A resposta à emergência de saúde pública implicou congelar a atividade económica e provavelmente provocar uma das maiores recessões de que há registo. Ao contrário do que é habitual em choques desta dimensão, a dor económica está a ser provocada deliberadamente, ao mandar as pessoas para casa e ao limitar o funcionamento das empresas. Desde o início que isso suscitou debate, com muitos a argumentarem que os danos económicos seriam de tal ordem que iriam afetar e, eventualmente, destruir mais vidas do que a Covid-19. Talvez ninguém seja menos subtil do que Donald Trump que, em ano eleitoral, tem insistido que “a cura não pode ser pior do que a doença”. Até agora, não era de todo claro que essa lógica de oposição entre duas prioridades fizesse sentido. Mas, daqui para frente, essa tensão pode ficar mais evidente.
“Neste momento, penso que não há conflito na recomendação que vem dos economistas ou dos epidemiologistas. Ambas as abordagens concordam que neste momento seria melhor manter o lockdown, sem que isto negue os enormes custos que daí vêm”, explica Ricardo Reis, professor na London School of Economics, em resposta às perguntas da EXAME. “Simplesmente, relaxando o lockdown levaria a: enorme número de mortos previstos; muitas pessoas a decidirem ficar em casa não reatando a atividade económica; e possíveis lockdowns no futuro num ciclo mais custoso de “abertura e fecho” do que fechar agora de uma só vez.”
Esta conclusão parece suportada pelo estudo co-autorado por Sérgio Rebelo, professor na Kellogg School of Management, e publicado em março deste ano. O paper – “The Macroeconomics of Pandemics” – conclui que medidas de confinamento agravam a recessão, mas evitam mortes. No seu modelo, são 500 mil vidas só nos EUA.
Pedro Pita Barros, professor catedrático na Universidade Nova de Lisboa, também não vê fundamento para essa bifurcação do debate. “A tensão salvar vidas/salvar a economia é normalmente mal colocada no âmbito desta pandemia. Se não se contiver a pandemia (“salvar a saúde” primeiro), o aumento do número de casos que obrigaria a tratamento e a não ir trabalhar também teria potencial para parar parte substancial da atividade económica e não se salvaria a economia de qualquer modo”, refere, por email. “Mas forçar toda a gente a estar em casa três semanas – mas mesmo toda – pararia muito provavelmente a pandemia, mas criaria também outra mortalidade (por exemplo, casos não tratados de outras doenças, AVC, ataques de coração, talvez até fome). A economia não pode parar completamente.”
Outro estudo, publicado no final de março, conclui que, no longo prazo, o confinamento também é melhor para a economia. Três economistas olharam para a gripe de 1918 e constataram que as cidades norte-americanas que atuaram mais cedo e de forma mais agressiva – quarentenas, encerramento de escolas e empresas – não tiveram um desempenho económico pior depois da pandemia passar. Pelo contrário, ao evitarem mortes, cresceram até mais rápido.
Ainda assim, o debate tem-se intensificado, ganhando volume à medida que se começa a cristalizar a ideia de que Portugal escapou a desfechos mais dramáticos e que o coronavírus, pelo menos nesta primeira vaga, não provocou o caos no sistema de saúde. Ao mesmo tempo, começam a emergir os primeiros sinais de disrupção económica. Pode criar-se a ideia de que se está a pagar um preço demasiado caro por uma proteção contra um risco que não é assim tão grande.
Bernardo Gomes avisa que isso é uma ilusão. O professor na Faculdade de Medicina e no Instituto de Saúde Pública da Universidade de Porto nota que o importante não é tanto o que aconteceu, mas o que não aconteceu. “Já no outro dia fiz uma espécie de paráfrase de quem já o disse melhor que eu: “os sucessos da Saúde Pública são nada acontecer ou acontecer abaixo do esperado e as medidas tomadas parecerão sempre exageradas em caso de sucesso”, sublinha o médico de saúde pública.
O que ganhámos com este confinamento? “Não sabíamos até onde podíamos ir em termos de resiliência do Serviço Nacional de Saúde. E não se pense que isto foi ou está a ser fácil. As dores foram muitas na adaptação. Repito: precisávamos de ganhar tempo para que os serviços se adaptassem, para que descobríssemos até onde podíamos ir”, acrescenta Bernardo Gomes. Esse tempo permite o reforço do número de ventiladores, mais testes, formação de profissionais, mais organização e mais equipamento. “Uma pandemia destas vai ter impactos socioeconómicos inegáveis, mas olhando retrospectivamente, não vejo alternativa a não ser uma estratégia de supressão, como foi seguida.”
Era mais fácil persuadir as pessoas quando lhes era mostrada a necessidade de achatar a curva que aí vinha. Agora que isso está a ser feito – e que um pico insustentável foi, para já, evitado -, é mais complicado convencê-las da gravidade daquilo que não aconteceu.
Pedro Pita Barros sugere que quem insiste nesse raciocínio “implicitamente poderá ter em mente que, na ausência de lockdown, se continuaria como antes”. “Mas a situação alternativa ao lockdown não seria o que era antes e sim um número relativamente elevado de pessoas com a doença, umas graves a inundar o sistema de saúde, outras menos graves a ficarem em casa, outras mesmo não afetadas que poderiam optar por faltar ao trabalho, etc…”, avisa o especialista em economia de saúde.
Aliás, antes ainda de o Governo decidir avançar com medidas de confinamento, já havia pedidos para que isso acontecesse. Essa lógica é sublinhada num artigo recente de Ricardo Reis no Expresso: mesmo que o Governo decidisse “re-abrir” a economia, isso não faria grande diferença. As pessoas têm de sentir confiança para ir jantar fora ou ir experimentar casacos a uma loja de roupa. “Se António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa decidissem reabrir o país na segunda-feira, provavelmente seria isto que iria acontecer. Os netos não iam a correr abraçar os avós, nem muitos trabalhadores iam a correr para escritórios cheios de pessoas, nem a maioria das famílias ia lotar os restaurantes. Antes, estando tantos hoje tão bem informados sobre o risco do vírus e sobre as suas consequências mortíferas, muitos iriam escolher ficar em casa na mesma.”
Futuro mais tenso
A troca de emails da EXAME com estes três especialistas terminou há uma semana. Desde essa altura, há uma sensação de fast-forward na gestão da pandemia e todo o debate já virou para o “regresso à normalidade”. É previsível que a tensão entre economia e saúde pública seja avivada nas próximas semanas. Alguns desenvolvimentos contribuirão para isso: continuação da redução da emergência de saúde; agravamento substancial da crise económica e divulgação de indicadores de atividade e emprego (previsivelmente muito maus); e uma fadiga geral com o lockdown. Os especialistas já faziam esses avisos há alguns dias, quando falaram com a EXAME.
“Se este encerramento de atividade correr bem, com o número de pessoas com Covid-19 a baixar, haverá mais vontade de sair da situação”, prevê Pita Barros. “Em cima disso, os efeitos económicos vão-se começando a fazer sentir progressivamente, conforme as pessoas vão deixando de receber o rendimento que recebiam antes, e não têm poupanças para usar – a parte económica começará a ganhar mais importância relativa, à medida que se for ganhando na parte de saúde pública.”
Bernardo Gomes concorda. “Por saturação, por necessidade económica e sustentabilidade da sociedade, toda a gente quer abrir assim que seja possível. Mas quanto? Até onde? Discutindo com colegas, o diagnóstico é consensual: não há consenso”, afirma. A vantagem que temos para tomar essa decisão é a mesma que tivemos antes de decretar o lockdown: “podermos ver o resultado dos outros países que estão noutra fase epidemiológica.”
Economistas vs. epidemiologistas
Ricardo Reis também acha que, no futuro próximo, essa tensão se possa manifestar de forma mais clara. O economista vê duas avenidas para chegarmos a esse ponto. Em primeiro lugar, “porque a abordagem epidemiológica foca-se em trazer o R0 para abaixo de 1, mas uma abordagem económica pesa custos e benefícios”, explica. Em segundo lugar, “porque os economistas não tratam as probabilidades de contágio como variáveis fixas dadas pela Natureza, mas como podendo mudar se as pessoas mudarem a forma como se relacionam socialmente”. Por isso, antecipa que as previsões dos epidemiologistas vão mudar, “não apenas como resultado de ter mais dados, mas porque os dados mais recentes vão mostrar mudanças de comportamento”.
Embora nem todos encaixem nestas categorias fixas – a prova disso são as opiniões expressas neste texto -, a divisão entre “o economista” e “o epidemiologista” é uma forma útil de percebermos as diferentes abordagens a esta pandemia, nota o colunista da Bloomberg, Noah Feldman. O segundo está programado para travar a expansão de uma doença e a sua prioridade absoluta é preservar a saúde da população. Até agora, esta está a ser a abordagem vencedora durante a pandemia, comprovado pela decisão de entrar em lockdown, mas também por vitórias no campo da linguagem: “achatar a curva” tornou-se uma missão nacional.
Os economistas adotam uma abordagem diferente, assente em trade-offs. Num mundo de recursos escassos, não conseguem ignorar que, para ganharmos alguma coisa, temos de abdicar de outra. Além disso, numa profissão treinada para evitar recessões, governos aceitarem deixar as economias caírem em crises desta dimensão provoca-lhes arrepios.
“Se baixássemos o limite de velocidade para 10km/h, quase não haveria mortes na estrada, gostam de nos lembrar [os economistas]. O limite de 90km/h coloca um preço na vida humana, gostemos disso ou não”, ilustra Feldman. “Os economistas partilham o credo de que não existem valores absolutos, nem mesmo o valor da vida humana.”
De facto, numa perspetiva económica, tudo tem um valor, mesmo que não seja confortável pensar dessa maneira. Até existe um indicador para isso. Chama-se “value of statistical life”. O que raio é isso? “É um conceito usado em várias áreas (saúde, ambiente, transportes)”, explica Pita Barros. “Por exemplo, quanto se está disposto a investir numa estrada para baixar, em média, 2 mortes em cada 100.000 pessoas que potencialmente a usa.”
Aplicado à crise que estamos a viver, isso implica uma escolha dura: quanto dinheiro aceitamos gastar (ou perder) para evitar X número de mortes por coronavírus. Mas ela é também mais complexa. “No caso da Covid-19, há um elemento adicional que estes cálculos de vida estatística não consideram: a incerteza sobre a doença é grande, e a intervenção para eliminar essa incerteza também tem valor a ser considerado”, diz Pita Barros. “A intervenção económica de mitigação de quebra de rendimentos é também uma espécie de seguro para as pessoas, que tem valor além do valor instrumental de poder comprar bens e manter responsabilidades de pagamento assumidas”, acrescenta o economista. Além disso, como foi referido antes, é bem possível que a abordagem epidemiológica mais indicada seja também a melhor solução económica.
Daqui para a frente, o desafio deverá ser maior. Haverá mais opções e também mais potencial para discordância. E qualquer que seja o caminho a seguir, deverá ter sempre um olho na capacidade de manter o país unido. “A distribuição do custo económico vai exigir coesão social – a perda de produção é um choque real, vai haver redução em média do nível de vida este ano e vamos ter que, como sociedade, distribuir esse custo”, avisa Pita Barros. Ninguém está entusiasmado em começar essa conversa.