A pergunta do título pode parecer idiota. Afinal, como pode uma disciplina contribuir para o sexismo? Mas é precisamente isso que diz um estudo recente intitulado “A Economia Faz-te sexista?”. Não só os alunos de economia tendem a ser mais mais sexistas do que noutras disciplinas como, pelos vistos, a frequência no curso só contribui para aumentar esse enviesamento em relação às mulheres.
Ao analisar o comportamento de mais de três mil estudantes chilenos, três economistas concluem que, à entrada na faculdade, os alunos de economia já demonstram mais preconceitos do que estudantes de outras áreas de investigação. Mais curioso ainda, a partir do segundo ano, esse desvio parece ser ainda maior, especialmente entre os homens.
O maior enviesamento à entrada é mais fácil de explicar. É, quase todo, justificado pelas características dos alunos. Estudantes mais religiosos ou que se identifiquem politicamente mais à direita têm mais tendência para ir para cursos de economia, o que se relaciona com um maior preconceito sobre o papel das mulheres, explica o estudo.
A segunda conclusão é mais complexa. Que características do curso fazem com que os alunos se tornem mais sexistas? Uma das autoras falou com a EXAME para a revista de junho e deu algumas pistas. Em geral, os alunos de economia, têm menos contacto com mulheres ao longo do curso, seja como professoras ou colegas. Mas a possibilidade mais surpreendente é que a própria matéria das aulas possa contribuir para o sexismo extra da economia. “Por exemplo, ensinamos que, se os mercados são competitivos e os trabalhadores são pagos consoante a sua produção marginal, então a diferença salarial entre homens e mulheres deve refletir diferenças de produtividade”, diz-nos Valentina Paredes. São apenas hipóteses. Os autores admitem que não conseguiram identificar exatamente o que está faz aumentar o preconceito.
Ensinamos que, se os mercados são competitivos e os trabalhadores são pagos consoante a sua produção marginal, então a diferença salarial entre homens e mulheres deve refletir diferenças de produtividade
Valentina paredes
A entrevista completa a Valentina Paredes foi publicada na EXAME de junho.
Um exército de homens na TV
Susana Peralta é economista na Nova SBE, colunista do Público e comentadora ocasional na televisão. É fácil identificá-la, porque é uma das poucas mulheres num ecossistema de comentário económico bastante homogéneo em Portugal: homens brancos e mais velhos. “Há uma prevalência enorme de homens no espaço público, assim como em posições de responsabilidade nas faculdade. Sempre que o assunto envolve finanças e o economia, o imaginário das pessoas leva-as a pensar em homens”, diz à EXAME. “É evidente que existe um problema de sexismo na área. E a ausência de modelos de comportamento piora as coisas. Há uma grande sub-representação das mulheres.”
Essa sub-representação sofre de um problema de círculo vicioso. Como existem à partida menos mulheres, isso dificulta a ascensão a posições de liderança o que, por sua vez, prejudica o número de mulheres interessadas na área. Em “Gender Differences in the Choice of Major: The Importance of Female Role Models”, duas economistas concluem que a exposição de alunos a mulheres bem-sucedidas que se licenciaram por aquela faculdade aumenta significativamente a inscrição de alunas em cadeiras de economia, reforçando a probabilidade de seguirem essa especialização. Como muitas delas planeavam seguir áreas onde se recebe tendencialmente menos, essa decisão também tem impacto positivo nos seus rendimento futuros.
Há uma prevalência enorme de homens no espaço público, assim como em posições de responsabilidade nas faculdades. Sempre que o assunto envolve finanças e o economia, o imaginário das pessoas leva-as a pensar em homens
Susana peralta
Depois de muitos anos em que foi ignorado, o sexismo entrou definitivamente na agenda da economia. Por ocasião do encontro anual da American Economic Association (AEA), o “New York Times” escreveu que a disciplina tem sido mais lenta do que outros campos a corrigir os problemas de representação raciais e de género. As análises mostram que esse efeito está presente logo na base da pirâmide e que continua até ao topo. E que pouco tem vindo a melhorar.
Mesmo as mulheres que conseguem furar essa barreira, arriscam encontrar um ambiente hostil. Uma análise de mais de um milhão de posts num fórum online muito popular entre economistas revela o nível de discriminação nas conversas do dia-a-dia, quando se pode falar de forma anónima. A lista de 30 palavras mais associadas quando se discutiam mulheres economistas não era nada agradável: hotter, lesbian, bb (“baby”), sexism, tits, anal, marrying, feminazi, slut, hot, vagina, boobs, pregnant, pregnancy, cute, marry, levy, gorgeous, horny, crush, beautiful, secretary, dump, shopping, date, nonprofit, intentions, sexy, dated e prostitute.
Entre as palavras mais associadas com os homens também há “homo” e “bully”, mas a lista é muito mais profissional e inclui menção a “nobel”, “mathematician”, nomes de faculdades e escolas de pensamento económico, bem como “pricing” ou “greatest”.
Sabemos que as mulheres economistas têm menos probabilidades de serem promovidas, mesmo quando se ajusta pela produtividade; que economistas homens demonstram uma menor preferência pela contratação de mulheres (em comparação com outras áreas, onde essa preferência parece existir); que as mulheres recebem menos crédito quando são co-autoras de papers; que o processo de revisão de estudos assinados por mulheres demora mais tempo e é mais exigente; e que as mulheres estão subrepresentadas nos exemplos dados nos manuais de economia.
O #MeToo não aconteceu aqui
Em Portugal, Susana Peralta aponta a falta de uma política clara de “ação afirmativa”. Isto é: perante a desigualdade de oportunidades e o reconhecimento de um enviesamento na seleção, ter a preocupação de garantir maior diversidade do corpo docente e dos investigadores. “Um anúncio de emprego numa universidade alemã tem logo uma declaração de diversidade. Aqui, isso não existe nos processos de recrutamento”, esclarece à EXAME.
Outro problema é que “a maior parte das faculdades não tem uma política clara de proteção da maternidade na forma como avaliam o desempenho”. “A Nova tem feito progressos, mas quando eu cheguei este era um não tema. Quando fiquei grávida do meu primeiro filho, em 2008, fui falar com os responsáveis e eles pareciam nunca ter sido confrontados com isso”, recorda. “A FCT, por exemplo, não tinha, pelo menos nas minhas três licenças, extensão automática da duração dos projetos de investigação, uma vez tive de enviar um certificado de amamentação para justificar a extensão. E se tiveres um problema de assédio sexual, vais falar com quem? Cá, o #MeToo não aconteceu.”
Nos EUA, um inquérito da AEA a nove mil economistas concluía que 2% das mulheres economistas tinham sido agredidas sexualmente, 6% reportaram tentativas de agressão e 7% disseram que já foram ameaças com retaliação no local de trabalho se não “cooperassem sexualmente”. 1/4 dizia já ter optado por não se candidatar a um lugar para evitar situações de assédio sexual, discriminação e tratamento desrespeitoso, quase metade admitia que isso já as tinha impedido de colocar questões ou propor ideias na faculdade ou local de trabalho. Raça e orientação sexual também mostravam ser handicaps relevantes.
O então presidente da AEA, Ben Bernanke, disse ter ficado “perturbado” com essas conclusões e Janet Yellen considerou que a economia vivia numa “cultura inaceitável”. Foram aprovadas várias medidas para tentar combater esse ambiente nocivo.
Covid-19 é um novo obstáculo
O choque que a Covid-19 trouxe às nossas vidas não deve contribuir para uma melhoria destes problemas. Pelo contrário, os primeiros sinais parecem sugerir que as mulheres estão a ficar ainda mais para trás na investigação económica. Num momento em que muitos economistas estão em contra-relógio para apresentar novos estudos e em que as maiores revistas académicas estão a ser inundadas por propostas de publicação sobre esta crise inédita, as mulheres não estão a apanhar esta onda, mostra outro estudo recente. Os motivos, segundo as autoras de um estudo publicado no VoxEU, são uma maior cautela na hora de apresentar conclusões e o facto de a divisão de trabalho doméstico recair mais sobre as mulheres, o que, num contexto de isolamento com a família, lhes roubou ainda mais tempo para fazer investigação.
Que soluções? Não existem fórmulas mágicas, mas também não há caminhos que não passem por ter mais mulheres nas faculdades e posições de chefia. Pode haver também maior esforço para captar alunos mais diferenciados e um cuidado redobrado no material que é apresentado aos estudantes e nos exemplos dados. Os media podem fazer a sua parte e esforçar-se por não convidar sempre os mesmos para falar. Mas ainda antes de encontrar qualquer solução, é importante reconhecer primeiro que há um problema.