A origem dos impostos é traumática. De tentativas primitivas de contacto com os mortos e ofertas aos deuses até aos atos de pilhagem e exigência de tributos. Pagar impostos não nasceu como um dever, mas sim como um ato de submissão. Com o tempo, eles tornaram-se fundamentais em qualquer sociedade, mas nunca se livraram da péssima reputação.
Hoje, sabemos que os impostos são decisivos para o desenvolvimento dos países. É através dos impostos que o Estado garante a sua soberania, constrói escolas, hospitais, estradas ou pontes e pode pagar apoios sociais. Vítor Gaspar, já no FMI, olhou para os últimos 200 anos e concluiu que quando é atingido um limiar mínimo de receita fiscal – perto de 13% do PIB – a economia dispara nos anos seguintes e o desenvolvimento é acelerado.
Talvez nada disso seja novo para si. Ainda assim, mesmo sabendo para que serve o dinheiro dos seus impostos e por mais décadas e décadas que passem, as pessoas continuam a não gostar de os pagar. O paradoxo aqui é que o continuam a fazer. Aliás, parecem até mais dispostas a isso. Porquê?
À partida, a pergunta pode parecer de resposta simples. “Pagamos, porque somos obrigados. Não quero ser multado ou ir parar à prisão”, estarão muitos de vocês a pensar. Sem dúvida que, para alguns, é o medo das penalizações que os leva a pagar, mas como veremos mais à frente essa lógica está muito longe de esgotar os motivos para não fugir ao Fisco.
Haverá também quem argumente que tem tudo a ver com o nível dos impostos. Se os aumentar demasiado, as pessoas deixarão de pagar. Segundo esta lógica, a melhor estratégia para garantir o pagamento será baixar a carga fiscal. Um argumento muito utilizado, por exemplo, no combate à evasão fiscal das empresas (embora não seja claro onde deve essa descida parar). Também aqui há um fundo de verdade – a partir de determinado nível, podemos obter menos receita -, mas a relação não é linear. Aliás, nos países com mais impostos é onde as pessoas menos se importam de os pagar.
Um estudo recente da OCDE nota que “países com níveis mais elevados de impostos em percentagem do PIB parecem ter níveis mais elevados de moral tributária” (conceito que ilustra a motivação de cada contribuinte para pagar impostos). Devemos ter cuidado para não saltar para raciocínios de causalidade, mas não podemos ignorar a relação. “Uma possibilidade é que esta correlação aponte para um ciclo virtuoso entre provisão de serviços públicos, cumprimento de obrigações fiscais e problemas de estabilidade fiscal de que muitos países em desenvolvimento têm dificuldades em resolver”, pode ler-se no documento.
Esse mesmo estudo da OCDE tenta apurar que características são mais comuns entre as pessoas que parecem mais motivadas para pagar impostos. Os dados sugerem que o contexto social e institucional é decisivo. Quem acredita que vive numa sociedade onde a meritocracia funciona tende a estar mais disponível para pagar, assim como aqueles que veem na democracia o melhor sistema e que acham que a redistribuição – tributar os mais ricos para apoiar os mais pobres – é fundamental.
Se olharmos para as características individuais, esta moralidade tributária é mais elevada entre pessoas mais velhas, mais qualificadas e com cidadania do país em causa. Ser mulher e assumir uma religião também parece fazer diferença.
Pistas importantes, mas que não deixam de ser uma descrição bastante abrangente. É nestes casos que precisamos da ajuda de um especialista. Poucas pessoas terão dedicado mais tempo a pensar sobre este tema do que James Alm, professor na Universidade de Tulane. Após anos de estudo e milhões de caracteres escritos, Alm continua a não ser capaz de dar uma resposta única sobre o que nos leva a dar dinheiro ao Estado.
“As minhas respostas sublinham que as pessoas pagam impostos por várias razões: têm medo de ser apanhadas e penalizadas, calculam mal as hipóteses de serem apanhadas e penalizadas, querem fazer “a coisa certa”, valorizam os bens e serviços pagos com os seus impostos, são influenciadas pelas pessoas à sua volta, etc…”, explica à VISÃO.
Quando se fala do impacto do nível de impostos, Alm cita o exemplo sueco. “A moral tributária – a vontade intrínseca das pessoas para pagarem impostos – depende de muito mais do que da capacidade de deteção e castigo”, refere. “Coisas como “confiança no Estado” e “confiança nas instituições” importam. Por exemplo, quem vive na Suécia paga impostos muito altos, mas também acredita que o seu governo é honesto e que lhes providencia bens e serviços valiosos.”
Na realidade, os estudos sobre o tema mostram que países com sistemas fiscais semelhantes podem ter níveis de moralidade tributária muito diferentes e vice-versa. “Os bens e serviços públicos importam, especialmente quanto à confiança no governo e instituições”, acrescenta.
A lição a tirar é que existe uma grande heterogeneidade. A mesma pessoa pode hoje pagar porque acha que o sistema faz sentido e, daqui a seis meses, fazê-lo porque tem medo de ser apanhada se tentar fugir. A ideia de um “contribuinte tipo” não existe, defende Alm. Há, isso sim, diferentes segmentos, com motivações diferentes. Onde ficam os governos nessa situação? Como podem estimular a moralidade tributária? “Os governos devem desenhar políticas diferentes para esses diferentes grupos, por vezes frisando a dissuasão e, outras vezes, enfatizando os serviços ou as normais sociais.”
Moral aumenta em Portugal
Uma dissertação de doutoramento, apresentada em 2013 na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra mostrava que, com algumas exceções, a moralidade tributária aumentou por toda a Europa Ocidental entre a década de 90 e 2008. Há 30 anos, Portugal pertencia ao grupo de países com nível mais baixo, juntamente com a Bélgica e a Finlândia. Daí para a frente, foi um dos países onde essa motivação para pagar mais cresceu, estando já em 2008 acima da média europeia (seria interessante ver o que aconteceu durante a crise). A Dinamarca tinha o nível mais alto, a Bélgica continuava no fundo da tabela.
A investigação, da autoria de Cristina Sá, Carlos Gomes e António Martins, procura identificar o que mais empurra os portugueses para pagar impostos. Também aqui, o medo de serem apanhados não explica tudo. “Do conjunto dos seis fatores estudados, os que mais influenciam o nível de moral tributária dos contribuintes portugueses são o sistema político democrático, a satisfação individual e a religiosidade”, escrevem os autores. A felicidade individual é muito importante. Quando mais satisfeitos estiverem menos problemas têm em entregar dinheiro ao Estado.
Além disso, os dados sugerem conclusões semelhantes aquelas que encontrámos antes para casos internacionais. Os portugueses mais velhos (mais de 50 anos) parecem mais disponíveis para pagar do que os mais novos (menos de 30). Mais qualificações também tendem a ser sinónimo de moral tributária mais elevada. Reformados aceitam melhor os impostos do que trabalhadores por conta de outrem e estes acima de desempregados. Num sistema fiscal progressivo, os impostos sobre o rendimento aumentam com os salários, mas aparentemente isso não provoca mais repulsa pelos impostos. Pelo contrário, quanto mais as pessoas ganham, mais disponíveis estão para pagar.
Não é uma prioridade?
Os dados de que dispomos levam-nos a suspeitar que a descida de impostos não é uma prioridade para os portugueses, apesar de a carga fiscal do País estar em máximos históricos. Uma sondagem feita há poucos meses pelo ICS e ISCTE para o Expresso concluía que a generalidade dos eleitores se inclina mais para ter “melhores serviços públicos, mesmo com impostos mais altos” do que para ter “impostos mais baixos, mesmo com piores serviços públicos”. E não era uma questão de esquerda vs. direita. Os simpatizantes de PS e PSD não apresentavam diferenças significativas e preferiam mais despesa com serviços públicos do que menos impostos.
Em 2015 tinha sido feito outro inquérito, em que era perguntado aos portugueses se gostariam que o Estado gastasse mais (ou menos) dinheiro em várias áreas, avisando explicitamente que isso poderia implicar impostos mais altos. Em todas as áreas – saúde, educação, apoios sociais, pensões e apoio aos desempregados – a maioria das pessoas pedia mais despesa. No caso da saúde, 9 em cada 10 queriam que o Estado gastasse mais. Um outro estudo da OCDE mostrava que Portugal estava entre os países onde mais gente aceitaria pagar mais impostos para ter melhor acesso à saúde.
“Antes de começar a cortar impostos, as pessoas querem que os serviços públicos melhorem. Não tenho nenhuma indicação de que os impostos sejam um tema fundamental”, dizia Pedro Magalhães há alguns meses à VISÃO.
Dificilmente pagar impostos alguma vez será algo que faremos com um sorriso na cara, mas talvez exageremos no desagrado dos contribuintes. Para muitos, será mais importante saber que esse dinheiro está a ser bem aplicado, com mais competência e transparência.