Quando abrimos o relatório Trends for 2020, publicado por Marian Salzman no final do ano passado, não queríamos acreditar no título: ‘Caos: o novo normal’. Dito assim parece quase futurologia, mas a executiva garante que não tem qualquer bola de cristal. “Achei que 2020 ia ser um ano de realinhamento político e emocional. Não previ, naturalmente, que ia haver um vírus que vinha da China para todo o mundo. Lembro-me, aliás, de estar num jantar aqui na Suíça, com um colega chinês, em fevereiro, e perguntar-lhe o que estava a acontecer”, começa por contar à EXAME, numa conversa descontraída desde o escritório em Lausanne.
Falámos com a vice-presidente da Philip Morris International com o pelouro da comunicação, dois dias depois das eleições nos EUA, quando ainda não havia resultados. Norte-americana com residência no Arizona, garantiu-nos que o tradicional estado republicano iria virar democrata nestas eleições, sobretudo por duas razões: “Primeiro porque, para nós, a questão das fronteiras não faz sentido algum. O México está a 20 km de minha casa. São nossos vizinhos, não são nossos inimigos. Nós crescemos com aquelas pessoas, fazem parte da nossa vida e da nossa economia. E, depois, [o republicano] John McCain foi um apoiante de Obama e de Biden. E nós respeitamo-lo demasiado”, atirou com um sorriso. “Era realmente um político admirável.” Na mesma ocasião, Marian partilhou em primeira mão com a EXAME aquelas que acredita que vão ser as tendências para o próximo ano (ver página seguinte), fazendo questão de realçar que tinham sido todas definidas antes de se saber quem iria ocupar a Casa Branca nos próximos quatro anos. Mas, assumindo-se uma trendsetter, pedimos-lhe que fizesse o seu prognóstico: a vitória seria de Joe Biden, garantiu.
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Mudar a perspetiva
Salzman trabalhou, durante mais de duas décadas, em algumas das maiores agências de publicidade do mundo. Há cerca de dois anos trocou o universo criativo pelo grupo Philip Morris (PMI), depois de nove meses de conversações e de muitas dúvidas sobre se devia comunicar uma tabaqueira, depois de o pai ter falecido de cancro do pulmão e de ela própria já ter lutado mais do que uma vez contra doenças do foro oncológico.
Pensar nesta mudança “foi uma viagem de ceticismo”, admite. “O meu marido é de Direito e é especialista em Direitos Humanos. Achei que ele ia ser completamente contra isto. Mas quando lhe contei que me tinham contactado, e que ia indicar outra pessoa para o cargo, o que ele me respondeu foi: ‘Por que razão vais fazer isso? Imagina o que era poderes mudar o apartheid por dentro.’ No fundo é uma questão de perspetiva, da forma como se olha para a questão. ‘Imagina a diferença que podes fazer, se tiveres o poder desta empresa… farás muito mais lá dentro do que apenas a não deixar as pessoas fumar na tua casa’”, conta divertida. “Eu era efetivamente uma idiota. Uma anti-smoking vigilante, que nem deixava o jardineiro fumar se estivesse no meu jardim!”, diz com um sorriso.
Mas então, o que faz uma executiva de sucesso, completamente antifumo, juntar-se à principal empresa tabaqueira do mundo? Primeiro, explica, a ética que encontrou dentro da organização. Os valores, o compromisso e o ambiente, refere. “As agências de publicidade são lugares muito divertidos para se trabalhar. Mas a PMI é um lugar maravilhoso. Não estava à espera. E estou muito feliz por me ter juntado à PMI, e por o ter feito quando tinha idade para o fazer. As energias negativas já não me afetam, o que as pessoas dizem não me afeta… Ganhei calo, no fundo”, conta, antes de revelar que vários amigos a questionaram bastante por ter tomado esta decisão. Trabalhar numa empresa que promove produtos que são um risco para a saúde com o seu historial não lhes fazia sentido. Mas, defende, a empresa está comprometida em “tornar o mundo um lugar melhor”, garante.
Temos três frases-chave: se não fuma, não comece; se fuma, desista e se não desistir, mude. Os cigarros não são bons para nós, certo?
Esse foi, aliás, um dos tópicos que a levaram a demorar tanto tempo a tomar a decisão. Queria ter a certeza de que o compromisso de que lhe falavam era real e seria consequente no marketing da PMI. “A nossa campanha atual é mesmo para retirar o fumo do mundo. Temos três frases-chave: se não fuma, não comece; se fuma, desista e se não desistir, mude. Os cigarros não são bons para nós, certo? E temos de continuar a testar os valores da companhia. A empresa vai estar fora do negócio do tabaco de combustão num futuro relativamente próximo. E vai substituir isso por produtos que são melhores para a sociedade. E eu acredito nisso”, resume. “Sinto uma enorme responsabilidade, como sentia na publicidade, aliás, por ser uma mulher num cargo sénior de gestão, em fazer a nossa mensagem chegar”, afirma, como que a comprovar o seu grau de exigência com a própria missão. “O que faço aqui é muito diferente de vender ou de promover outro tipo de produtos. Estamos a falar de transformar técnicas de marketing, de alterar comportamentos, de criar novos quadros regulatórios para que possamos apresentar novos produtos ao mercado, que sejam bons para o mundo”, conclui.
Prever o caos
No meio de dias agitados, em que se divide – agora mais virtualmente – entre a Europa e os EUA, Marian Salzman decidiu ainda voltar a estudar, além de se dedicar aos seus relatórios de tendências e livros sobre liderança. Para 2020, além de apontar para um cenário caótico e de um novo normal, a executiva elencou ainda uma série de outras tendências que se provaram certas: o regresso a uma vida no campo, maior atenção ao ambiente, a aceleração da robótica, os mais jovens a terem mais voz, e uma das que nos surpreenderam mais pela sua precisão, um “desespero por toque”.
Garantidamente, vou passar os olhos pelo New York Post, que é de direita, pelo Daily Mail, que é middle England, e claro, leio o New York Times, o Washington Post e tento ler alguns jornais australianos
Mas, se não tem uma bola de cristal, como é que Marian chega a estes resultados que, ao longo dos anos, se têm mostrado tão certeiros? “Vem tudo dos números”, resume. “Eu estudo muito estatísticas, no que toca a atitudes humanas. No fundo, procuro padrões, olho para o que está na agenda do dia e muito para aquilo a que as pessoas aspiram – e aquilo a que as pessoas aspiram odiar. A título de exemplo, acredito que Trump foi eleito porque as pessoas aspiram a ser uma estrela de televisão. Não é porque ele era um pai de família ou um político ótimo. Os eleitores viam-no de uma forma diferente. Como sou uma pessoa global, olho para o que aconteceu no ano anterior, considerei estas questões populistas todas que estão a acontecer em redor no mundo… Depois estudo os média, leio imensa literatura académica e popular, ou informativa. E todos os dias tento ler jornais de diferentes espectros políticos. Garantidamente, vou passar os olhos pelo New York Post, que é de direita, pelo Daily Mail, que é middle England, e claro, leio o New York Times, o Washington Post e tento ler alguns jornais australianos. E porque tudo está disponível em formato digital, permite-me olhar de uma forma muito aberta. É como se fosse um puzzle que eu estou a montar”, explica. É depois de juntar todas as peças e de lhes dar sentido na sua cabeça, que olha para o futuro e tenta antecipar comportamentos e preocupações.
“You can do it all…one thing at a time”
Este ano, por exemplo, teve ainda mais tempo para pensar, uma vez que ficou várias semanas confinada em casa. Foi também quando sentiu vontade de recomeçar a estudar. “Já viu o que é poder estar aqui a fazer um mestrado numa boa universidade norte-americana? Através da internet? Não posso perder a oportunidade”, diz entre uma pipoca e um sorriso descontraído. E, no meio de tudo isto, Marian garante que dorme pelo menos seis horas por noite. “Dormir o suficiente, ter um estilo de vida saudável e ter hobbies são tudo coisas muito importantes”, avisa. E sobre como consegue ter tempo para gerir tudo, com um nível de sucesso tão elevado, é bastante assertiva: “Só não se pode fazer tudo de uma vez, nem sozinha. Nunca poderia ter aceitado este trabalho se tivesse crianças em casa, ainda. Não acredito, aliás, que o tivesse aceitado se as crianças [os enteados] ainda estivessem em idade escolar.”
Dormir o suficiente, ter um estilo de vida saudável e ter hobbies são tudo coisas muito importantes
Mas o grande segredo, admite, está em ser “muito boa só a fazer o que interessa. Por exemplo, interessou-me sempre que a nossa família jantasse junta todos os dias. Não me interessa quem cozinha esse jantar. Durante anos tivemos uma incrível empregada, e eu nunca sabia o que ia comer quando me sentava à mesa… Há 20 anos que eu não me preocupo com nada em casa, porque há uma outra pessoa, que é bem paga, a propósito [risos], que trata de tudo. Portanto, fazíamos questão de pelo menos um de nós estar à mesa com as crianças para jantar. E acho importante que haja sempre comida no frigorífico. Acho superimportante ter tomado atenção ao seu percurso escolar. Mas, por outro lado, não vi filmes durante uns cinco anos, porque para mim não era importante ir ao cinema. Era importante, porém, ter sempre alunos de intercâmbio em casa no verão, porque cresci como uma pessoa global. E gostava de me levantar as 5h da manhã para lhes preparar sanduíches, porque era uma memória que eu tinha”, conta.
Uma das coisas que foi aprendendo com os anos – e que, admite, tem estado a tentar trabalhar – é que o seu “ nível de intensidade é muito mais elevado do que o do resto da família”, conta com uma gargalhada. “Eu sou muito focada. O meu marido é muito mais intelectual e, por exemplo, às vezes ligo-lhe daqui e ele diz-me que está a pescar. Eu não consigo dizer-lhe como isso me irrita! E eu devia ficar contente por ele estar a pescar, mas irrito-me por ele estar ali todo descontraído”, confessa divertida. Mas, acima de tudo, remata, “sei aquilo em que não sou boa”. E é essa lição que gosta de levar tanto para casa como para o seu escritório, onde hoje estão menos pessoas, por conta da pandemia, mas de onde as acompanha para ter a certeza de que todas estão a atravessar este período com a maior paz possível. Uma das tendências para 2021, aliás. Paz em temos incertos.
Tendências para 2021
Marian Salzman terminou o seu relatório para o próximo ano em vésperas das eleições norte-americanas e partilhou-o em primeira mão com a EXAME.
“Zoom in” nas pessoas
Mais atenção ao próximo, foco nos negócios locais e nas nossas necessidades pessoais. Marian acredita que a pandemia vai fazer com que parte das pessoas se reconectem com os valores essenciais e que vamos ter um olhar mais atento a quem precisa de nós.
O que são o tempo e o espaço?
A especialista acredita que vamos ser mais flexíveis na gestão de tempo e espaço. É possível que a semana de quatro dias tenha mesmo vindo para ficar e que os horários de trabalho passem a ser geridos individualmente, quando é possível.
Adeus, narcisismo
A pandemia trouxe-nos menos selfies e mais fotografias de videochamadas em grupo, o que pode refletir-se também na nossa consciência de que somos uma comunidade e precisamos uns dos outros para lutar por um futuro comum.
Real ou digital?
Nunca se venderam tantos “detox packs” para férias em família, nem nunca as pessoas se sentiram tão conscientes do seu cansaço digital. Marian acredita que os ecrãs vão perder espaço durante o próximo ano, e que as pessoas voltarão a sentir-se mais conectadas com a realidade.
Hello, robôs
Drones, robôs, motoristas virtuais: tudo tendências que terão vindo para ficar, numa altura em que se acelerou significativamente o processo de entregar à robótica as funções mais mecânicas da nossa realidade. Até já existem robôs sub-chefs…
Ready for the fight
Despensas mais cheias, prédios e condomínios com zonas comuns de depósito, espaços reservados para guardar todos os mantimentos que sejam necessários em caso de “guerra”. O estado de alerta vai permanecer connosco. E podem até surgir serviços de concierge aplicados à saúde.
Redefinir o essencial
A ideia de um Rendimento Básico Incondicional nunca esteve tanto na agenda. Poderá ser uma das ideias que vão crescer no próximo ano, com muita gente e defender um repensar do atual sistema económico e social.
Novas parcerias
A corrida às vacinas contra a Covid-19 mostrou que público e privado funcionam bem juntos e mais parcerias são precisas. As empresas vão tornar-se, mais do que os Estados, verdadeiros agentes de mudança.
Diferente urbanização
Para quem tem trabalhado em casa, esta começou a ser olhada de outra forma. É muito possível que as cidades se tornem mais pequenas, que o campo volte a ser valorizado, e que as casas confortáveis passem a ser mais importantes do que a manutenção do statu social. O imobiliário vai mudar.
Paz em tempos de incerteza
Nunca vivemos com tanta incerteza no horizonte: isso poderá levar-nos a fazer investimentos mais seguros, alocar mais a saúde e educação, simplificar o estilo de vida. No fundo, procurar um clima de paz e de serenidade para sobreviver ao caos.
*artigo publicado na edição 440 da EXAME, de dezembro de 2020