É em pleno centro de Sintra que a ourivesaria Arneiro se ergue, exatamente no mesmo lugar onde Reinaldo Arneiro a inaugurou, há 50 anos. Agora nas mãos da segunda e da terceira gerações, cresceu em tamanho e prepara-se para inaugurar mais um piso, no próximo ano, onde terá uma área “reservada aos clientes que preferem alguma privacidade para fazer as suas compras”.
Reinaldo conquistou os clientes de Sintra com a qualidade dos seus produtos, vendidos porta a porta e depois no pequenino espaço onde nos encontramos a conversar, e Joaquim, Mafalda e Pedro tentam agora fazer crescer um negócio que “já faturou mais”. “Mas não nos queixamos”, sorri Joaquim Simplício, genro do fundador. Com vendas a rondar o milhão de euros, a empresa fatura praticamente o dobro das suas congéneres com a mesma idade e dimensão. Mafalda Arneiro, neta de Reinaldo e filha de Joaquim, acredita que parte do sucesso se deve a nunca terem descurado a qualidade, aos produtos diferenciadores e a um serviço de excelência.
“Gosto de trabalhar com fábricas familiares; têm uma história que passa de geração para geração, como nós. Temos parcerias com algumas pessoas que ainda vêm do tempo do meu avô”, esclarece a responsável pelas coleções próprias que a ourivesaria decidiu lançar no ano passado. Além disso, nota Mafalda:“Fomos ajudando alguns dos nossos fornecedores a modernizarem-se, tentando sempre desafiá-los a não estagnarem.” E para que não se percam os artesãos, cada vez mais escassos.
Portugal nas jóias
Uma das decisões que a família tomou, durante os últimos anos, foi apostar cada vez maior na joalharia portuguesa, nomeadamente na filigrana manual certificada, ainda que comercializem também filigrana feita de forma industrial – são peças mais baratas, muitas vezes a opção de alguns clientes – e peças de marcas internacionais que são procuradas por portugueses e turistas. “Um estrangeiro, quando quer comprar filigrana, que é uma arte muito nossa, quer algo de qualidade. E nós temos produtos certificados que justificam o valor que se paga por cada peça, que vai ao encontro das suas expectativas”, continua Mafalda, enquanto nos tenta mostrar as diferenças entre uma medalha de filigrana feita à mão e outra feita à máquina – e há que admitir que falhámos redondamente no teste.
Uma peça de filigrana pode demorar dias ou meses a estar pronta e exige uma perícia e um conhecimento que atualmente poucos têm, pelo que, para estes amantes da joalharia nacional, defendê-los é uma prioridade.
“Podemos estar a ficar sem ourives”, repete, preocupado, Joaquim, enquanto explicam que uma das fábricas com quem trabalham está atualmente na segunda geração de artesãos mas acreditam, não chegará a uma terceira. Os salários são baixos, o trabalho é muito e a valorização da arte é ainda uma raridade.
Por se concentrar mais na joalharia e ourivesaria, a estratégia da Arneiro passou também, há uns anos, por abandonar a relojoaria, um terreno que se tornou demasiado concorrencial. A opção foi de Joaquim, que durante as últimas décadas trabalhou ao lado de Reinaldo e se foi tornando responsável pela modernização da marca. “A minha preocupação é estar atualizado e estar bem em termos de tesouraria, para cumprir os nossos compromissos a tempo e horas”, reforça o atual CEO da empresa.
Novas gerações
O fundador da Arneiro acabaria por falecer em 2018, aos 92 anos, mas, segundo Pedro e Joaquim, Mafalda já é a sua seguidora natural. “Ela vendia coisas às colegas, quando era pequena e andava na escola”, recorda o tio. “É a comercial por excelência”, garante, aproveitando que a filha sai da sala para ajudar uma das vendedoras na loja.
Mafalda acabaria por fazer formação em joalharia na Ar.Co e assumir o cargo de business director na Arneiro. Já o seu primo Pedro, engenheiro civil de formação, começou a trabalhar na empresa nos tempos da faculdade, quando era sempre preciso alguma ajuda no backoffice e na parte tecnológica, pelo que o seu caminho se foi traçando. Hoje, partilham os três a responsabilidade pela empresa familiar, que gostavam que voltasse a faturar um milhão de euros, quem sabe já este ano.
Aposta na exclusividade
Para isso, esperam que possa contribuir a mais recente coleção exclusiva desenvolvida por Mafalda: chama-se Neobaroq e foi pensada para trazer uma nova roupagem aos relevos de cunhos em bronze do século XIX, explica-nos a responsável pelo projeto. Todas as peças são feitas à mão em prata e prata dourada 925, esmaltadas com quatro cores diferentes –vermelho, verde, azul-escuro e azul-claro – e algumas contam ainda com pérolas barrocas. A Neobaroq apresenta várias peças, desde anéis a escravas, passando por colares e, com especial destaque, quatro tipos de brincos que podem ser conjugados com cinco diferentes pendentes. “É importante que as pessoas possam dar o seu cunho pessoal a uma peça que escolhem. Que sintam que a peça é delas e não minha”, justifica Mafalda, enquanto nos mostra os brincos que escolheu para usar no dia em que falou com a EXAME, os quais conjuga com um anel e uma pulseira da mesma coleção.
A criação de coleções exclusivas deverá ser para manter durante os próximos anos. É esse o desejo dos três responsáveis da Arneiro, que reconhecem que as joias de autor acabam por ajudar a valorizar a profissão e os artesãos que são chamados a participar nestes projetos. Aliás, por lhes serem tão queridos, Mafalda fez questão de dar muitos deles a conhecer no seu InTradition, uma iniciativa que já vai na terceira edição e que foi mudando de moldes, mas que tem como principal objetivo mostrar as mãos e os processos por detrás de cada peça que chega aos consumidores.
Para já, vão levar a história do avô Reinaldo e dos seus 50 anos de empresa a outras partes do País, certos de que não há melhor forma de dar a conhecer a joalharia nacional. E continuarão de portas abertas no centro de Sintra, paredes-meias com a doçaria tradicional e os cenários queirosianos que todos tão bem conhecemos
“Queremos acrescentar valor”
Há três anos, Mafalda Arneiro criou o InTradition, uma iniciativa que aproximou produtores e clientes. Este ano, na celebração do cinquentenário da empresa, decidiu abri-lo ao público
Como é que surge a ideia do InTradition?
Em 2017, era eu que geria, de forma muito natural, as redes sociais da loja. Houve um mês em que, ao acaso, me apeteceu apresentar designers e fabricantes que trabalhavam connosco, o que não é muito comum numa loja e começou a ter um impacto muito interessante. Depois, comecei a apresentar a equipa: quem estava por detrás do computador, por detrás do balcão… e houve um dia que disse ao meu pai: e se apresentássemos estas pessoas aos nossos clientes? Se bem que não tínhamos base de dados de clientes… [Risos.]
E o seu pai?
O meu pai disse-me o que diz sempre: vamos ver os custos, mas se conseguires, vamos lá… Então tive de perguntar aos designers se estavam dispostos a fazer uma coisa que eu não sabia o que era. No fundo, é aqui que entra a honestidade que nós tentamos ter sempre com quem trabalha connosco. O que lhes disse foi: queremos fazer uma iniciativa para os nossos clientes, a mostrar o vosso trabalho. Vocês têm de estar presentes com as vossas peças, que não sei se vão vender ou não, também não sei como se chama a iniciativa nem onde é que vai ser [risos].
E como foi o acolhimento dessa ideia?
Disseram todos que podia contar com eles! E eu pensei: “Bolas, agora vou ter de fazer isto.” Um amigo meu tinha criado um espaço de cowork gírissimo aqui em Sintra e perguntei-lhe se o podíamos usar. Depois, só me faltava um nome. Eu não queria estrangeirismos, mas chegou a um ponto em que não tinha tempo para pensar e o “InTradition – estamos in e on com as tradições” fez-nos sentido. Os designers gostaram porque estão muito habituados a fazer feiras internacionais e com muita gente e, portanto, tiveram hipótese de aqui ter algo mais reservado. Por outro lado, os nossos clientes acharam o máximo conhecer as pessoas que estão por detrás das joias. Eu digo sempre que a joia é muito mais do que aquilo que está atrás da vitrina. E esta iniciativa ajuda a valorizar imenso o trabalho. Consegui que um dos fabricantes levasse um filigraneiro ao vivo, e esteve a fazer filigrana durante o encontro. E pedi para levar os meus convidados a experimentar aquilo, para verem o difícil que é.
Como é que o evento ganhou tanto protagonismo?
Porque os designers são todos no Norte, exceto uma, que era das Caldas da Rainha, e outro, do Barreiro. Quando foram para cima, foram todos falar do InTradition. E eu percebi que tinha de continuar a fazê-lo. Nesse ano, arranjámos um sítio onde pus uma bicicleta igual àquela em que o meu avô andava a vender ouro de porta em porta, restaurei a mala que ele usou e fiz-lhe uma surpresa. E ele adorou ver a bicicleta, adorou ver as suas fotografias de há 50 anos. O segundo ano foi muito difícil, porque faleceram os meus avós. Mas quis continuar a valorizar a loja e quisemos representar os mercados que ele fazia e que foram a origem da nossa história. Este ano, queria oferecer cultura de uma maneira diferente. É um bocadinho a nossa filosofia. Ou, pelo menos, queremos que seja. Queremos diferenciar-nos por ter algo que acrescente valor. E queremos que as novas gerações, como a minha, voltem a valorizar coisas que se estão a perder. E como comemorávamos os 50 anos, achei que tínhamos de fazer uma coisa mais séria, e aberta ao público, porque até agora era só para os clientes. Pensei em fazer uma exposição temporária e o meu pai disse-me: “Olha os custos!” [risos], mas incentivou-me a avançar. A Câmara Municipal de Sintra cedeu-nos um espaço, e a ideia era fazer uma reflexão histórica sobre a ourivesaria portuguesa. Convidei uma professora da Faculdade de Letras do Porto, a dra. Ana Cristina Sousa, para ser a curadora desta exposição – também para dar mais credibilidade – e foi espetacular. Fala um bocadinho da história da ourivesaria portuguesa, que não está dividida por décadas, porque é um eterno revivalismo. E agora vamos tentar levar a exposição a mais cidades do País.
Este artigo foi originalmente publicado na edição de dezembro de 2019 da revista EXAME