Quando entrei na sala de cinema das Amoreiras para ver o novo Rei Leão, contavam-se pelos dedos das mãos o número de crianças entre o público. Como a maioria daquelas pessoas, fui com um grupo de adultos. Um deles estava a ver o filme pela segunda vez (chorou das duas vezes). Talvez não seja de estranhar. Afinal, o objetivo deste tipo de remakes é expandir o alvo demográfico dos filmes de animação. Os milhões de crianças e adolescentes que viram o original em 1994 são hoje adultos com dinheiro para gastar e um desejo de regressar às emoções da infância.
Esta tentativa de monetizar a nostalgia está a provar ser um sucesso com o Rei Leão que, em duas semanas, já se tornou o segundo maior êxito de bilheteira desta fornada de remakes “live-action” da Disney.
Um “live-action” envolve a utilização de atores e/ou animais reais em vez de animações. Embora a definição pareça simples, por estes dias não é fácil concordar naquilo que constitui um “live-action” (por exemplo, a Internet indignou-se com o facto de o Rei Leão se assumir como tal). Para efeitos deste texto decidimos considerar 15 remakes da Disney. Nessa lista há algumas desilusões de bilheteira – A Lenda do Dragão, Os 102 Dálmatas, Christopher Robin e o recente Dumbo -, mas quando um filme raramente faz menos de 300 milhões de dólares é porque alguma coisa estão a fazer bem.
Esta tem sido a receita de bilheteira mundial de cada um desses filmes (os títulos estão em inglês e os números do Rei Leão não incorporam os últimos dias, que o fez furar a barreira dos mil milhões de dólares):
Muito deste sucesso chega do mercado internacional. Quando correu MESMO bem foi porque o público fora dos EUA encheu as salas de cinema. Veja-se o caso de Aladdin ou do Livro da Selva.
A apreciação dos críticos tem sido muito menos bondosa. Os dados compilados pelo site Rotten Tomatoes mostram que a avaliação média destes filmes é de apenas 60%. Esse é precisamente o limiar abaixo do qual um filme é considerado “rotten” ou podre. 9 destes 15 filmes mereceram essa avaliação. O mais bem classificado é o último O Livro da Selva (94%), o pior é Alice do Outro Lado do Espelho (29%).
Embora não falte público para estes filmes, os espectadores não são muito mais simpáticos do que os críticos. A avaliação média está em 66 por cento. As maiores divergências ocorreram este ano. As pessoas adoraram as novas versões do Aladdin e do Rei Leão, a que quase metade dos críticos deu nota negativa.
Estará o público preso num ciclo de nostalgia e desilusão? Sentem que têm de ir ver um filme que nunca conseguirá satisfazer expetativas tão elevadas.
Em Portugal, o apetite por estes filmes é gigante. Segundo os dados do ICA, dos 5 filmes mais vistos de 2019, três deles são remakes: Dumbo, Aladdin e Rei Leão. Este último, caso mantenha algum ímpeto nas próximas semanas, entrará no top10 nacional dos últimos 15 anos, com algumas possibilidade de chegar ao pódio. Veja em baixo quais foram os filmes preferidos dos portugueses desde 2004.
O leva a Disney a apostar em “live-action”?
Além dos 15 que já estão cá fora, a Disney já tem mais 12 filmes no forno. Quatro deles – Cruella, Mulan, A Dama e o Vagabundo e a sequela de Maléfica – com estreias marcadas até dezembro de 2020. Há vários motivos para a insistência da Disney neste tipo de filmes. As suas tentativas para criar novas histórias e personagens não têm sido particularmente bem-sucedidas. Nas listas dos filmes que mais dinheiro perderam no ano passado estão Uma Viagem no Tempo, O Quebra Nozes e os Quatro Reinos. Outro, Tomorrowland, está entre aqueles que tiveram mais prejuízos desde que existem dados (todos estes valores são estimativas, porque os estúdios não são obrigados a divulgar os orçamentos de produção e, mesmo esses, não incluem custos de marketing, que podem ser muito elevados).
Além disso, a Disney tem tido a oportunidade de assistir na primeira fila ao sucesso da Marvel. E acha que é capaz de o replicar. Se eles conseguem fazer rios de dinheiro com três filmes do Homem de Ferro, porque não se pode fazer algo semelhante com a Pocahontas? “Pensámos: se o Homem de Ferro, o Thor e o Capitão América são os super-heróis da Marvel, então talvez a Cinderella, o Mogli e a Bela possam ser os nossos super-heróis, e a Cruella e a Maléfica os nossos supervilões”, explicava em 2017 à Vulture Sean Bailey, presidente da divisão de produção cinematográfica da Disney.
Estes remakes têm a vantagem de já nos serem familiares. E isso significa que, na corrida das bilheteiras, eles partem com uns quilómetros de avanço face aos concorrentes. Espreitem a lista dos filmes mais vistos de sempre. O que têm a comum? Quase nenhum é uma ideia original. 17 dos 20 filmes que mais dinheiro arrecadaram fazem parte de mega-franchises ou usam histórias e personagens que já conhecemos (por falar nisso, o Rei Leão já está em 39º). Sobram Avatar, Titanic e Frozen.
Essa propriedade intelectual é o maior ativo que os estúdios têm em mãos. E eles estão a usá-la até à exaustão. É como se os Radiohead dissessem que, a partir de agora, iam passar os concertos inteiros a tocar a Creep. “Talvez haja uma forma de nos reconectarmos com essa afinidade sobre aquilo que essas personagens significam para as pessoas, de uma forma que nos traga o melhor talento e utilize a melhor tecnologia. É muito Disney jogar com as vantagens competitivas desta marca”, acrescenta o mesmo Bailey.
No caso dos remakes da Disney, mais do que familiaridade, há uma exploração da nostalgia. Daniel Garris, do BoxOfficeReport explica à Fortune que “a nostalgia entra definitivamente em jogo”. Esta onda mais recente em especial bebe de um período muito fértil, em que a Disney produzia êxito atrás de êxito. O Rei Leão é o maior exemplo, mas também tivemos A Bela e o Monstro, Aladdin, O Corcunda de Notre Dame e Mulan. Vistos inicialmente no cinema, eles eram colocados em loop via cassetes. “Estamos notálgicos por estes filmes, em parte, porque eles eram muito mais acessíveis.” O resultado é um exército de adultos que sabe de cor diálogos inteiros do Rei Leão.
A opção por “live-action”, muitas vezes com atores que conhecemos bem, tem uma vantagem adicional: permite alargar o leque demográfico do público. Este texto começa por referir que não havia muitas crianças a ver o novo Rei Leão. Ter na ficha técnica Will Smith, Emma Watson, Colin Farrell e a voz da Beyoncé garante mais gente e um público mais velho.
O que acontecerá quando essa propriedade intelectual se esgotar? Será que a a Disney acha que já tem uma biblioteca tão recheada que quase não precisa de criar mais nada novo? Basta ir reciclando ideias antigas a cada 10 ou 20 anos.
Eventualmente, é provável que as pessoas se cansem. Aliás, a reação negativa de algum público pode sugerir que, embora tenham pago para ir ver a Alice, talvez não o voltem a fazer.
Mas não tenha pena da Disney. Talvez ainda associe a empresa ao Rato Mickey e a estas animações da sua infância, mas a Disney tornou-se num gigante de media com tentáculos que se estendem a várias áreas. Se fizer uma lista dos filmes de que mais ouviu falar nos últimos anos, muito provavelmente ela será dominada pela Disney. Marvel? É deles. Star Wars? Está comprado. Pixar? Mesma coisa. Fox? Idem. ABC, ESPN, Hulu e National Geographic também fazer parte do portefólio… Junte-lhe filmes como os Piratas das Caraíbas, os parques de diversões e o merchandising e consegue perceber a dimensão do império.
E ainda há mais caminho para desbravar. Uma parte importante das novas produções serão dirigidas ao canal de streaming Disney+, que começa a transmitir no dia 12 de novembro e que promete desafiar o domínio da Netflix nesse terreno.
É uma espécie de Ciclo da Vida, mas em que paga à Disney em cada passagem.