Esta semana, a capa da VISÃO explora o perigo das teorias da conspiração. Tecnologia 5G acelera a transmissão da Covid-19, o vírus é uma arma química da China, Bill Gates quer enfiar-nos microchips no sangue, George Soros está a controlar os protestos Black Lives Matter. Escolham a teoria mais louca: é possível que ela esteja a dar a volta ao mundo e cada vez mais próxima do poder.
Uma das pessoas entrevistadas nesse texto é Nancy Rosenblum, professora emérita de Harvard e co-autora de “A Lot of People are Saying” (com Russell Muirhead). Como nem tudo coube no artigo, publicamos aqui as respostas completas que deu às nossas perguntas.
Antes disso, alguns pontos de introdução. A ideia de que há hoje mais teorias da conspiração do que no passado parece infundada. Em “American Conspiracy Theories” (2014), Joseph Uscinski e Joseph Parent analisam as “cartas ao diretor” enviadas para o “The New York Times” e para o “Chicago Tribune” nos 121 anos anteriores, concluindo não existir mais conversa sobre conspirações neste século. Pelo contrário, ela parece até ter diminuído desde os anos 80/90.
Tão antigo como as conspirações é o medo de sermos dominados por elas e acabarmos num mundo em que os factos não importam. Em 1964, o NYT já tinha a certeza de que vivíamos numa era de teorias da conspiração, porque elas “tinham crescido como ervas daninhas neste país e no estrangeiro”. Quase três décadas depois, em 1991, o “Washington Post” também não tinha dúvidas: “vivemos numa era de teorias da conspiração”. Hoje, basta fazer uma pesquisa rápida no Google para encontrar ampla reflexão sobre o tema.
“Os jornalistas parecem sempre pensar que estamos numa era dourada das teorias da conspiração e parecem dizê-lo todos os anos, mesmo que recuemos várias décadas. Mas não existe qualquer evidência de que isso seja verdade”, diz-nos Uscinski, por email. O que não significa que esteja tudo na mesma. “O que é diferente é que o Presidente [dos EUA] usa teorias da conspiração para falar com a sua base [de apoio] e fá-lo frequentemente”, acrescenta.
Os jornalistas parecem sempre pensar que estamos numa era dourada das teorias da conspiração e parecem dizê-lo todos os anos, mesmo que recuemos várias décadas. Mas não existe qualquer evidência de que isso seja verdade
Joseph Uscinski
A eleição de Donald Trump – e de outros líderes populistas, como Bolsonaro – marcou uma diferença importante. As teorias saíram de caves escuras e nichos da Internet para conferências de imprensa de chefes de Estado. No caso se Trump, não é de estranhar. A sua carreira política nacional começou com uma teoria da conspiração, defendendo que Barack Obama não tinha nascido nos EUA. Numa sondagem de 2015, 6 em cada 10 apoiantes de Donald Trump acreditavam que Obama nasceu fora do território americano e 2/3 estavam convencidos que era muçulmano.
Claro que o Presidente dos EUA não inventou nada. Ele é tanto um campeão deste ambiente como um produto dele. Sem a polarização política e a descredibilização das instituições (jornalistas, cientistas) das últimas décadas, talvez não tivesse chegado à Casa Branca.
Os técnicos de saúde não percebem nada disto, as estatísticas estão manipuladas, os economistas são ignorantes e os jornalistas escondem as notícias. Conspiração e crítica vão sendo mais difíceis de distinguir e quem invente a teoria mais rebuscada é, muitas vezes, elevado a herói, por ter a coragem de desafiar o senso comum e trazer a “verdade” aos seus seguidores no Twitter. “O que é colocado em causa […] é a própria noção da especialização (caso contrário, o problema poderia ser resolvido substituindo especialistas por outros)”, escreve Mark Andrejevic em “Infoglut”.
A principal arma nesta luta contra a especialização foi o desenvolvimento da Internet e a explosão das redes sociais. Os antigos “gatekeepers” foram atropelados pela força das massas. O poder da difusão foi descentralizado e isso é uma oportunidade para quem queira disseminar teorias da conspiração.
Para os políticos, é um ambiente favorável para usarem em qualquer altura o “muita gente diz que [inserir opinião que lhe agrada]” como forma de legitimar a sua própria posição. Por exemplo, quando o CDS criticou a utilização de um vídeo de Rui Tavares na Telescola, a justificação para pedir explicações ao Governo foi terem recebido “denúncias de várias pessoas”. A polémica tinha nascido horas antes no Twitter, com um post de Nuno Melo.
Os próprios algoritmos parecem desenhados para nos empurrar pelo buraco do coelho abaixo. As sugestões do YouTube, por exemplo, dão-nos uma pá e metem-nos a escavar. Procurou as imagens do 11 de setembro? Poderá estar interessado nestas duas horas sobre como o atentado foi organizado pelo governo norte-americano? “A Internet foi feita para a teoria da conspiração: ela é uma teoria da conspiração: uma coisa leva a outra, existindo sempre outro link que nos puxa mais para o fundo, até nenhum lugar e nenhuma coisa”, escreve a antropóloga Kathleen Stewart, citada pelo mesmo Andrejevic.
Quando juntamos todos os ingredientes, podemos ter chegado a um ponto em que, embora não haja mais, as teorias da conspiração tornaram-se mais perigosas. Menos fóruns de Internet a falar sobre discos voadores e mais homens a entrar com uma AR-15 numa pizzaria para salvar crianças de um esquema de tráfico sexual organizado por Hillary Clinton. Deixaram de ser apenas conversa de café para terem uma influência grande na degradação das instituições democráticas. É também sobre isso que falámos com Nancy Rosenblum. Aqui:
Sempre tivemos tivemos teorias da conspiração, mas parecemos estar a atravessar uma espécie de era dourada. Elas parecem cada vez mais perigosas. O que mudou?
Sim, as teorias da conspiração são tão antigas como a política. E existe alguma evidência na ciência política de que não existem mais hoje do que no passado. Mas as diferenças são importantes. Destacam-se três. Uma é a tecnologia, que permite que elas se espalhem facilmente – através de redes sociais, etc – e que permitem a políticos e empreendedores da conspiração dizerem “muitas pessoas dizem”. Outra mudança é que o Presidente [dos EUA] tem uma mentalidade conspirativa. Ele “apodera-se da realidade” e tem a capacidade de impor essa realidade comprometida à nação, com a cumplicidade (sou submissão) do Partido Republicano. Ele não a usa de forma estratégica – é assim que ele pensa tout court. A terceira mudança é que hoje temos conspiração sem teoria, sem provas, sem argumentos, sem padrões que mostrem intenções maléficas. Em vez disso, basta uma afirmação crua (“as eleições foram manipuladas!”) ou sugestões (“gostaria de saber mais”). Estas asserções são facilmente comunicadas e estabelecem uma relação com a raiva e agressão dos simpatizantes políticos.
O Presidente [dos EUA] tem uma mentalidade conspirativa […] Ele não a usa de forma estratégica – é assim que ele pensa tout court
Nancy Rosenblum
Que características têm em comum as teorias da conspiração mais bem-sucedidas?
Sejam teorias da conspiração ou conspirações sem teoria, a ideia é que as coisas não são aquilo que parecem e que um acontecimento é resultado de um objetivo secreto por atores malignos. Não existem acidentes ou consequências imprevistas. A nova conspiração sem a teoria destaca-se, porque muitas vezes nem existe um acontecimento para explicar: “Pizzagate”, por exemplo, é pura invenção. É importante notar que algumas teorias da conspiração são verdadeiras e que algumas servem a democracia – descobrindo “dinheiro obscuro” na política, por exemplo.
No contexto de fake news e erosão dos factos, este ambiente constitui uma ameaça para a democracia?
O nosso livro argumenta que os ataques conspirativos à oposição política e às instituições que produzem conhecimento tem efeitos devastadores, especificamente na deslegitimação da democracia, ao atacar as ideias de oposição leal, que é o coração da política democrática, e a necessidade de conhecimento para governar. Os conspiradores não têm interesse em governar. Esse facto precisa de ser sublinhado. O conspiracionismo tem tudo a ver com derrotar os inimigos e é, por vezes, apocalíptico.
Os ataques conspirativos à oposição política e às instituições que produzem conhecimento tem efeitos devastadores, especificamente na deslegitimação da democracia
NANCY ROSENBLUM
É possível um regresso a um debate mais racional com redes sociais não-reguladas ou será necessário, pelo menos, algum nível de auto-regulação? Nesse campo, aquilo que o Twitter está a fazer, ao sinalizar informação falsa em tweets como os de Donald Trump, pode ter algum impacto?
A regulação dos media não terá qualquer efeito naqueles que concordam com as acusações conspirativas, porque eles identificam-se politicamente como “nós” e gostar e partilhar é uma forma de participação política. A proteção que se procura é para o resto das pessoas. Para restaurar algum senso comum e diminuir a desorientação que vem da divisão crítica que se abriu em relação ao que significa saber alguma coisa. Esta divisão é mais profunda do que a polarização política. Torna a política impossível, porque não existem pontos comuns.
Qual é a melhor forma de combater uma teoria da conspiração? Deixar que ela se consuma ou contra-argumentar agressivamente?
Tem de ser confrontada. Confrontar a conspiração com a verdade. Mas a protecção-chave será quando os representantes políticos se manifestarem de forma agressiva, especialmente os republicanos que têm deixado andar. Enquanto houver um muro de silêncio e consentimento, o conspiracionismo continuará a ser uma arma política eficaz.