De -11,4% do PIB para 0,2%. Em nove anos, Portugal passou de um dos seus maiores défices de sempre para o primeiro excedente orçamental da democracia. Foi um caminho duro e percorrido, em parte, durante uma recessão profunda. Só nos últimos anos é que os ventos da economia começaram a ter força para empurrar as velas das contas públicas. No entanto, aquilo que o Governo talvez imaginasse, há alguns meses, que seria uma celebração não passará de uma conquista efémera. Este ano, o novo coronavírus poderá fazê-lo regressar ao ponto de partida e, eventualmente, empurrá-lo ainda mais para o vermelho.
Ainda assim, o superávit é um acontecimento histórico para a gestão orçamental portuguesa. E uma conquista à qual Mário Centeno ficará para sempre ligado. Num futuro em que se avizinha um regresso da consolidação orçamental, interessa saber como chegámos aqui.
O resumo já é conhecido: hoje pagamos mais impostos e temos um Estado muito mais magro. As maiores mudanças vieram do investimento e das despesas com os salários dos funcionários públicos. Mas vale a pena olhar com mais atenção para cada rubrica. Daqui para a frente, os valores e pesos de que se fala neste texto estarão sempre expressos em percentagem do produto interno bruto (PIB).
RECEITA
Impostos diretos
Os impostos que recaem sobre o rendimento e o património das famílias e empresas tiveram uma importância decisiva nestes nove anos de consolidação orçamental. O seu peso disparou em pouco tempo de 8,4% do PIB em 2010, para 11,3% em 2013. Quase todo esse salto é explicado por aquilo que ficou conhecido como o “enorme aumento de impostos”, apresentado por Vítor Gaspar.
A utilidade deste tipo de impostos para diminuir o défice durante uma crise está relacionada com a sua maior previsibilidade na arrecadação de receita, por comparação com um carácter mais incerto de, por exemplo, uma subida do IVA.
Desde esse pico em 2013, os impostos diretos têm seguido uma trajetória de desagravamento. Contudo, em 2019 – ano do excedente – eles ainda estavam longe do nível pré-2013, apresentando um peso de 9,8% do PIB. Ou seja, ainda a 1,4 pontos percentuais de distância de 2010. Foi esta a evolução da rubrica:
Impostos indiretos
Ao contrário dos diretos, estes impostos – onde está o IVA e outros impostos sobre o consumo – têm aumentado sucessivamente o seu peso na economia, ainda que com saltos menos bruscos. Entre 2010 e 2019, aumentaram de 13,2% do PIB para 15,1%.
Na última legislatura, ficou claro que a prioridade do Governo passava por tentar aliviar impostos como o IRS, mantendo ou, nalguns casos, agravando a carga fiscal sobre o consumo. Na prática, o maior protagonismo dos impostos indiretos foi compensando o recuo dos diretos.
Contribuições Sociais
A última categoria relevante da receita são as contribuições sociais, aquilo que empresas e trabalhadores descontam para a Segurança Social. O seu peso não mexeu neste período. Em 2010, ele era 11,9% e, nove anos depois, está exatamente no mesmo nível.
Pelo caminho, houve alguns recuos. Salta à vista 2012, ano de desemprego recorde em Portugal, o que explica a quebra nas contribuições. Desde então, houve uma mistura de estabilização e ligeira recuperação, explicada pelo maior dinamismo do mercado de trabalho. Contudo, não foi certamente à custa desta rubrica que o défice caiu.
No total, quando se olha para a totalidade da receita – onde estas são, de longe, as três principais fatias -, percebemos que elas tiveram uma grande importância numa primeira fase da crise, mas que essa relevância foi desaparecendo. Ainda assim, o peso da receita do Estado em 2019 era 2,4 pontos percentuais superior aquilo que se observava em 2010.
DESPESA
Apoios Sociais
Do lado da despesa, as prestações sociais viveram uma verdadeira montanha-russa. No arranque da crise, este tipo de despesa – que inclui pensões de velhice e apoios ao desemprego – aumentou consideravelmente, devido à recessão profunda e taxas de desemprego em máximo históricos. Chegou a atingir os 20,6% do PIB.
À medida que o tempo passou e a recuperação ganhou fôlego, os apoios sociais foram perdendo peso e estão hoje em 18,2%. Um valor que fica até ligeiramente abaixo do que se registava em 2010. Embora essa diferença pareça pequena, a evolução desde o pico da crise foi muito significativa.
Salários da Função Pública
Esta foi a rubrica mais importante da despesa corrente para conseguir reduzir o défice orçamental nestes nove anos. Os gastos com os salários dos funcionários públicos eram, no ano passado, quase 3 pontos percentuais mais baixos do que em 2010, caindo de 13,7% para 10,7%.
Ao contrário das prestações sociais, a tendência tem sido bem clara desde o início deste período: queda atrás de queda (uma das excepções é precisamente 2019, quando essa descida travou). Primeiro com cortes diretos de salários e depois com congelamento dos mesmos, as remunerações dos trabalhadores perderam relevância no orçamento e Portugal passou de um dos países onde esta rubrica tinha mais peso para ficar muito perto da média da União Europeia.
Juros da dívida
Um rubrica importantíssima e que ajuda explicar grande parte do sucesso orçamental deste Governo. Embora os seu peso em 2019 (3% do PIB) ainda esteja ligeiramente acima do nível de 2010 (2,9%), está a quilómetros de distância do pico da crise.
Entre 2011 e 2016, o Estado português pagou em juros sempre mais de 4% do PIB ao ano, tendo chegado a atingir os 4,9% em 2014. Entre esse ponto e 2019, há uma diferença de 1,9 percentuais do PIB. Um fosso que ajudou a descer o défice, mas que não foi sentido na carteira dos portugueses.
Consumo intermédio
Um tipo de despesa em larga medida ignorado, mas que ganhou protagonismo no início da crise, quando alguns políticos e economistas falavam na necessidade (e facilidade) de cortar as “gorduras do Estado”. A existirem nalgum lado elas estão nesta rubrica: compra de equipamentos, material, gastos energéticos… De giz nas escolas e compressas em hospitais a papel numa repartição de Finanças e gasóleo usado em carros oficiais. Inclui também gastos com PPP.
Apesar de terem recebido muita atenção, esta despesa teve apenas uma descida ligeira ao longo desde 2010. Têm hoje um peso 0,7 pontos abaixo do que tinham há nove anos.
Investimento público
Entre todas as rubricas, seja de receita ou de despesa, nenhuma apresenta uma diferença tão grande em comparação com 2010. Nesse ano, Portugal investiu o equivalente a 5,35% do PIB. Em 2019? Apenas 1,77%. É uma diferença de 3,6 pontos percentuais. Está aqui, só neste rubrica, a explicação para 1/3 da redução do défice nos últimos nove anos.
A quebra ocorreu logo nos primeiros anos. 2010 já tinha sido um ano extraordinário para o investimento público. Nos últimos 25 anos, apenas é superado por 1997, quando se iniciou o projeto do Alqueva e ganhavam gás as obras da Ponte Vasco da Gama e da Expo 98.
Daí para a frente, o investimento caiu drasticamente. Em três anos, afundou de 5,4% para 2,3% do PIB. No arranque do Governo de António Costa chegou um novo trambolhão. No ano anterior, Passos Coelho tinha colocado no terreno 2,4% do PIB em investimentos do Estado, que se transformaram em 1,5% no primeiro ano de Mário Centeno no Terreiro do Paço.
Desde essa altura, o investimento tem recuperado a um ritmo muito lento, falhando sucessivamente – e por muito – as metas inscritas no Orçamento do Estado de cada ano. Isso significou que, no final de cada ano, o défice caía mais do que estava previsto no OE (o investimento não foi o único motivo, mas ajudou bastante).
Percebe-se com facilidade que a despesa foi mais relevante do que a receita para conseguirmos passar de um défice de mais de 11% do PIB para um excedente. No entanto, conclui-se também que nem sempre foi assim. Nos primeiros anos do período de consolidação, a receita foi mais relevante para o ajustamento das contas públicas e, em 2015, o último ano do Governo de Pedro Passos Coelho, receita e despesa tinham mais ou menos o mesmo peso na consolidação.
Daí para a frente, a despesa tornou-se muito mais relevante. Por vários motivos. A aceleração da economia puxou pela receita fiscal (mesmo sem que o Governo tivesse de agravar a generalidade dos impostos), os juros começaram a cair (haverá aqui debate se isso se deve apenas ao papel do BCE ou também à “credibilidade” do Executivo), propositadamente ou por incapacidade o investimento público não foi executado como estava previsto e o Ministério das Finanças impediu derrapagens na despesa, apertando o controlo dos gastos.
No gráfico acima, a linha vermelha representa a despesa e a azul a receita. Qual delas lhe parece ter sofrido a transformação mais relevante? O Estado português chega ao final de 2019 com o nível de gastos mais baixo desde 2000 e a projeção do Governo era que continuasse a cair (pré-coronavírus).
O excedente alcançado no ano passado durará poucos meses. Mas as lições que foram aprendidas até o atingir ficam connosco e poderão ser úteis num futuro próximo.