Anotícia caiu como uma bomba. Sem qualquer aviso, Tom Nook enviou uma carta aos seus clientes que deixou muitos deles furiosos e a fazerem contas à vida: um corte radical dos juros oferecidos pelo seu banco. “Nunca serei capaz de recuperar financeiramente disto”, queixou-se um utilizador do Reddit. “Agora, não o hei de resgatar com os meus impostos”, prometia outro. Talvez seja importante dizer que as pessoas são avatares numa ilha deserta fictícia e que Tom Nook é um guaxinim animado. Estamos a falar de Animal Crossing: New Horizons, o jogo da Nintendo que se tornou uma das peças de entretenimento mais populares da quarentena. Aquele corte de juros foi debatido em alguns fóruns da internet com a paixão com que a Bloomberg discute uma decisão do Banco Central Europeu (BCE). De certa forma, segue uma lógica semelhante e talvez tenha feito mais para ajudar muitos a perceberem como funciona um banco central do que vários discursos do anterior presidente, Mario Draghi. Os videojogos têm esse poder de nos ajudarem a perceber melhor ideias económicas complexas ou as consequências de como gerimos o nosso dinheiro. Mas nem sempre esse poder é bem aproveitado.
Tal como na nossa vida de carne e osso, na qual os bancos centrais têm colocado as taxas de juro em mínimos históricos, em Animal Crossing eles foram cortados de uns já baixos 0,5% para 0,05 por cento. O objetivo foi desincentivar uma batota usada por alguns jogadores (colocavam dinheiro – virtual – no banco, e adiantavam o relógio da consola para receber logo os juros), mas também acaba por servir como um incentivo para todos gastarem mais e mais rápido. “O próximo passo lógico é o quantitative easing. É essencial que os jogadores tentem ligar o jogo à sua impressora para começarem a imprimir dinheiro”, brincou um analista no Financial Times.
Essa não é a única investida no jogo na área económica. Embora seja apresentado como uma utopia pastoral, de proximidade à Natureza e longe das responsabilidades e pressões do nosso dia a dia, é complicado encontrar uma premissa económica mais constrangedora do que aquela com que somos confrontados no início de Animal Crossing. Depois de terem sido convencidos a viajar para uma ilha deserta, os jogadores começam imediatamente com uma dívida a Tom Nook. Ela pode ser paga relativamente rápido, começando a vender o que a Natureza nos dá, mas isso é apenas o início do calvário do endividamento. Uma das traves mestras do jogo é a ampliação e decoração da nossa casa. E cada operação dessas deixa os jogadores com dívidas gigantes ao nosso amigo Tom Nook. A mecânica do jogo incentiva a que se trabalhe cada vez mais e se explore a fundo os recursos da ilha para poder amortizar o empréstimo e, assim, pedir um novo crédito para aumentar novamente o tamanho da casa e enchê-la com mais mobília inútil.
Embora não falte discussão acerca das lições que os jogos nos ensinam sobre a vida em sociedade, a História ou a Ciência, é mais raro encontrar uma reflexão sobre o que eles nos dizem da gestão das nossas finanças. O que é ainda mais estranho, tendo em conta que grande parte dos jogos envolvem algum tipo de gestão de recursos ou dinheiro (virtual e real).
Ian Bogost, académico, autor e criador de videojogos, notou a relevância da dimensão financeira no comportamento dos seus filhos. Um dia, o mais velho foi ter com ele preocupado porque, após algum tempo a jogar Animal Crossing, precisava de uma casa maior para colocar tudo aquilo que comprou, mas já não tinha dinheiro para pagar ao Tom Nook. Num artigo publicado na revista Hacking Finance, Bogost lembra ter sido “um momento muito dramático”. “Ali estava o meu filho, com 5 anos, a perceber a armadilha do endividamento.” É o exemplo que dá sempre que quer demonstrar o poder de persuasão dos jogos.
E é também por isso que acha que estes jogos são, muitas vezes, uma oportunidade perdida. “É impressionante que a educação infantil tenha encontrado métodos tão sofisticados, bem investigados e que já deram provas ao longo do tempo para ensinar a ler e escrever, mas fez tão poucas tentativas para fazer o mesmo com a literacia financeira.”
Na maioria destes videojogos com dinheiro, não existem incentivos para o jogador poupar e não existem custos associados com uma compra. O carro nunca tem seguro para pagar anualmente, nem é preciso mudar a água ao aquário onde estão os peixes. Que cidadãos estamos a formar? Foi isso que a EXAME perguntou a Bogost. O académico resumiu a resposta numa palavra: consumidores. “A grande maioria dos jogos que incluem algum tipo de modelo económico ou financeiro – seja dinheiro real ou fictício – é feita de convites para acumular e gastar fundos, maioritariamente em bens e serviços. A coleção está normalmente ligada ao trabalho de jogar o jogo, embora também possa ser uma recompensa pelo risco. Os benefícios de poupar são praticamente nulos”, explica por email. “Investir ou seguir planos financeiros de longo prazo é normalmente impossível e raramente estão modelados sequer no jogo. Portanto, sem mais nada que fazer além de ‘ganhar’ e gastar, essa é a lição que esses jogos ensinam, seja esse o seu objetivo ou não.”
O poder dos jogos
Salomé Nobre tem 9 anos e diz que os jogos do tablet servem para se distrair. “Quando estou muito nervosa com um teste, ajudam-me. Entro no jogo e esqueço tudo”, conta por videochamada, entusiasmada por estar a falar dos seus jogos preferidos, quase todos relacionados com cavalos.
O que não significa que seja imune às mensagens financeiras do jogo. Uma das suas birras mais complicadas – descrita pelos pais e que ela confirma – teve origem no jogo Pony Trails, quando a irmã, de 4 anos, lhe vendeu o cavalo que tinha e lhe gastou quase todo o dinheiro. Porque ficou tão zangada? “Acho que foi por me lembrar do tempo todo em que estive a jogar aquele jogo [até atingir aquele valor]. É difícil ter uma foto profissional [do cavalo], ganhar um presente e dinheiro.” Hoje, embora já conte o episódio a rir-se, ainda não recuperou totalmente a quantia perdida devido à irresponsabilidade financeira da irmã.
Foi um pouco a mesma desilusão que sentiram os jogadores de Animal Crossing quando perceberam que as suas poupanças não iam render o mesmo no banco. A economia está sempre presente. Seth Giddings, professor de Cultura Digital e Design na Universidade de Southampton, nota que “alguns jogos apresentam sistemas financeiros e económicos como centrais para a sua jogabilidade e tema”. “São normalmente simulações em jogos como SimCity. Muitos outros têm o dinheiro como um aspeto saliente do jogo – quase todos os de aventura, jogos multiplayer online, muitos jogos para crianças, envolvem acumulação de dinheiro ou um recurso semelhante ao dinheiro, como ‘gemas’”, diz à EXAME.
Os jogos podem ser mecanismos poderosos de compreensão de ideias complexas. Ian Bogost assinala que eles “estetizam as ligações entre várias partes móveis de um sistema”. “Dado que muitos dos problemas mais difíceis são também sistemas complexos – clima, saúde, economia, política, etc. –, os jogos oferecem o potencial para, pelo menos, descrever esses problemas de forma nativa: ao caracterizá-los como sistemas complexos, com muitas variáveis, em vez de estáticos, e capazes de serem descritos e percebidos como inteiros.”
O ambiente de maior informalidade dos videojogos permite maior exploração e liberdade para errar, aponta Tiago Sousa, diretor operacional da Associação de Empresas Produtoras e Distribuidoras de Videojogos. “O elemento de tentativa e erro pode ser explorado livremente, permitindo que cada um possa testar diversas possibilidades e abordagens, sem com isso incorrer em consequências reais”, diz à EXAME, dando como exemplos o já referido SimCity, as diferentes iterações de Tycoon (de construir parques de diversões a jardins zoológicos) e o Football Manager.
Tiago Sousa nota que essa capacidade já é aproveitada por outras empresas que não têm nada que ver com comandos e consolas. “É comum muitas empresas que não estão ligadas ao setor dos videojogos optarem por soluções de gamificação nos seus processos”, assinala. Ou seja, usam “elementos que são nativos nos videojogos para veicularem ações de formação, quer através de simulações (aviação, desporto automóvel, cirurgia, etc.), passando por ferramentas de estratégia, gestão, resolução de problemas, entre muitas outras”.
Lições limitadas
É fácil deixarmo-nos entusiasmar pelas possibilidades, mas não é certo que os videojogos estejam a moldar comportamentos de forma alargada. “Eu falo em ‘potencial’ [de influência], porque a verdade é que os jogos nunca fizeram isso, não em grande escala, e não de uma forma que tenha tido um impacto demonstrativo na sociedade global”, alerta Bogost.
A transferência de comportamentos do mundo virtual para o “real” tem gerado discussões apaixonadas e criado algumas ideias simplistas. Veja-se o debate antigo que existe acerca da relação entre os jogos e a violência, principalmente desde o massacre de Columbine, nos Estados Unidos da América. Giddings acha que devemos ser especialmente cautelosos. “Os jogos são máquinas muito sofisticadas para ensinar os jogadores sobre dinâmicas de sistemas económicos, relações de valor e troca, de investimento e retorno. Contudo, é sempre importante lembrar que os jogos digitais são desenhados para serem jogados. Não são meras versões simplificadas do mundo verdadeiro, mas metamorfoses, versões invertidas do género ‘mundo virado de cabeça para baixo’.”
Essa cautela sobre as lições dos jogos também se aplica às crianças. A forma como a Salomé joga é um bom exemplo. Em primeiro lugar, porque gere o dinheiro virtual de forma cautelosa. “Sou como o Tio Patinhas. Se quiser comprar um cavalo [o jogo preferido envolve a compra de cavalos] que custa 15 mil, prefiro esperar até juntar 35 mil para não ficar a zeros.” Em segundo, porque diz perceber as diferenças para a vida real. “Se todos os dias tirares um bocado do teu tempo para jogar, consegues chegar a um milhão [no jogo]. Na vida real, ganhas um salário uma vez por mês.” E é difícil ter um milhão na conta. “Pois.”
Giddings sublinha que “é difícil, talvez mesmo impossível, aferir como as crianças retiram lições de um jogo de vídeo”. “Elas certamente aprendem como trabalhar com dinheiro virtual de formas complicadas e criativas. E podem desenvolver ou expressar o seu próprio sentido moral através de acumulação e gastos.”
O académico cita um estudo feito em 2008 sobre duas crianças que jogavam Zoo Tycoon, em que se constrói e cuida de jardins zoológicos. Uma delas jogava pelas regras e construía lentamente o seu parque, enquanto a outra fazia batota e tentava acelerar o jogo. Os autores argumentavam que o jogo estava mais a expor os valores e interesses de ambas do que a condicioná-las. “Suspeito que as crianças aprendem muito sobre sistemas económicos e dinamismo no abstrato ao jogar, mas tenho menos confiança de que esse conhecimento seja aplicado diretamente e de forma evidente.”
Capitalismo de consola
Os videojogos relacionam-se também com os sistemas económicos. Mesmo que essa possa não ser a intenção dos seus criadores, eles funcionam frequentemente como um espelho da sociedade que os criou ou uma expressão daquilo a que aspiramos ser. O caso de Animal Crossing é curioso porque mistura esses dois elementos e o seu sucesso coincide com um momento de profunda crise económica e enorme incerteza em relação ao futuro.
É difícil não constatar que o jogo reflete a arquitetura financeira atual quando exige, se quiser trocar uma tenda por uma casa, pedir um empréstimo ao banco. A diferença é que, em vez de um bancário engravatado de meia-idade, quem nos atende é um guaxinim com uma camisa havaiana, Tom Nook, que a New Statesman caracteriza como “um cruzamento entre governador do Banco de Inglaterra e Kim Jong-un”.
Contudo, o jogo também nos mostra um mundo mais simples, onde as nossas ações têm consequências menos dramáticas. Para sobreviver, basta apanhar fruta ou insetos e depois vendê-los. É um capitalismo-pastoral. É impossível um jogador ficar sem acesso a algum tipo de rendimento ou deixar de ter onde dormir. Não se é despedido, nem se passa fome. Giddings vê nessa arquitetura a quebra do “mito da escassez”.
Videojogos como este podem inspirar-nos a fazer perguntas complexas: será que esta pandemia – onde o Estado, direta e indiretamente, está a pagar o salário a milhões de pessoas e a apoiar outras tantas com prestações sociais – irá contribuir para alargar a dimensão do “possível” nas políticas públicas? “Se o dinheiro pode ser encontrado ou produzido em abundância e os recursos podem ser mobilizados numa escala nacional e global para suprir as necessidades da sociedade, então o Animal Crossing pode um dia ser olhado como um jogo que nos ajudou a ultrapassar as ansiedades do dia a dia durante esta crise e nos permitiu vislumbrar um futuro diferente”, escreveu Giddings no seu blogue.
Pegar na Nintendo Switch para jogar Animal Crossing pode parecer um anestésico. Não existem propriamente picos de adrenalina, não há tarefas urgentes para terminar em segundos, puzzles que impeçam o progresso no jogo ou desafios que coloquem em causa a nossa perícia. Como conciliar essa postura de piloto automático com a ideia de que nos está a ser ensinada alguma coisa? É um pouco essa a sua originalidade. Um jogo para relaxar, mas no qual não escapamos totalmente aos constrangimentos da nossa vida: a pressão para consumir mais e ter uma casa maior, impossível de alcançar sem ficar a dever dinheiro ao banco, ao mesmo tempo que nos vão repetindo que temos de fazer o que nos apetece e sermos felizes.
Bogost escrevia na Atlantic que, “com as mortes provocadas pelo coronavírus a dispararem e a economia real a afundar-se, o Animal Crossing pode inspirar os norte-americanos a reclamarem por uma estrutura e rotina e motivá-los a alcançarem fins mais modestos do que notáveis”.
Estúdios esfregam as mãos
O coronavírus foi um desastre para todo o mundo, mas está a servir como uma mina de ouro para a indústria dos videojogos. A Nintendo viu os lucros operacionais aumentarem 428% no último trimestre, em grande parte devido ao Animal Crossing, que, desde março, já vendeu 22 milhões de cópias. A faturação da Electronic Arts também surpreendeu os analistas e a Epic Games (responsável pelo Fortnite) conseguiu arrecadar 1,78 mil milhões de dólares junto de investidores. As vendas de jogos para a PlayStation dispararam 83%, a maior parte compras digitais.
Além do Animal Crossing, os títulos mais populares destes meses foram Call of Duty, Final Fantasy VII, GTA V, Mario Kart 8, Minecraft, NBA 2k20 e The Last of Us. No total, os gastos com videojogos aumentaram 30% nos EUA, entre abril e junho, em comparação com o mesmo período de 2019, conclui o NPD Group, sublinhando que já 3/4 da população norte-americana jogam videojogos.
Fechados em casa para travar a progressão do vírus, este aumento seria de esperar. E são os próprios consumidores que o reconhecem. Segundo a Nielsen, o número de jogadores que dizem estar a jogar mais tempo devido à pandemia aumentou 46%, entre março e junho nos EUA, 41%, em França, e 28%, no Reino Unido.
Além do confinamento, o sentimento generalizado de incerteza pode aumentar a vontade de encontrar refúgio num mundo fictício, onde embora a frustração também exista, ela permite uma nova tentativa, uma vida extra ou desligar a consola furioso e ir beber uma cerveja. Mesmo quando não carregamos nos botões suficientemente depressa, pelo menos podemos estar mais descansados por termos o comando nas mãos.
No meio de uma pandemia que apanhou o mundo de surpresa, quando as mortes se acumulam, milhões de pessoas perdem o emprego e o simples ato de sair à rua pode colocar a nossa vida e a dos outros em risco, andar às voltas numa ilha a apanhar borboletas e construir uma mesa de cabeceira de madeira pode ser um alívio, mesmo que haja uma dívida a pagar.
Ou, nas palavras de Bogost, “Animal Crossing oferece uma economia simulada, na qual não interessa aquilo que se faz – é-se capaz de ter uma vida apelativa e cativante, ainda que modesta”, avalia à EXAME. “Pode acumular capital e melhorar a casa, endividar-se e colecionar bens – ou pode não fazer nada disso e apenas pescar e olhar para as estrelas. De qualquer forma, a economia do jogo apoia-o. Não será expulso de casa. Ninguém lhe dirá que não cumpriu o seu potencial. Esse é um sonho que vale a pena sonhar, especialmente agora.” Pelo menos, até chegar uma nova carta do Tom Nook.
A economia virtual de Varoufakis
Em 2012, Yanis Varoufakis apareceu nas notícias, mas o tema não eram as dificuldades financeiras gregas. Aquele que, três anos mais tarde, seria nomeado ministro das Finanças, tinha sido contratado pela Valve, criadora de jogos como Half-Life e Counter Strike. A decisão foi a mais noticiada de uma tendência que se intensificava: economistas a analisarem economias virtuais. Eyjólfur Gudmundsson, reitor da Universidade de Akureyri, foi um dos primeiros. Entre 2007 e 2014 foi economista-chefe da CCP, empresa islandesa responsável pelo jogo Eve Online, em que monitorizava aquilo a que chamava o “produto de utilizadores bruto” (o PIB da vida real), massa monetária e inflação. Via a sua função como uma espécie de banco central do jogo, identificando problemas e tendências. Na Valve, Varoufakis procurou aplicar o seu conhecimento a questões comerciais e cambiais que a empresa começou a identificar quando as trocas entre jogadores se intensificaram. Estes ambientes são um paraíso de dados, principalmente com a popularidade de multiplayers online com milhões de utilizadores e milhões de interações, todas elas registadas e quantificadas. “É como ser omnisciente”, dizia Varoufakis à NPR. Um laboratório perfeito para economistas. Ou, como dizia o académico Edward Castronova: “Só porque as pessoas fingem ser ogres ou elfos, não significa que não continuam a tomar decisões económicas racionais.”
Nota: artigo publicado originalmente na EXAME de setembro de 2020.