Em quase três meses, o valor associado a contratos públicos para compra ou aluguer de bens e serviços para combate à pandemia do novo coronavírus em Portugal totalizou pelo menos €157,6 milhões, a maior parte dos quais correspondente a procedimentos por ajuste direto, celebrados em março e abril, depois de se ter iniciado o surto de Covid-19 no País.
Os dados constam de uma pesquisa feita na plataforma Base.gov, no qual os organismos públicos devem publicitar os procedimentos que realizam para a aquisição de produtos e serviços. No total, de acordo com aquela fonte, no período em causa foram firmados 606 contratos. As dez empresas que mais encomendas somaram respondem, entre si, por cerca de dois terços do valor total contratado.
Os bens e serviços adquiridos através destes procedimentos variam muito. Desde a compra de equipamentos de proteção pessoal (máscaras, luvas, viseiras, óculos, batas, álcool-gel, lenços de papel), a ventiladores, medicamentos, reagentes, testes e zaragatoas. Também há módulos para hospitais de campanha, acrílicos para proteção, além de tablets, routers, computadores portáteis ou contratação de serviços de streaming para transmitir provas desportivas. Desinfeções de espaços, alugueres de estruturas e anúncios na imprensa regional também cabem nesta lista.
Em conjunto, as três empresas com mais valor adjudicado foram a GLSmed Trade, empresa de distribuição de produtos, equipamentos e dispositivos médicos detida a 100% pela Luz Saúde (€33,9 milhões); a FHC Farmacêutica, sociedade de Joaquim Matos Chaves e Luís Gonçalves Simões, que detém os laboratórios Basi (€13,72 milhões, a que se somaria mais um contrato de €19,68 milhões para compra de máscaras e respiradores que foi entretanto cancelado por “incerteza no fornecimento e nas condições de realização da transação dos bens”); e a fabricante de luvas descartáveis Raclac (€13,6 milhões).
Segue-se a Quilaban, empresa do antigo presidente da Associação Nacional de Farmácias, João Cordeiro (€11,97 milhões), a Enerre, firma de brindes que surgiu recentemente nas notícias por fretar seis aviões para trazer 500 toneladas de material da China, que tem contratos totais de €11,7 milhões. Outras empresas como a Oasipor, empresa de importação de material clínico (€8,9 milhões), Clothe-Up, uma têxtil de Guimarães (€8,15 milhões), a empresa de comércio internacional Azinor, pertencente ao grupo dono dos hotéis SANA (€7,7 milhões), a Modalfa, cadeia de vestuário da Sonae (€7,6 milhões) e o grupo familiar de distribuição de medicamentos e dispositivos médicos MD Pharma (€3,7 milhões) completam a lista das 10 principais.
Estas dez maiores adjudicatárias somam, entre si, preços contratuais de €120,9 milhões, o correspondente a cerca de dois terços do valor total.
Serviços centrais são maiores clientes
A nível nacional, a Direção-Geral da Saúde e os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) respondem pela maior fatia – €115 milhões no total – de contratos realizados. Um valor que poderá crescer nos próximos dias, quando vierem a ser publicados os contratos de aquisição dos mais de 1.000 ventiladores encomendados pelo Governo, ao abrigo de um programa dotado de €60 milhões que será operacionalizado pela Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS, IP), disse fonte do Ministério da Saúde à EXAME. Até agora, de acordo com a mesma fonte, só 73 daqueles ventiladores chegaram a Portugal, devido às “dificuldades no mercado mundial de equipamentos para cuidados intensivos”. Os restantes serão entregues “ao longo das próximas semanas”, acrescenta.
A EXAME questionou o Ministério da Saúde sobre o valor total que a DGE e os SPMS aplicaram em aquisições desde o início da pandemia, de forma a confrontar com os dados presentes na plataforma. Fonte do ministério remeteu para o portal BaseGov onde “todas as adjudicações são publicadas (…), onde estão discriminadas as entidades adjudicatárias, os montantes e o tipo de bens.”
Por outro lado, as administrações regionais, os centros hospitalares, os hospitais ou as unidades locais de saúde foram, nestes três meses, responsáveis no seu conjunto por contratos de €17,6 milhões envolvendo o combate à covid-19, enquanto autarquias e empresas municipais respondem por €17,3 milhões, mais de metade (€9,5 milhões) respeitantes ao Município de Cascais. O restante diz respeito a institutos públicos ou direções gerais. Há até uma região de turismo na lista, a do Alentejo e Ribatejo, que comprou ventiladores para hospitais no valor de €140 mil. Recentemente o presidente da instituição disse ao Público que a compra seria de seis ventiladores, um por cada seis hospitais naquelas regiões.
Abril com mais de metade dos contratos
A maioria dos contratos foi realizada por ajuste direto (invocando motivos de urgência imperiosa devido a acontecimentos imprevisíveis que impedem o cumprimento dos prazos normais associados aos procedimentos) ou recorrendo à figura dos acordos-quadro (celebrados entre entidades adjudicantes e adjudicatárias para disciplinar relações contratuais futuras num determinado período, fixando antecipadamente os seus termos), e em alguns casos invocando Decreto-Lei n.º 10-A/2020, que estabelece medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo coronavírus. A muitos dos procedimentos faltam ainda as peças anexas, o que não permite ter acesso a pormenores sobre os contratos.
Os meses de março e abril foram, previsivelmente, aqueles que registaram mais contratos – os primeiros casos em Portugal foram conhecidos a 2 de março – mas já em fevereiro havia equipamentos e serviços contratados com o argumento da deteção da Covid-19, no valor de €388 mil. Os contratos assinados em março ascendem a um total de €66,4 milhões e em abril a €91 milhões, mais de metade do total. Os prazos de execução oscilam entre os zero e os 365 dias.
Os dados para esta análise foram obtidos junto do Base.gov até às 18:00 desta quinta-feira, 30 de abril, cruzando os resultados de buscas pelos termos coronavírus, coronavirus, covid-19, SARS e ncov, para o período a partir de 1 de fevereiro e procurando extirpar eventuais sobreposições. O universo referido pode, no entanto, não corresponder ao total que já foi aplicado. Desde logo, porque há anúncios que estão a ser publicados com, por vezes, dois meses de diferença em relação à data de celebração do contrato, pelo que poderão estar ainda por entrar valores referentes ao período fevereiro-abril que aqui não estão contabilizados. Por outro lado, poderá haver entidades que apesar de comprarem bens no âmbito da atual pandemia, não especificam essa relação no objeto do contrato.