macroeconomia, a grande lição de 2021 é a confirmação da forte interligação entre todos os países e a importância de garantir um acesso mundial generalizado a vacinas. O surgimento e rápida difusão da variante Ómicron, a partir da região do mundo com menor vacinação, África, vai limitar os esforços de recuperação económica, por necessidade de retomar limitações de mobilidade e em várias atividades económicas.”
Viragem política em Portugal?
Numa abordagem mais nacional, Catarina Reis nota que 2021 foi o ano em que começou a ficar evidente que o endividamento público tem consequências e exigirá medidas, o que suscita preocupações com o futuro no curto e médio prazo.
“Quem vai pagar a dívida? Vejo com alguma preocupação os milhões para gastar do PRR, numa altura em que a economia já está naturalmente em expansão, sem pensar se não seriam melhor gastos numa estratégica redução da dívida pública”, critica.
Também internamente, é impossível fazer um balanço do ano sem mencionar o terramoto político do seu final: o chumbo do Orçamento do Estado para 2022, marcação de eleições antecipadas e possível fim da solução política que governou o país durante 6 anos – governo do PS, apoiado pelos partidos à sua esquerda.
As razões para não aprovar o Orçamento e as declarações públicas dos envolvidos sugerem que o governo não caiu por um desacordo pontual, mas por motivos mais estruturais e, por arrasto, de solução mais difícil. Os próximos meses ditarão se 2015 abriu mesmo uma nova era política em Portugal ou foi apenas uma exceção.
“O chumbo do OE 2022 tem implicações que não são ainda evidentes, mas que ficarão no futuro. A interrupção da legislatura não deve a teimosias ou alterações de estratégias dos atores políticos. Deve-se ao facto de o sistema político português ainda não ter aprendido, de facto, a viver com um parlamento muito dividido”, diz Paes Mamede. “Esta realidade não se vai alterar tão cedo e os atores políticos vão ter de aprender a negociar mais e melhor. O chumbo do OE 2022 foi apenas mais uma etapa neste processo – e ficará por isso como outro marco para o futuro.”
Saindo dos temas mais específicos, manteve uma característica que 2020 já nos tinha deixado: necessidade de tomar decisões num nevoeiro cerrado. “Estes são anos em que as sociedades (incluindo os economistas) estão a ser confrontadas com algo para que mostram não estar ainda preparadas: viver com a incerteza”, conclui Paes Mamede. Talvez 2021 nos tenha ensinado a lidar melhor com ela.