Foi o primeiro dia em que o peso das sanções económicas se fez sentir sobre Moscovo. Depois de uma resposta inicial que muitos consideram hesitante, a União Europeia, os Estados Unidos e os seus aliados avançaram com uma série de medidas agressivas que, na prática, contribuem para alienar a Rússia do sistema financeiro internacional e transformá-la num Estado pária.
O mundo mudou em 48 horas. Perante a visão maximalista de Vladimir Putin para a invasão da Ucrânia, iniciativas que se julgavam impossíveis tornaram-se realidade. A Alemanha parece ter revolucionado a sua política de defesa, a Europa vai enviar armas para as forças ucranianas, a adesão de Kiev à União Europeia é uma possibilidade mais forte, a Suíça abandonou a sua posição de neutralidade para sancionar Moscovo e gigantes europeus abandonaram as suas posições em grupos russos. Transformações acompanhadas de medidas simbólicas no desporto (suspensão de equipas russas pela UEFA e FIFA) e na cultura (exclusão da Rússia da Eurovisão).
Talvez em nenhum campo se tenha desbravado tanto terreno como na economia. A clareza com que Putin assumiu não respeitar a soberania ucraniana, dizendo que pretende “desmilitarizar” e “desnazificar” o país, abriu espaço a medidas inéditas, que procuram enfraquecer a posição negocial de Moscovo, dificultar o financiamento da guerra e penalizar oligarcas e aliados do presidente russo.
Nos últimos dias, a atenção recaiu essencialmente sobre a exclusão de bancos russos do sistema de comunicação SWIFT, que chegou a ser apelidada como “opção nuclear”. Ela acabaria por avançar (ainda que com exceções para certos movimentos) e deverá dificultar as operações bancárias.
Mas rapidamente ficou claro que a mãe de todas as sanções estava no congelamento das reservas internacionais de Moscovo. Os últimos dados disponíveis sugerem que o banco central russo acumulou 630 mil milhões de dólares em reservas, cerca de 40% da economia russa, e as quartas maiores do mundo. Isto dava algum conforto ao Kremlin para aguentar meses de sanções, usando esta almofada para estabilizar o rublo (só a sua existência já dissuade os investidores de testarem o país).
“O que mudou foi o passo inédito de lançar sanções sobre o banco central russo, que tornarão provavelmente grande parte das reservas indisponíveis para os responsáveis políticos russos”, escreveu Adam Tooze no seu blogue, adiantando que essa era a “notícia mais devastadora” para Moscovo.
A Rússia vende essencialmente energia e depende do resto do mundo para obter bens de consumo, de automóveis a microprocessadores. “Quando uma empresa russa importa da Alemanha tem de pagar em euros. Essas empresas têm contas bancárias em moeda estrangeira – euros ou dólares – para fazer esses pagamentos. O sistema funciona porque sabem que, se houver problemas de acesso a moeda estrangeira, o banco central tem grandes reservas”, explica Miguel Faria e Castro, economista da Reserva Federal da St. Louis. “Quando o banco central perde acesso a estas reservas, deixa de poder fazer essas operações.”
É um processo complicado de explicar porque ocorre, todo ele, nas canalizações dos bancos centrais, normalmente invisíveis e quase nunca discutidas. A Rússia continua dona dessas reservas, mas como elas estão junto de outros bancos centrais ou nas suas jurisdições não é capaz de as utilizar.
Nos últimos oito anos, Putin construiu uma fortaleza financeira que se pode revelar inútil. Como comprar sacos de areia contra uma inundação, mas não os conseguir trazer para casa.
“Esta talvez seja a iniciativa mais significativa, uma vez que reduz substancialmente a capacidade do Banco Central da Rússia para liquidar ativos estrangeiros, apoiar o rublo e ajudar as empresas russas a pagar dívidas em moeda estrangeira”, escreve o Capital Economics numa nota. Cerca de 40% das reservas internacionais russas são detidas em sistemas financeiros de países que acordaram inicialmente estas sanções. Entretanto, já se juntaram mais Estados, pelo que a percentagem será maior.
A Rússia poderá sempre vender algum do ouro que tem, mas essa opção traz outras dificuldades logísticas. Qualquer solução deve passar por um aprofundar da dependência face a Pequim.
Um antigo responsável do Tesouro dos EUA dizia ao Financial Times ainda durante o fim-de-semana que “a Rússia estava a seguir o caminho de Cuba e do Irão na importância das sanções impostas”. Um responsável atual da Administração americana antecipava que esta ronda de medidas iria tornar a Rússia “economicamente e financeiramente num Estado pária”.
Dia negro
Há dois riscos fundamentais para Moscovo: uma corrida aos bancos e a incapacidade para defender a sua moeda da desvalorização. Nas últimas horas, observaram-se grandes filas em multibancos e houve relatos de corridas para comprar bens de luxo que permitam cristalizar valor, caso o rublo colapse e a inflação dispare. “Estamos a desarmar a fortaleza russa”, disse outro responsável da Administração dos EUA, citado pelo Axios.
Ao longo do dia, o rublo deslizou para mínimos face ao dólar. A bolsa de Moscovo nem arriscou abrir, antecipando-se uma hemorragia histórica, mas empresas cotadas em Londres afundaram: o Sberbank caiu 74%, o retalhista Magnit 80% e a Gazprom 53%.
Ao mesmo tempo, a BP anunciou que irá vender os 20% que tem na petrolífera Rosneft. A Shell vai romper todas as operações russas e a Equinor também vai abandonar projetos russos, após 30 anos no país. No domingo, o fundo soberano norueguês, o maior do mundo, já tinha anunciado que iria desinvestir totalmente na Rússia.
O Kremlin reconheceu dificuldades, ao assumir que as sanções “mudaram significativamente a realidade económica da Rússia”. “Estas sanções pesadas são problemáticas, mas a Rússia tem capacidade para compensar os danos.”
Nesse sentido, avançaram com medidas de emergência, aumentando as taxas de juro de 9,5% para 20% e obrigando as empresas que vendam ao estrangeiro que comprem rublos e vendam moeda estrangeira. Impôs ainda controlos de capital, impedindo vendas de ativos por não residentes.
Mais do que os fundamentais, o risco para Moscovo é que se esteja a formar uma onda de desconfiança difícil de travar. Empresas e investidores podem sentir que, se não saírem agora, podem ser ainda mais penalizados dentro de alguns dias. Outros vão simplesmente querer surfar a onda. Estes movimentos de mercado podem ser avassaladores. “Quando o banco central deixa de conseguir defender a sua moeda, isso vai ser aproveitado por investidores que sabem que o rublo vai desvalorizar. Há ataques especulativos”, antecipa Miguel Faria e Castro.
Em paralelo, as obrigações russas também viram o seu valor colapsar, fazendo aumentar a probabilidade de default do Estado. O primeiro desde 1998. Uma possibilidade ainda há poucos dias considerada pouco provável tendo em conta a sua dívida pública baixa e reservas elevadas. A S&P já classifica a dívida russa como “lixo”.
Não é a primeira vez que penalizações deste género são aplicadas a um banco central. A diferença é que normalmente tem como alvo economias de menor dimensão. Aconteceu no Irão, na Venezuela e, mais recentemente, no Afeganistão. Porém, a pegada russa nos mercados financeiros é muito maior do que a desses países. “A Rússia arrisca-se a ser uma Venezuela grande. A Venezuela está tão restringida nas suas relações comerciais que quase só consegue fazer trocas diretas”, refere Faria e Castro.
Alguns acham até que as medidas até podem ser demasiado eficazes. “Uma arma que esmaga o setor bancário do adversário pode ser ligeiramente demasiado poderosa. O Ocidente quer penalizações que levem a Rússia a alterar a sua postura agressiva. A arma do banco central é tão forte que pode provocar Putin em maior agressividade como uma última aposta desesperada”, aponta David Frum, ex-conselheiro de George W. Bush. Ele sugere que o congelamento de reservas seja usado de forma incremental, como uma asfixia lenta em vez de um estrangulamento repentino.
As condições poderão ser arrasadoras para a Rússia, mas acabarão por chegar ao Ocidente, principalmente à Europa. “Torna-se muito provável que um devedor russo não consiga pagar as suas obrigações. Não tem acesso a moeda estrangeira e o rublo está a desvalorizar muito. Todos os bancos que tinham feito empréstimos estão neste momento a olhar para os seus balanços e descontá-los. Mesmo investidores que tenham ativos que não sejam dívida têm esse dinheiro parado”, acrescenta o economista.
Este foi o primeiro dia de uma guerra financeira. O paradigma de privilegiar a integração russa nos mercados e economia internacional como forma de controlar Moscovo parece ter sido abandonado. A estratégia agora é o isolamento. Veremos como responde Putin.