O Nobel da Economia deste ano foi atribuído a David Card, Joshua Angrist e Guido Imbens. Mais do que qualquer descoberta ou conclusão revolucionária, o destaque vai para os métodos inovadores que permitem lá chegar. Mais do que isso, é também um símbolo da transformação a que estamos a assistir na ciência económica, afastando-a mais da teoria e aproximando-a da análise empírica, com mais dados e experiências. Pelo caminho, está a mudar a forma como pensamos sobre economia e sociedade, de subidas do salário mínimo à imigração.
Políticas públicas sem avaliação de impacto são apenas boas intenções. Para sermos capazes de escolher as melhores, temos de saber como afetam ou podem afetar o país ou região. No entanto, estabelecer relações causa-efeito entre uma reforma e um desenvolvimento económico ou social é muito complicado. Em Portugal, esse défice de informação é especialmente grave.
Noutras áreas de investigação, podem ser utilizadas experiências e estudos randomizados. Por exemplo, para conhecer a eficácia de um novo medicamento dividem-se os indivíduos em dois grupos aleatórios, um para testar o fármaco e outro de “controlo”. É fácil perceber como isso é impossível de fazer em relação a muitos temas económicos e sociais. Não podemos simular quem pede um empréstimo ao banco ou quem decide estudar mais dois anos.
Os três economistas distinguidos encontraram novos caminhos para fazer essa avaliação, utilizando aquilo a que se chamam “experiências naturais”. Isto é, situações e acontecimentos da vida real que, pela sua natureza, se assemelham a estudos randomizados. Por exemplo, quando um Estado norte-americano aumenta o salário mínimo, é possível ver o que aconteceu ao seu mercado de trabalho, em comparação com um Estado vizinho. Quando o governo português introduz portagens nas SCUT, é possível avaliar o efeito no emprego e no número de empresas entre municípios. Quando um vulcão entra em erupção na Islândia, isso permite estudar que impacto tem mudar de região de residência.
No caso de David Card, o seu trabalho desde o início dos anos 90 permitiu-nos ter respostas muito mais satisfatórias para questões relacionadas com o impacto da imigração, de subidas do salário mínimo ou qualificações no mercado de trabalho. Contudo, os seus métodos têm limitações. E é aí que entra o trabalho de Joshua Angrist e Guido Imbens, que nos explicaram que tipo de conclusões podemos tirar de experiências em que não controlamos quem participa nelas.
“É um Nobel para métodos. Novos métodos para estabelecer relações de causa-efeito. Depois de um choque, perceber que mudanças vieram a seguir. Antes, os economistas usavam essencialmente modelos teóricos”, afirma à VISÃO João Pereira dos Santos, professor da Nova SBE e, ele próprio, utilizador de experiências naturais em alguns dos seus estudos. Além do estudo das SCUT, referidos em cima, o investigador já usou esta metodologia para avaliar o impacto do imposto sobre bebidas açucaradas (o consumo não mudou, mas as empresas diminuíram a quantidade de açúcar nas bebidas) e está neste momento a desenvolver um estudo sobre o efeito da subida e descida do IVA na restauração.
É um bom exemplo para perceber a relevância das metodologias desenvolvidas pelos laureados: elas passaram a ser amplamente utilizadas. Era um Nobel esperado há alguns anos. “Era uma questão de tempo até ganharem. Este Nobel faz todo o sentido. Influenciaram o pensamento de todos os investigadores desta área”, aponta Pedro Portugal, economista do Banco de Portugal e um dos maiores especialista em mercado de trabalho do país.
Salário mínimo e emprego
Poucas pessoas conhecem este tema tão bem como Ana Rute Cardoso. A investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa tem trabalho publicado com David Card, com quem até está agora a estudar o mercado de trabalho português. “Quando pensamos nos avanços do conhecimento científico sobre o funcionamento do mercado de trabalho, encontramos, de facto, múltiplas áreas para as quais David Card contribuiu de modo decisivo: impacto do salário mínimo, emigração, dispersão salarial, políticas ativas no mercado de trabalho, contratação coletiva, remuneração da educação, são algumas delas”, explica à VISÃO.
A académica cita quatro motivos para explicar a influência de Card na economia: 1 – sujeitar as teorias a testes com dados do “mundo real”; 2 – utilizar metodologias inovadoras, que passaram a ser replicados por outros investigadores; 3 – rigor e exploração de resultados mesmo quando eles desafiam raciocínios prévios; 4 – o apoio dado a estudantes e colegas da academia.
“Nos anos 80-90, a esmagadora maioria dos estudos académicos em economia eram modelos teóricos. Não dispúnhamos da profusão de dados que temos atualmente”, explica. Card “defendeu sempre que as teorias económicas devem ser sujeitas a teste com dados do “mundo real” e metodologias rigorosas. Isso, hoje em dia, parece óbvio. Mas foram precisamente as suas propostas que muito contribuíram para isso.”
A sua investigação mais citada é provavelmente o estudo que desenvolveu com Alan Krueger – que provavelmente também teria recebido o Nobel, não tivesse morrido em 2019 – sobre os efeitos de subidas do salário mínimo. O “senso comum” que dominava o campo na altura sugeria efeitos negativos no emprego. A teoria económica diz-nos que se aumentarmos o preço de um bem, a procura por esse bem vai diminuir, portanto trabalhadores mais caros levarão a menos procura pelos seus serviços. Se funciona para a pizza congelada que se compra no supermercado, porque não há-de funcionar para a população empregada?
Para obter uma resposta mais aprofundada, os investigadores aproveitaram um aumento do salário mínimo no Estado de New Jersey no início dos anos 90 de 4,25 para 5,05 dólares por hora. Mas olhar só para New Jersey não chega – podem existir múltiplos fatores em ação -, portanto como arranjar um grupo de controlo? Ele foi encontrado a alguns quilómetros de distância, no Estado vizinho da Pensilvânia, onde o salário mínimo não mexeu. Seria de esperar que junto à fronteira entre os dois estados, o mercado de trabalho tenha um desempenho semelhante. Portanto, se houver mudanças naquele período, é relativamente seguro assumir que elas se devem ao aumento do salário mínimo de um dos lados. Card e Krueger olharam em específico para trabalhadores de restaurantes de fast food, onde os salários são tendencialmente mais baixos.
“Ao contrário de investigação anterior, eles concluíram que subidas do salário mínimo não tinham efeito no número de empregados. David Card chegou à mesma conclusão nalguns estudos do início dos anos 90. Esta investigação pioneira levou a muitos estudos de “follow up”. A conclusão geral é que os efeitos negativos de aumentar o salário mínimo são pequenos e significativamente mais pequenos do que se acreditava há 30 anos”, pode ler-se no site do Nobel.
Ana Rute Cardoso considera que “os estudos de David Card e Alan Krueger sobre o salário mínimo geraram talvez a maior discussão científica que a economia do trabalho conheceu”. E viraram a opinião dominante. “Após décadas de debate, aperfeiçoamentos metodológicos e evidência empírica proveniente de múltiplos países, o consenso atual é que o impacto de um aumento do salário mínimo, positivo ou negativo, é próximo de zero. O David desafiou uma verdade estabelecida na teoria económica e testou-a com uma metodologia inovadora em economia.”
Essas conclusões motivaram outras perguntas ainda mais abrangentes. Porque é que assumimos que custos laborais obedecem a mecanismos semelhantes a um quilo de batatas ou um carro em primeira mão? Haverá motivos para que o trabalho não tenha o mesmo comportamento?
“Empresas que pagam melhores salários conseguem atrair trabalhadores mais qualificados e motivados, registando, assim, maior produtividade. Nem sempre as empresas pagam o salário mais elevado que poderiam pagar, face à receita que obtêm e aos outros custos de produção a que têm que responder, havendo, nesse caso, margem para aumentar os salários sem ir à falência ou ter que despedir parte do pessoal. As empresas conseguem, nalguns casos, refletir aumentos de salários em aumentos do preço daquilo que produzem e vendem. Os trabalhadores usam o seu salário para adquirir bens e serviços e, assim, fazem aumentar a procura por outros trabalhadores”, refere Ana Rute Cardoso, citando alguns motivos para o trabalho poder fugir a essa lógica mais simplista.
Em Portugal, este debate foi bastante intenso no arranque da geringonça, quando se discutia se as subidas de salário mínimo que o PS estava a negociar com os partidos à esquerda e com os parceiros sociais poderiam colocar em causa a recuperação do emprego. O tema dividiu esquerda e direita e o aumento motivou muitas críticas de vários economistas (Rui Rio voltou até ao tema durante a pandemia). Não sabendo se o desemprego não poderia ter caído ainda mais rápido, a verdade é que o mercado de trabalho português foi tendo um desempenho positivo nos últimos anos, mesmo com subidas consecutivas do SMN. A taxa de desemprego estava acima de 12% em 2015 e, em 2019, estava nos 6,5%.
É importante referir, no entanto, que poderia não ter sido assim. As conclusões de Card não são universais. Elas mostraram que, naquele contexto e para aquele aumento, o efeito era pequeno. Se decidirmos que o SMN deve ser 2 mil euros, é bem possível que as consequências sejam diferentes. Ainda assim, é indiscutível que em 2021 se olha para subidas do SMN com muito menos receio.
Transparência e credibilidade
Card dedicou-se também a avaliar o impacto da imigração no mercado de trabalho. Um tema que vai aparecendo de forma recorrente, com algumas forças políticas a procurarem estimular algum ressentimento entre a população residente. O objetivo será perceber o que aconteceria a uma economia local sem entrada de imigrantes. Card aproveitou um momento único na História dos Estados Unidos e de Cuba para fazer essa avaliação: a chegada de 125 mil cubanos a território norte-americano no espaço de apenas 4 meses, após Fidel Castro ter autorizado saídas do país. Muitos deles ficaram em Miami, aumentando a mão-de-obra da cidade em 7% (!) e permitindo a Card avaliar que consequências teve esse movimento.
O tal “senso comum” diria que, se chegam mais trabalhadores a uma região, eles competirão com aqueles que já estão no mercado de trabalho, podendo prejudicar os seus salários e até a sua empregabilidade. Mas os dados contam uma história mais complicada. Na comparação com outras quatro cidades, Card conclui que os residentes de Miami com baixas qualificações não sofreram efeitos negativos. Os salários não caíram e o desemprego não aumentou. Estudos subsequentes permitiram concluir que a nova imigração até melhora o rendimento de muitos dos naturais daquele país, podendo, por outro lado, penalizar imigrantes mais antigos.
É fácil observar como as soluções relacionadas com experiências naturais representaram um rasgo criativo na forma como estudamos economia. Mas também que as suas conclusões têm de ser interpretadas com cautela. E é aí que entra o trabalho de Joshua Angrist e Guido Imbens, que nos ajuda a perceber que efeitos conseguimos estimar de uma política ou intervenção, como a introdução de um curso de informática, quando não conseguimos controlar quem participa nela.
Quando quiseram olhar para a relação entre qualificações e salários, publicaram um estudo dos anos 90 sobre que efeitos é possível estimar de uma política ou intervenção, como a introdução de um curso de informática, quando não conseguimos controlar quem participa nela.
Idealmente, seria possível dividir os indivíduos em dois grupos aleatórios, permitindo que um deles faça o curso de informática e outro não, medindo depois os diferentes percursos das pessoas. No “mundo real”, isso é impossível. Mas Angrist e Imbens mostraram que podemos tirar conclusões desses exercícios, se forem seguidos dois passos: calcular como é que a experiência afeta a probabilidade de participação no programa; e incorporar essa probabilidade na avaliação dos seus efeitos.
“Uma conclusão importante é que é apenas possível estimar o efeito [do programa] entre pessoas que mudaram o seu comportamento devido à experiência natural”, escreve o site do Nobel. O que significa que, quando estudamos o impacto de um ano a mais de escolaridade no rendimento futuro de uma pessoa, apenas podemos aplicar as conclusões a quem decidiu abandonar a escola, quando teve essa hipótese.
Estes tipo de descoberta mostrou os limites das relações de causalidade e solidificou a as conclusões a tirar de experiências naturais. “A metodologia desenvolvida por Angrist e Imbens tem sido amplamente adotada por investigadores que trabalham com dados observáveis. Ao clarificar as assunções necessárias para estabelecer relações de causalidade, o seu quadro também aumento a transparência – e portanto a credibilidade – da investigação empírica”, acrescenta o texto do site.
Economia em mudança
Tão interessante como os motivos para atribuir o Nobel a Card, Angrist e Imbens é aquilo que a distinção representa para as transformações que a economia atravessa. Em 2019, o Nobel já tinha ido para Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer pela sua abordagem experimental à luta contra a pobreza. Se Keynes considerava que os economistas deviam ser dentistas, Duflo e Banerjee assumem-se como canalizadores, capazes de analisar no terreno a infraestrutura de políticas públicas e os seus efeitos. Representantes de uma ciência mais empírica, com menos teoria e mais dados. Há quem lhe chame uma “revolução de credibilidade”.
“A expressão “revolução de credibilidade” vem de um artigo de 2010 de Angrist”, lembra Miguel Faria e Castro, da Reserva Federal de St. Louis. “O artigo apontava que a área da microeconomia aplicada tinha melhorado muito desde o início dos anos 80, devido a grandes inovações metodológicas que se encontram relacionadas com o desenho de estudos.”
Que novidades eram essas? “Essas duas grandes inovações eram a utilização de “experiências naturais” e “estudos randomizados controlados” (RTC), que permitiram aos investigadores destilar os verdadeiros efeitos causais de determinadas políticas e choques”, acrescenta o economista à VISÃO.
Os vencedores do Nobel fazem parte desse movimento. “A investigação do David Card parte da ideia de que qualquer explicação para o funcionamento da economia, para poder ser credível, deve passar o filtro da confrontação com dados empíricos, analisados com rigor.”, diz Ana Rute Cardoso. “A transparência das metodologias e o caráter inovador de muitos dos seus resultados levou a que fossem alvo de discussão, replicação e validação. Hoje parece-nos óbvio esse modo de fazer ciência e que a economia deve descer ao terreno para testar as suas teorias.”
Numa thread no Twitter, Paul Krugman, também ele Nobel da Economia (2008), elogiava os vencedores deste ano por terem desafiado o “101ism” da ciência económica ou “a pulsão de interpretar o mundo nos moldes que aprendemos nos primeiros capítulos de um manual [de economia]”, escreveu. “Dados empíricos, no entanto, mostram frequentemente que a complexidade do mundo real resiste ao 101ismo.”
Ana Rute Cardoso explica que, “ao brincar com a expressão “101ismo”, Krugman está a alertar para os perigos de aplicar os rudimentos da economia e não progredir para análises mais aprofundadas”. A economista nota que, entre alguns dos “princípios rudimentares” está a ideia de que, “se determinado preço aumenta, a quantidade procurada diminui e a oferecida aumenta; ou que a escassez é uma constante do mundo e, por isso, todos ponderamos racionalmente custos e benefícios”. Por exemplo, será que o reconhecimento da sua escassez tem levado a escolhas mais racionais e eficientes sobre a utilização de recursos do planeta?
João Pereira dos Santos fala na existência de “modelos muito estilizados da realidade”, que assumem “concorrência perfeita”, “consumidores 100% racionais e com toda a informação”. “A economia comportamental já coloca em causa muitos destes modelos.”
Embora reconheça que a evidência científica tem hoje muito mais peso na definição de políticas públicas, Miguel Faria e Castro recomenda cautela com conclusões muito abrangentes, como se esta onda estivesse a varrer cegamente toda a economia. Estes estudos são mais úteis para a microeconomica. Na macro, os avanços empíricos têm sido mais limitados, ainda que seja “uma área muito entusiasmante onde há muita investigação ativa”. Mais: grande parte do edifício económico tem resistido a estas inovações, em muitos casos, absorvendo-as e adaptando-se a elas.
Noutro fio no Twitter, Erik Öberg, professor na Universidade de Uppsala, na Suécia, dava vários exemplos de lições macro que temos aprendido com estas novas metodologias. Como reage o consumo a transferências orçamentais para as famílias? Um estudo de 2006 mostra que o efeito é grande, especialmente em famílias com dificuldades financeiras. Como é que o endividamento dos agregados influencia o incumprimento de crédito durante uma recessão? Um paper de 2011 olhou para a crise financeira nos EUA e encontrou ligações relevantes com a agressividade dos pedidos de empréstimo. Disrupções do mercado financeiro influenciam o emprego? Um estudo de 2014 mostra que o impacto pode ser significativo.
“A economia deixou de ser uma ciência teórica. Agora testa as suas teorias. Há cada vez mais dados e cada vez melhores métodos”, diz João pereira dos Santos.
Krugman, como outros, usa estes avanços para marcar pontos políticos. “Muito do nosso mundo político adora enfatizar incentivos e tudo isso, porque destacar os efeitos potenciais de incentivos fiscais e de benefícios ajuda a justificar a desigualdade. Dados empíricos servem como um choque de realidade contra esse preconceito”, escreve.
Este debate tem-se intensificado e a clivagem é bastante visível nos Estados Unidos, especialmente desde que se começou a debater os programas de estímulo propostos por Joe Biden, seja na discussão sobre generosidade de apoios sociais, ambição de investimento público, medo de inflação ou críticas/elogios ao trabalho da Fed. Numa referência ao debate entre “progressistas” e “centristas” – no fundo, entre a ala esquerda do Partido Democrata e o seu centro -, Krugman acusa os segundos de viverem no passado. “A investigação empírica moderna normalmente mina a ortodoxia de mercado livre que dominou a nossa cena política até não há muito tempo.”
Claro que muita gente discordará desta descrição de Krugman. Mas é inegável que muitas das descobertas dos últimos anos questionaram algumas das “verdades universais” que guiavam o debate económico. E isso tem um impacto muito visível, ao influenciar medidas e reformas a colocar no terreno. Basta ver a evolução das posições da OCDE ou da Comissão Europeia em relação ao mercado de trabalho. Até o FMI tem mudado.
“Esta revolução de credibilidade tem permitido uma muito melhor mensuração dos custos e benefícios de vários tipos de políticas públicas, o que tem levado vários economistas e responsáveis políticos a repensar muitas das suas posições”, refere Faria e Castro. “Graças a esta revolução, a política económica assenta hoje em dia muito menos em “senso comum” (como era o caso nos anos 80) e muito mais em evidência científica sobre os efeitos de políticas.”
O Nobel de 2021 serve de ponto de exclamação sobre estas transformações. Um sinal de que a economia já mudou.