Pessoas subiam e desciam para a estação de metro de Santo Ovídio. À superfície, automóveis e peões revezavam-se à espera da luz verde do semáforo, os autocarros no mesmo para-arranca. Pelas ruas movimentadas, poucos imaginariam que o dia seguinte traria as primeiras limitações de movimentos ditadas pelo novo coronavírus. Mas, àquela hora dos primeiros dias de março, Vila Nova de Gaia ainda era o que se pode chamar uma cidade normal, com milhares de pessoas em circulação, consumidores à mão de semear para receberem o impacto das mensagens das marcas.
Enquanto saía do SUV topo de gama estacionado a poucos metros da estação de metro, Ricardo Bastos ia apontando para o ecrã erguido na curva do passeio, sem esconder o entusiasmo de quem mostra um brinquedo novo pela primeira vez. Com a diferença de que aqui o “brinquedo” tem oito metros quadrados de LED e custa €50 mil: um outdoor digital apetrechado de tecnologia. Em cada instante, sensores e câmaras leem o espaço envolvente (temperatura, radiação, humidade, fluxo de trânsito e até o estado de espírito dos condutores) e, em articulação com sistemas de Inteligência Artificial, podem exibir automaticamente conteúdos publicitários direcionados ao instante e ao consumidor que passa diante dele.
Se faz sol e calor, pode sugerir-lhe que coma um gelado na loja da esquina. Se o dia estiver frio e cinzento, talvez lhe mostre o anúncio de uma casa com lareiras a dois quarteirões. Se detetar na sua cara que está a ter um mau dia, pode, por exemplo, desafiá-lo com uma frase motivacional. “Estamos a projetar a próxima década do out of home”, diz o presidente da dreamMedia, que vê nesta peça de comunicação uma prova de vitalidade da publicidade exterior. Já tem cinco destes painéis instalados e quer chegar aos 100 até ao fim do ano, em todo o País.
O outdoor que em cinco minutos permite colocar no ar este género de campanhas personalizadas – e que disponibiliza portas USB para carregar telemóveis ou rede wi-fi gratuita – tem uma base made in China que é personalizada à chegada. É também é um exemplo de como esta empresa, que em década e meia se tornou numa das maiores do País no seu setor, está apostada em transformá-lo pelo lado da tecnologia e da digitalização, enquanto se abalança para aventuras mais ousadas, como a entrada na eletrificação automóvel ou a compra de outros players de referência no setor da comunicação. Já lá iremos.
Meia vida nos outdoors
É difícil suster a aceleração de Ricardo Bastos, enquanto descreve o pequeno império que pôs de pé desde que, aos “15-16 anos” se ofereceu à Espírito Santo (não a do BES, mas uma empresa de camionagem de Vila Nova de Gaia) para explorar a publicidade nos seus autocarros. Mais tarde entrou no negócio dos outdoors e agora, com 31 anos, diz-se líder neste negócio em Portugal, com mais de 4 mil outdoors instalados (alguns dos quais “os maiores do País”), em 170 municípios de todos os distritos.
Ainda hoje, tudo passa por Vila Nova de Gaia, onde nasceram Ricardo e a empresa. No comprido armazém plantado ao fim de uma estreita rua sem saída de Vilar de Andorinho, está verticalizada toda a produção da dreamMedia, da serralharia à impressão de telas. Ouve-se o som de rebarbadoras e de berbequins, as máquinas de soldar chispam e sente-se no ar o cheiro a queimado, no espaço em que se criam as novas estruturas metálicas que hão de ajudar a passar nas ruas a mensagem dos mais de 200 clientes, desde grandes marcas a negócios locais.
Com 100 trabalhadores no total (a que se juntam 40 colaboradores externos para campanhas publicitárias sazonais nos 75 meios móveis, como camiões TIR, segway, carrinhas pão de forma ou autocarros panorâmicos que também gerem), o grupo de empresas de comunicação sob o chapéu da dreamMedia faturou, no ano passado, €11 milhões, mais de 20% face a 2018 (só a Alargâmbito, que tem a marca dreamMedia, faturou €6,8 milhões). Neste ano, espera crescer de 15% a 20% para estar a faturar €20 milhões em 2025, aumentando, nessa altura, o número de empregados para 150.
Mas o negócio tem vindo, aos poucos, a escorregar para lá da comunicação. Há cinco anos foi criada a Capital Force, empresa que vai promover e explorar naves e pavilhões industriais para alugar e que já comprou três terrenos industriais, com 60 mil metros quadrados, em Vila Nova de Gaia. Na primeira fase, o parque representa um investimento de €15 milhões e já há clientes em vista – a própria dreamMedia levará para lá a sua nova sede.
Em breve, Ricardo Bastos conta também lançar, com parceiros das áreas industrial e automóvel, a rede Green Charge. O objetivo é instalar mil postos de carregamento de carros elétricos nos próximos cinco anos no País, num investimento de €30 milhões.
Há ainda planos para continuar a internacionalizar o negócio da comunicação – além de Moçambique, onde entrou em 2012, tem outros mercados europeus e africanos em standby para avançar ao primeiro sinal de afrouxamento da economia portuguesa, sem excluir também a entrada na publicidade online por via de aquisições. Para já, será isto, e acrescenta: “Não queremos dispersar, só investimos em áreas que dominamos. E temos muitos projetos em curso.”
O digital está na rua
O mercado de out of home, em que o consumidor é recetor do impacto das mensagens publicitárias na via pública, tem vindo a subir nos últimos anos. Em 2018, a IMARC avaliava esta atividade em €37 600 milhões e antecipava uma subida média anual de 4,9% até 2024. No ano que passou, só o negócio da vertente digital terá crescido ao nível mundial a um ritmo duas vezes superior (9,7%), segundo dados da Statista. Neste ano, aquele segmento deverá alcançar receitas de €6 700 milhões e mais do que duplicar o contributo até 2027, para €14 300 milhões (dados divulgados antes da crise mundial provocada pela Covid-19).
“A área do digital não veio substituir a tradicional, veio fazer nascer novos suportes digitais em cima do que já era o out of home.” No caso da empresa de Ricardo Bastos, o peso do digital no negócio ainda é menos de 1%, mas o investimento pensado e em curso deverá pôr a rede digitalizada a pesar 10% a 20% nos próximos cinco anos. “Acreditamos que muitos dos anunciantes que encaminhavam o seu bolo publicitário para a televisão vão passar a encaminhar também para o digital out of home, porque conseguem ter um engagement fortíssimo. E não é mais caro anunciar em digital do que no estático, estamos a praticar preços equivalentes”, destaca.
No negócio da publicidade exterior, a dreamMedia tem vindo a crescer pela via orgânica (através de licenciamento de espaços pelas câmaras municipais ou por concurso público para gerir concessões, como acontece em Sintra, Figueira da Foz ou Aveiro) e pela aquisição de operadores concorrentes. A IEPEP, de Barcarena, foi a última compra, €1 milhão entre aquisição e investimento, o que permitiu integrar licenças em autarquias de todo o País, maioritariamente no Grande Porto e na Grande Lisboa.
E pelo andar do autocarro, a época das compras ainda não acabou. Ricardo Bastos recusa revelar quanto tem em mãos para gastar em novas aquisições, mas assegura que, num setor tão pulverizado como este, se aparecerem oportunidades, não faltará dinheiro, sempre com verbas próprias e sem necessidade de capitais alheios. “O futuro da publicidade exterior passa por concentrar forças. Não é ser monopolista: só se conseguem avanços tecnológicos fortes com condições”, justifica, descrevendo que os quatro maiores players possuem 60% do mercado, enquanto o resto estará repartido por 120 empresas.
Vender não está para já nos seus planos, embora tenha havido interesse nos últimos anos por parte de fundos de investimento nacionais e internacionais. Ricardo Bastos quer continuar a valorizar a empresa pela via da transformação tecnológica e pela entrada nas grandes cidades, e diz-se, por outro lado, “muito interessado” em comprar. Duas das principais empresas do setor entraram declaradamente na sua mira. “Obviamente que a dreamMedia está interessada em comprar a Cemusa e a MOP”, assume. À EXAME, fonte da Cemark (Cemusa) afirmou que o assunto nunca foi falado entre as duas empresas e que não está vendedora. “A Cemark desconhece o interesse, nunca houve qualquer contacto nesse sentido. A Cemark não está à venda”, referiu em respostas por email. Quanto à MOP, não foi possível obter uma reação até ao fecho desta edição.
A incógnita do novo vírus
Poucas áreas de negócio como esta estarão tão expostas à mobilidade dos consumidores (a pé, de carro), o combustível que alimenta os espaços publicitários vendidos aos anunciantes, e, por isso, também às restrições de circulação que estão a ser adotadas em todo o mundo para combater a pandemia da Covid-19. “Consumidores em países com números significativos de casos do novo coronavírus já estão a evitar grandes espaços públicos e ajuntamentos, e isso poderá acabar por ter impacto na intenção de anunciar nesses mesmos espaços”, assumia num artigo da eMarketer.
Para já, ninguém arrisca fazer a estimativa deste impacto. A associação norte-americana do setor, a OAAA, sublinha o ano recorde de 2019 e reforça que os fundamentais do negócio continuam fortes. “Ainda é demasiado cedo para dizer exatamente qual será o impacto da doença, no longo prazo”, reconhece a organização. Na Austrália a Ooh Media, um dos maiores operadores, abandonou recentemente o seu guidance de lucros para 2020, argumentando que o ambiente criado pela pandemia torna difícil avaliar o seu impacto na economia.
No caso da dreamMedia, receosos do novo coronavírus, os organizadores de eventos foram os primeiros a recuar na mesma medida que surgiam os primeiros casos. O cancelamento ou adiamento de iniciativas ressentiu-se logo nos anúncios dos outdoors digitais. “Foi uma razia”, admite Ricardo Bastos que disponibilizou, entretanto, os postos digitais e a rede estática de outdoors à Direção-Geral da Saúde para campanhas de sensibilização.
No entanto, assegura que até agora essa decisão dos anunciantes não teve impacto direto na receita, já que as campanhas foram adiadas sem cancelamentos e continuam contratadas. “Estamos a acompanhar. Não estamos a ter sintomas diretos que nos possam afetar e ainda é prematuro estimar um impacto. Mas estamos preocupados”, sublinha o presidente da empresa.
Novo negócio quer carregadores elétricos em todos os concelhos
Desde outubro passado, há uma nova área de negócio no universo gerido por Ricardo Bastos. A Gesmeios deu lugar à Green Charge e, com ela, surgiu um projeto ambicioso que quer pôr, pelo menos, um carregador de carros elétricos em cada concelho do País.
O objetivo é instalar mil postos ao longo dos próximos cinco anos, em articulação com parceiros nacionais e internacionais das áreas da energia, automóvel e indústria, cujo nome não é ainda conhecido. À EXAME, o empresário garante que a firma já tem “alvará” para operar e que já teve contactos com mais de 30 autarquias. O investimento na rede, avaliado em €30 milhões, “tem zero custos para o Estado” e não vai recorrer a incentivos comunitários.
“Há músculo financeiro, porque fazemos o financiamento e os meios permitem explorações diversas do rendimento e desenvolver sinergias com todas as empresas”, justifica. Os equipamentos vão ser totalmente produzidos em Portugal e o protótipo dos postos está “praticamente concluído”. O abastecimento poderá ainda ser feito com uma poupança na ordem dos 30% para o cliente, isentando o utilizador da cobrança do custo de utilização de posto, explica.
O primeiro posto poderá chegar ainda no verão deste ano e Vila Nova de Gaia é uma das localizações iniciais possíveis. O empresário diz que as suas firmas já têm carros híbridos e que se preparam para a compra de viaturas elétricas.
notícia publicada originalmente na edição 432 da EXAME – abril de 2020