Depois dos oito anos da era Draghi em que a política monetária foi testada aos limites, a era Lagarde deverá ser marcada por uma maior pressão junto dos governos da Zona Euro para abrirem os cordões à bolsa e investirem de forma a estimular a economia. A nova presidente do BCE, que inicia hoje o seu mandato, não perdeu tempo a realçar essa necessidade. Numa entrevista concedida à rádio francesa RTL, dias antes de assumir a liderança do banco central, Christine Lagarde foi direta e fez uma espécie de ataque relâmpago para exigir mais investimento à Alemanha e à Holanda.
“Os que têm margem de manobra, que têm excedentes orçamentais, a Alemanha e a Holanda, por que não o utilizam para investir em infraestruturas? Por que não investir em educação? Por que não investir em inovação para permitir um maior reequilíbrio?”, questionou Lagarde na entrevista à RTL, citada pelo Financial Times. Tradicionalmente, os banqueiros centrais medem cuidadosamente as palavras e tentam evitar fazer recomendações específicas a países. Mas a antiga líder do FMI não esteve com meias palavras. Isto numa fase em que o BCE já esgotou grande parte das soluções para espevitar a economia do euro.
Os que têm margem de manobra, que têm excedentes orçamentais, a Alemanha e a Holanda, por que não o utilizam para investir?
Nos últimos anos foi a política monetária, as medidas implementadas pelo BCE, a aguentar a economia da Zona Euro. Consequente com a promessa de que iria fazer o que fosse necessário para salvar a moeda única, Mario Draghi levou as taxas de juro para valores negativos e iniciou um programa alargado de compra de dívida pública, de empresas e de bancos no valor de 2,6 biliões de euros. Apesar de todos esses esforços, a economia não dá sinais de grande vigor e o BCE tem tido dificuldade em atingir a sua meta de ter a inflação perto mas abaixo de 2%.
Incentivar governos a investir
Já com poucas armas no arsenal, o BCE espera agora que chegue a cavalaria dos estímulos orçamentais decididos pelos estados da Zona Euro para atingir a meta da inflação e garantir a sustentabilidade da economia. E o perfil da nova presidente do banco central aparenta ser bastante adequado a fazer essa ponte entre a política monetária e orçamental.
“A experiência de Lagarde como ministra das Finanças de França e como líder do FMI traz uma perspetiva orçamental à política monetária, o que é particularmente oportuno. Na próxima recessão, o BCE será desafiado porque já utilizou quase todas as suas ferramentas”, indica Andrew Bosomworth, responsável de gestão de portfolios da Pimco, no site desta gestora.
A experiência de Lagarde como ministra das Finanças de França e como líder do FMI traz uma perspetiva orçamental à política monetária, o que é particularmente oportuno.
Há já bastante tempo que Mario Draghi pedia aos estados europeus que complementassem as condições de financiamento favoráveis criadas pelo BCE para aumentarem o investimento. “Com a política orçamental, o objetivo de política monetária será atingido mais cedo e com menos efeitos colaterais”, disse o antigo presidente do banco central na conferência de imprensa da última reunião da autoridade monetária.
“Persuadir os governos com margem orçamental para a utilizarem será provavelmente a missão mais importante de Christine Lagarde”, afirmou Nadia Gharbi, economista da Pictet Wealth Management, numa nota a investidores. E a nova presidente do banco central já provou que não tem receio em indicar esse caminho a esses países que, curiosamente, são também os que mais se têm oposto à direção das políticas defendidas por Draghi nos últimos tempos. No caso da Alemanha, o governo tem também resistido a lançar grandes programas de investimento apesar da economia estar à beira da recessão. O próprio Bundesbank defende que não há motivos para esse tipo de estímulos.
Persuadir os governos com margem orçamental para a utilizarem será provavelmente a missão mais importante de Christine Lagarde.
Os economistas preveem, assim, que Lagarde continue a apoiar programas de compras de ativos e juros negativos para garantir condições de financiamento favoráveis aos estados para que estes depois possam fazer a sua parte na vertente de estímulos orçamentais. “Através das compras de ativos, os custos de financiamento para os soberanos caíram para mínimos históricos”, observa Nadia Gharbi. Afirma que “a diferença entre o crescimento nominal do PIB e a taxa média das obrigações é positiva na maior parte dos países, o que sugere que os governos podem ter défices primários e ainda assim conseguir reduzir o rácio de endividamento ao longo do tempo”.
A apologia dos juros negativos
Os governadores dos bancos centrais da Alemanha e da Holanda mostraram publicamente a discordância com as medidas anunciadas em setembro, em que o BCE reiniciou as compras líquidas de dívida e cortou uma das taxas de juro para valores ainda mais negativos. Apesar de ser frequente existirem divergências no seio do Conselho de Governadores, já não é tão comum que esses diferendos sejam discutidos na praça pública.
Neste diferendo, Lagarde tem indicado apoiar o rumo delineado por Mario Draghi de juros negativos e compras de dívida que o BCE diz ter ajudado a criar 11 milhões de postos de trabalho na Zona Euro. Questionada na entrevista da RTL sobre o problema que as taxas abaixo de 0% causa para quem quer poupar, a antiga ministra francesa respondeu que o emprego é uma prioridade maior que a taxa de poupança: “Não estaríamos atualmente numa situação com muito mais desemprego e uma taxa de crescimento bem mais baixa se não tivéssemos feito o mais correto e agido sobretudo a favor do emprego e do crescimento em vez da proteção dos aforradores?”.
Não estaríamos numa situação com muito mais desemprego e uma taxa de crescimento bem mais baixa se não tivéssemos feito o mais correto e agido sobretudo a favor do emprego e do crescimento em vez da proteção dos aforradores?
Uma perspetiva discutível em países com maiores taxas de poupança das famílias, como a Alemanha. Houve mesmo um jornal tabloide germânico que comparou recentemente Draghi ao conde Drácula, acusando-o de sugar a poupança das famílias. Já para quem tem créditos a taxa variável, a continuação desta política de juros negativos permite o alívio no valor das prestações dos empréstimos. Uma ajuda ao consumo por parte das famílias e ao investimento no caso das empresas.