É verdade que estamos todos um bocadinho cansados dos restaurantes requintadas a aparecer que nem cogumelos por Portugal. Parece que nos começam a fartar os espaços tradicionais onde podemos pedir umas boas iscas à portuguesa ou um bacalhau à brás sem que nos tentem vender esses pratos como “expriências sensoriais” e nos cobrem um absurdo por comida que em nossa casa era a ementa quotidiana, geralmente aproveitando tudo o que estava nos armários e no frigorífico.
E por isso é que se torna importante diferenciar os restaurantes ‘wanna be’ daqueles que são, efetivamente, uma experiência. Por norma, um espaço que recebe uma estrela Michelin já tem uma garantia de qualidade. Mas não raras vezes, até esses nos deixam com uma espécie de amargo de boca porque afinal são menos especiais do que aquilo que esperávamos. O guia Michelin e os seus críticos é tão permeável ao ‘gosto do mercado’ e demais pressões quanto outra publicação qualquer, e além do mais, a gastronomia tem sempre um forte pendor subjetivo. Normal e desejável, aliás.
Foi, por isso, com uma expectativa relativamente baixa que entrámos no CURA, o restaurante liderado por Pedro Pena Bastos e que ocupa parte do piso térreo do hotel Ritz, em Lisboa, para experimentar o novo menu apresentado pela equipa que conta ainda com Rodolfo Lavrador como sous chef e com David Lopes como escanção.
Primeira impressão, sem a mínima novidade: o número de clientes portugueses era, talvez 10% do total de pessoas presentes na sala maravilhosamente iluminada e que nos faz sempre viajar no tempo (não é por acaso que o Ritz é o Ritz) com os apontamentos de passado muito bem integrados com as decorações contemporâneas.
Para começar a refeição, um espumante nacional de Luiz Costa – os champanhes pensados para esse momento não nos impressionaram e somos sempre a favor de experimentar um vinho português, sobretudo um espumante que – acredito – continua a ser subvalorizado. E pelos vistos este é também o entendimento do escanção responsável pela sala. David Lopes fez-nos uma belíssima viagem pelo território nacional, sugerindo, trocando e servindo algumas opções muito curiosas, com extrema atenção ao detalhe e apostas quase sempre certeiras.
O CURA continua a ter disponíveis três menus de degustação: o Origens, com 13 momentos e especial destaque para os sabores tradicionais portugueses; o Raízes, também com 13 momentos, mas que particular dá ênfase às leguminosas e vegetais (e é totalmente vegetariano) e o Meia Cura, com 8 momentos.
Apostámos no Origens, que nos pareceu o mais completo, e fizemos uma maridagem de vinhos mais liberal, aproveitando muitas das escolhas para mais do que um prato. Começámos por cogumelos shiitake, fígado de pato e alho negro num prato cujo nome não deixa margem para erro: Minhota. Perfeitamente cozinhado e equilibrado, fez-nos imediatamente perceber que talvez a nossa expectativa fosse, final, superada.
A Sarda e o Atum Rabilho conquistaram absolutamente o nosso coração – este último, com rábado, feijão verde e caldo fumado ainda hoje nos passeia na memória – e a coalhada de marisco, a lula (com avelã, manteira torrada de algas, bergamota e caviar Ossietra) e o imperador com navalhas e manjericão foram um bom passeio pelo litoral português. Felizmente, os responsáveis pela cozinha não caíram na tentação de fazer desaparecer os sabores das matérias-primas entre requintadas e complexas técnicas de cozinha. Todos os pratos – talvez a lula tenha sido o menos surpreendente – souberam a mar, aos longos dias estivais, à frescura do pescado nacional, às memórias da calmaria que só o litoral nos dá. O pão de trigos ancestrais, que chegou a meio da refeição, acompanhado por manteiga das Flores (devia ser património nacional e ainda bem que ainda não deixou de existir) e azeite verde foi, na sua simplicidade, o nosso maior problema. De cada vez que no-lo queriam retirar, pedíamos que ficasse só por mais um bocadinho – no final, sobraram as migalhas, prontamente retiradas por uma equipa jovem, mas perfeitamente oleada, que durante todo o tempo esteve atenta, foi rápida a agir e a reagir e não falhou nenhum dos tempos devidos.
Na sala liderada por Diogo Martinho e Miguel Gonçalves, o serviço foi irrepreensível. E entre duas dentadas gulosas de pão, eis que Rodolfo Lavrador nos chega à mesa para apresentar o pombo que iria ser servido dali a momentos. Um momento didático que pretendia também mostrar a qualidade da carne ainda antes de ser cortada e empratada. Acompanhado de brócolos, pêssego e quinoa, foi uma boa surpresa depois da carne de porco à alentejana – ambas acompanhadas com o sempre certeiro Dona Louise 2006, da Quinta de Lemos.
A sobremesa, que poderia não ser um problema porque é um momento que geralmente saltamos, foi, no entanto, impossível de ignorar, entre o melaço de pão, o ananás e o malte.
Acompanhado de um Carcavelos Villa Oeiras de António Figueiredo, ou de um Moscatel do Douro de Gonçalo Sousa Lopes e Rui Walter Cunha, foi um momento que se estendeu ao longo de mais tempo do que o necessário…mas bons vinhos e boa comida conduzem sempre boa conversa.
E, quando não arranjámos – mesmo – mais espaço para os petit-four de torta de laranja, arroz-doce e cogumelos e trufa, o nosso semblante deve ter-se escurecido profundamente. A viagem por Portugal em sabores e memórias foi um sucesso, mesmo sem eles, mas para amantes de torta de laranja, deixar uma abandonada é sempre uma tristeza profunda. Além de que não se deve desperdiçar também as trufas confecionadas no Ritz, de reconhecida qualidade.
E foi então que, quando acreditávamos não poder ser mais surpreendidos, demos com uma…laranja no topo do bolo. Todos os petit four foram acondicionados nas tradicionais caixas de cartão castanhas e magenta com o logotipo do Four Seasons para que as pudéssemos levar para casa “e continuar a experiência amanhã, ao despertar”.
São já poucos os restaurantes que me têm conseguido surpreender – não quer dizer que não sejam bons, que a comida não seja de qualidade ou que o serviço não seja o que se espera. Mas há uma diferença entre ser bom e ser surpreendente. E quando há boas surpresas, achamos mesmo que elas devem ser partilhadas.