Temos muita dificuldade em falar de contas públicas. Na legislatura anterior – e no arranque da atual -, grande parte do debate orçamental concentrou-se no papel dos impostos e da carga fiscal, mas as rubricas mais relevantes para o ajustamento liderado por Mário Centeno estiveram quase sempre do lado da despesa. Uma tendência ainda mais difícil de compreender, tendo em conta que os portugueses parecem bastante mais interessados na situação débil dos serviços públicos do que no peso dos impostos.
Comecemos pelo princípio. O Estado tem défices quando gasta mais do que aquilo que arrecada. Em Portugal, o Governo de José Sócrates assistiu ao aprofundamento desse desequilíbrio até valores historicamente elevados. Em 2010, chegou aos 11,4% do produto interno bruto (PIB). Dois anos depois, Vítor Gaspar resumia bem a relação dos governantes (e eleitores?) portugueses com as contas públicas. “Existe, aparentemente, um enorme desvio entre o que os portugueses acham que devem ter como funções do Estado e os impostos que estão dispostos a pagar.”
Parece uma banalidade, mas pretendia assinalar que, até à crise, Portugal só conseguia viver com as contas no vermelho, incapaz de escolher entre gastar menos ou ir buscar mais dinheiro. Desde o 25 de abril de 1974, não houve um único ano sem défice. O Governo de Gaspar começou a reduzir esse fosso e Centeno aprofundou o trabalho até 2020, quando se deverá transformar num excedente de 0,2% do PIB. Como o ministro não se cansa de repetir, será o primeiro em democracia.
No entanto, sempre que é discutida a fórmula para atingir este feito, os impostos costumam ser a variável que recebe mais atenção, em especial a tão citada carga fiscal. Uma tendência estranha, tendo em conta o papel muito mais relevante da despesa.
Aliás, o OE 2020 é o primeiro dos orçamentos de Centeno em que os gastos públicos não recuam face à economia. Entre 2015 e 2020, a despesa afundará de 48,3% para 43,5% do PIB, o que significa que este Governo será responsável por emagrecer o setor público em 4,8 pontos percentuais. Está a ser uma dieta exigente. O Estado português deverá atingir este ano a dimensão mais pequena desde 2000 e engordar apenas umas gramas em 2020. Um resultado surpreendente para um Governo apoiado no Parlamento à esquerda.
Esta conclusão pode parecer contraditória com alguns dos títulos que lê nos jornais. É compreensível. É que a despesa medida em milhões de euros tem seguido uma trajetória ascendente. E até a despesa corrente, que exclui o investimento, aumentou todos os anos. Este aparente paradoxo explica-se com o facto de o ritmo de crescimento da despesa ficar consistentemente abaixo do crescimento da economia, o que se traduz numa perda de peso dos gastos, o que contribui para a descida do défice.
Por contraste, veja-se o que se tem passado com a receita. Segundo os valores inscritos no OE 2020, aquilo que o Estado arrecada com impostos e outras receitas terminará no próximo ano no mesmo nível de 2015, em 43,8%. Também neste caso, os valores nominais até têm aumentado todos os anos, mas acompanhando o ritmo da economia, o que significa que mantêm o mesmo peso.
Grande parte das notícias concentra-se na carga fiscal, a principal fatia da receita. Ela calcula-se somando impostos e contribuições efetivas em percentagem do PIB. Em 2020, deverá chegar aos 35,1%, o valor mais alto pelo menos desde 1995. Esquecendo por momentos os problemas conceptuais do indicador – que pode aumentar sem que os impostos tenham sido agravados -, esta evolução sugere que o Governo não está a dar prioridade ao alívio dos impostos sobre as famílias e as empresas.
No entanto, mesmo essa subida para valores recorde é bastante menos relevante do que o que se tem passado na despesa. Entre 2015 e 2020, a carga fiscal deverá ter aumentado de 34,4% para 35,1%. São mais 0,7 pontos, que comparam com os quase 5 pontos de queda da despesa (ou perto de 4 pontos, se olharmos apenas para os gastos correntes).
Então onde é que a despesa emagrecerá mais nestes cinco anos? O principal responsável são os juros. Em 2015, Portugal pagava 4,6% do PIB ao ano aos credores. Em 2020, deverá pagar apenas 2,9%. A oposição dirá que esta foi a maior sorte do Governo, António Costa responderá que isso só foi possível devido à reputação de credibilidade que o Executivo conquistou junto dos investidores. Nos apoios sociais, a rubrica em que o Estado mais gasta, também há diferenças relevantes, caindo de 19,5% para 18,3%. A diminuição do desemprego terá ajudado, bem como o facto de não ter havido, até agora, medidas de grande peso nesta área. Estes dois efeitos somados representam quase 2/3 do ajustamento da despesa.
Mas há mais. Apesar das várias medidas de reposição de rendimentos na Função Pública (incluindo a principal iniciativa do OE 2020 – o descongelamento das carreiras), os salários dos funcionários públicos perderam peso neste período de 5 anos, recuando de 11,3% do PIB para 10,8% (em 2009, chegaram a estar nos 14%). Os consumos intermédios também diminuem ligeiramente de 5,6% para 5,3%, assim como os subsídios, de 0,6% para 0,4%.
A rubrica mais interessante é o investimento público, que tem a curiosidade de reunir consenso na crítica ao Governo: esquerda e direita têm atacado a gestão orçamental de Centeno por não ser capaz de cumprir as sucessivas estimativas que fez nos orçamentos anteriores. No primeiro ano de governação, o investimento afundou de 2,35% do PIB para 1,55%. Embora tenha crescido todos os anos daí para a frente, a recuperação tem sido lenta. Só em 2020 é que o investimento regressará ao nível de 2015. O ministro das Finanças argumenta que, ao contrário de outras medidas, colocar investimento no terreno demora mais e está mais sujeito a imprevistos e atrasos, mas seja propositado ou não, a verdade é que um investimento abaixo da meta tem sido uma almofada orçamental importante.
Por último, é impossível falar de despesa sem falar de cativações. Um instrumento de controlo do crescimento da despesa. Embora elas tenham perdido relevância nos últimos anos – têm estado na média face ao nosso histórico recente -, o primeiro exercício orçamental de Costa e Centeno beneficiou muito delas. Em 2016, ano da maior queda da despesa nesta legislatura, foi atingido o recorde de cativações em, pelo menos, década e meia.
Por tudo isto, é surpreendente que o discurso dos partidos, a cobertura mediática e o debate público dê mais atenção aos impostos do que aos gastos do Estado. Ainda para mais quando toda a informação que temos sugere que os portugueses dão prioridade a melhores serviços públicos do que ao nível de impostos que pagam.
Uma sondagem recente do ICS/ISCTE concluía que a generalidade dos eleitores se inclina mais para ter “melhores serviços públicos, mesmo com impostos mais altos” do que para ter “impostos mais baixos, mesmo com piores serviços públicos”. E não parecem existir diferenças ideológicas significativas entre simpatizantes do PS e do PSD. Em 2015, quando se perguntava se o Estado devia gastar mais em Saúde, mesmo com impostos mais altos, 9 em cada 10 portugueses respondia “sim”. “Colocados perante ‘quer aumentar a despesa’ ou ‘quer reduzir os impostos’, os portugueses acham a primeira opção mais apelativa do que a segunda”, explicava-me Pedro Magalhães há alguns meses. “Antes de começar a cortar impostos, as pessoas querem que os serviços públicos melhorem. Não tenho nenhuma indicação de que os impostos sejam um tema fundamental.”
Portanto, temos uma população que dá mais importância aquilo em que o Governo gasta do que aos impostos que paga; e um Governo que tem mantido a receita e diminuído a despesa. O que é que nos está a falhar?
Nota: o Governo corrigiu a versão original do OE 2020, alterando muitos dos valores de despesa e receita que tinha inicialmente inscrito no documento. Sem questionar a pertinência da correção, a verdade é que os quadros de receita e despesa se tornaram muito mais opacos, com rubricas com informação decimal e outras em que isso não é apresentado. A documentação orçamental deve servir para esclarecer, não confundir os cidadãos.