Impostos mais altos sobre os mais ricos, reforço da intervenção do Estado na economia, preocupação com a desigualdade e com as alterações climáticas. Nos últimos anos, o FMI abraçou uma nova agenda que, em muitos casos, parece estar a quilómetros daquelas que eram algumas das suas posições no passado ou, pelo menos, a nossa perceção delas. Lembra-se quando foram atirados tomates, petardos e garrafas de cerveja à sede do Fundo, na Avenida da República? Foi só há 9 anos. Escrevemos sobre essa evolução na EXAME de junho.
“O mundo mudou. As taxas de juro caíram. A desigualdade aumentou. A política monetária passou a estar mais limitada. Aumentou o foco na política orçamental. Em resposta, o FMI reviu as suas posições. E, de facto, mudou muito”, dizia à EXAME Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI.
Por vários motivos – conclusão que a resposta à crise anterior foi insuficiente, mudança de ambiente macroeconómico, desenvolvimentos na ciência económica – o posicionamento do FMI tem mudado, avançando com algumas propostas surpreendentes. O último episódio até envolve um nome que conhecemos bem. No “Fiscal Monitor” de abril, Vítor Gaspar, diretor do Departamento de Finanças Públicas e ex-ministro das Finanças, assina um texto em que é sugerida a criação de uma contribuição extraordinária sobre os mais ricos para financiar despesa relacionada com a pandemia.
Esta não é, contudo, a primeira vez que o FMI adapta a sua visão do mundo. Desde que foi criada nas cinzas da II Guerra Mundial, a instituição tem calibrado a sua intervenção, acompanhando o ambiente económico e o consenso político nos países mais ricos do mundo.
Poucas pessoas conhecem tão bem a história do Fundo como James M. Boughton, investigador do CIGI e ex-historiador do FMI. Entrevistado pela EXAME, diz-nos como tem visto a evolução do Fundo e o que explica esta assunção recente de posições mais surpreendentes. Segue aqui a versão completa da entrevista que lhe fizemos há um mês.
Queria que me ajudasse a analisar os últimos anos do FMI, mas se calhar é útil começar por olhar para a história do Fundo.
Durante muito tempo, de 1947 ao final dos anos 80, a ideia do FMI era focar-se na economia em geral e não na forma como o dinheiro era gasto. Nem sempre foi fácil ser “puro”, mas era esse o objetivo. No final dos anos 80, percebeu-se que isso era insuficiente. Os governos tomavam o caminho mais fácil, havia pressões políticas de curto prazo… Portanto, nos anos 90, o FMI tornou-se mais envolvido em assuntos políticos em cada país.
Foi por essa altura que se formou o Consenso de Washington? Uma receita que passou a ser sempre repetida.
Como regra geral, diria que sim. A pressão aumentou nos anos 80, porque muitas coisas não estavam a funcionar, mas foi nos anos 90 que o FMI começou a abraçar a ideia de que tinha de estar envolvido no processo de decisão. No final dos anos 80, na América Latina, por exemplo, os governos foram obrigados a tomar decisões complicadas e culpavam o FMI por elas. Portanto, o FMI achou que, para fazer o seu trabalho, tinha de ser mais pró-ativo. Os anos 90 foram o pico do envolvimento do FMI em políticas públicas e nesse assegurar de que o Consenso de Washington era seguido o mais próximo possível e no maior número de países.
As políticas impostas pelo FMI estimularam a cooperação entre países, mas também refletiam alguma falta de diversidade ideológica dentro da instituição?
Acho que é um argumento justo. Havia um consenso entre os técnicos e direção do FMI nos 90 de que algo como o Consenso de Washington era uma boa fórmula e acho que isso ainda é verdade hoje. A ideia de que os países têm de ter políticas macroeconómicas saudáveis, défices limitados e não muito crescimento da moeda em circulação. Mas também é verdade que, se aderir a uma escola de pensamento económico de forma muito convicta, vão escapar-lhe nuances que podem fazer as coisas funcionarem melhor. No final dos anos 90, havia uma aceitação forte de que o FMI tinha ido longe demais nesse sentido. Depois disso, uma das maiores mudanças no Fundo foi abraçar a ideia de que os países tinham de se responsabilizar pelos programas de ajustamento.
Para não ser uma imposição.
Para que os países sejam encorajados a assumir a liderança no desenho dos seus programas e para não ser o FMI a impor certas fórmulas. Foi uma grande mudança de pensamento no FMI. Não foi uma viragem de 180 graus, mas incentivou mais o trabalho com os países, ver o que eles acham e o que podem fazer. Tentar não impor tanto, como era feito nos anos 90.
Seja pelos exemplos da América Latina, Ásia no final dos 90 ou na crise da dívida europeia, o FMI foi-se tornando sinónimo de austeridade. Isso era inevitável, tendo em conta a natureza dos programas? Penalizou a imagem do Fundo?
Os EUA podem pedir todo o dinheiro emprestado que precisem a taxas de juro muito razoáveis. Os investidores querem emprestar-lhe. Por outro lado, há países que têm de enfrentar condições rigorosas e, quando os mercados consideram que é demasiado arriscado emprestar-lhe, a única opção é o FMI, que coloca como condição o país colocar as suas finanças públicas em ordem. Isso é descrito como austeridade. O mais interessante na última década é que essas situações mudaram, porque o FMI tem lidado com países diferentes. Por exemplo, quando começou a emprestar a países europeus, que tinham outro tipo de problemas, como Grécia e Portugal. Não eram tanto excessos domésticos, como desequilíbrios entre esses países e outras regiões europeias. Exigiam outro tipo de processo para reduzir as assimetrias entre Norte e Sul da Europa. O primeiro instinto foi tentar impor austeridade, mas ela não resultou. Foi necessário um acordo mais flexível. Essa transição é mais complicada, porque exige mais atenção às condições locais e trabalhar de forma mais próxima com o Governo.
Afastar-se um pouco mais dessa austeridade pura.
Sim. A maioria dos países que pedem ajuda financeira ao Fundo ainda têm poucas alternativas. O FMI é o último recurso, porque existe um estigma em torno desses empréstimos e porque o FMI quer que façam grandes reformas. Dito isto, acho que o FMI se tornou mais flexível nos últimos 12 anos [desde a crise de 2008] em relação às políticas que exige. Foca-se mais na estabilidade e sustentabilidade de longo prazo. E é aí que chegamos à preocupação com alterações climáticas, desigualdade ou gastos militares excessivos. Temas estruturais em que o FMI tem trabalhado mais com os países. Há uma mudança cultural, não apenas entre os técnicos, mas também na forma como os responsáveis políticos dos países olham para isto, talvez porque também tiveram problemas nos últimos anos.
Isso não se vê apenas no FMI. Na União Europeia, vamos ter transferências diretas entre países com o novo fundo de recuperação comum. É mais abrangente do que o FMI.
Exatamente. A UE atravessa grandes mudanças. Quando a crise anterior chegou, havia algum desprezo, principalmente em relação aos gregos, dizendo que foram eles que criaram o problema. “Porque devemos resgatá-los?”, perguntava-se. Hoje, acho que há mais compreensão de que qualquer um pode enfrentar problemas e que os países têm de trabalhar juntos se quiserem chegar a uma solução sustentável. É uma grande mudança. Nos EUA, demorou um século e meio e uma guerra civil para chegarmos a esse ponto. O mundo acelerou e a UE avançou muito nos últimos 12 anos.
A crise financeira global de 2008 – simbolizada na queda do Lehman Brothers – foi importante para estas mudanças no FMI? Houve várias análises sobre o que a provocou. Daqui a algumas décadas será visto como o momento de viragem?
Não acho que o colapso do Lehman tenha tido um grande impacto no FMI. Foi mais importante para os governos nacionais. Muito poucas pessoas perceberam antes da crise quão interconectado estava o sistema financeiro mundial. Se me perguntar o que me preocupa é que, embora haja essa compreensão, não foi feito muito para reduzir essa interdependência. Nos últimos anos temos visto um grande aumento do apetite pelo risco. Até agora, isso não tem provocado problemas, mas sabemos que, mais cedo ou mais tarde, uma crise é provável.
Além de uma evolução no processo de tomada de decisão interno, houve também uma evolução ideológica? Por exemplo, no Fiscal Monitor vemos agora sugestões de maior progressividade nos impostos, tributação da riqueza, reforço da despesa do Estado, preocupação com desigualdade e, em geral, mais espaço para ideias heterodoxas. Como se explica?
Não acho que tenha havido uma grande mudança nos técnicos do FMI. Trabalhei no FMI mais de 30 anos. Diria que o pensamento dos técnicos é de centro-esquerda. Com ênfase em centro. Eles vêm de mais de 100 países com muitos backgrounds diferentes. Também há muitos conservadores, mas se tivesse uma grande discussão, o pensamento dominante seria ligeiramente à esquerda do centro. A questão é “o que se pode fazer”. O FMI está limitado pelo que os países que têm problemas acham e pelo que defendem os países que emprestam o dinheiro. Acho que foi isso que mais mudou.
A Administração Biden é um bom exemplo. Mesmo em comparação com Barack Obama, é um Executivo mais progressista, com propostas mais à esquerda. Isso é um reflexo dessa mudança de ambiente?
O facto de o FMI ser mais ativo publicamente no apoio a essas políticas deve-se ao facto de as lideranças do G20 terem avançado de forma a que o FMI possa dizer “isto é agora possível”. Antes não podia ir muito longe, a não ser que os países fossam capazes de implementar essas políticas. Foi menos uma mudança dramática de pensamento no Fundo e mais uma mudança na arte do possível. Agora, há uma liderança diferente: uma UE mais unida, uns EUA com uma visão mais progressista…
O próprio mundo também mudou? Temos hoje um ambiente de taxas de juro muito baixas e inflação controlada. Isso também dá mais margem aos governos?
A questão central é que há muitos problemas globais que foram ignorados nos últimos 40 anos. Desde a revolução conservadora nos EUA e no Reino Unido, liderada por [Ronald] Reagan e [Margaret] Thatcher nos 80, instalou-se a ideia de que o motor do crescimento e progresso deveria ser o setor privado e não o Estado. Isso significou que os problemas que apenas podem ser resolvidos por ação coletiva foram ignorados. Agora chegámos ao ponto de viragem. Temos um enorme problema com alterações climáticas que ameaça anular todo o nosso progresso económico e temos um enorme problema de desigualdade de rendimento que ameaça o futuro da nossa democracia. Isso significa que é preciso cooperação global e ação coletiva doméstica, com um regresso a um sistema em que o Estado tem um papel importante a guiar a atividade económica. Ninguém acha que Biden está mais à esquerda do que Obama. São ambos de centro-esquerda. Mas, em 2009, quando Obama se tornou Presidente, estes problemas não tinham atingido um ponto que lhe desse cobertura política para fazer grandes mudanças. Biden acha que, agora, chegámos a esse ponto. Além disso, há também o reconhecimento de que os EUA estariam hoje melhor se tivessem sido implementadas mudanças maiores em 2009. O programa de estímulo não foi grande o suficiente. Os problemas tornaram-se muito mais graves e mais óbvios, a que se soma agora uma crise de saúde pública. Achar que o mercado pode resolver todos os nossos problemas é de loucos. O que não quer dizer que devemos defender o caminho para um socialismo global…
Caminhámos demasiado longe numa só direção?
Sim. Se quisermos ter, dentro de 30 anos, um ambiente produtivo, temos de andar na outra direção, com uma verdadeira parceria entre governo e setor privado.
Esse reconhecimento chegou ao FMI?
Acho que há muita nuance. Se olharmos para a liderança do FMI, quando [Jacques de] Larosière foi diretor-geral entre os anos 70 e final dos 80, ele dizia-me que favorecia os problemas do terceiro mundo, mas achava que havia pouco que o FMI pudesse fazer, o que o levou a focar-se mais na estabilidade financeira. Quando Michel [Camdessus] o substituiu, empurrou durante o resto do século o FMI numa direção mais social. Quando ele se reformou, foi substituído por Horst Köhler, achando-se que agora, com um alemão, o Fundo só se iria focar na estabilidade financeira. Não foi isso que aconteceu. Quando Christine Lagarde chega em 2011, o espírito de Camdessus ainda lá estava e ela pode ser muito mais vocal sobre a necessidade de cooperação e de o FMI ter um papel relevante no mundo. [Kristalina] Georgieva construiu em cima disso e quase sempre que fala em público menciona desigualdades, alterações climáticas e necessidade de ação coletiva. De certa forma, houve alguma continuidade.
Uma continuidade em esteróides, talvez.
Sim. É uma boa expressão. Não é como se o FMI tivesse acordado de um sono profundo. Atravessa períodos em que pode falar mais e ter um papel mais ativo e outros em que tem de esperar por momentos mais favoráveis. Agora é um desses momentos favoráveis.