A primeira imagem que se tem ao chegar ao lugar da Vista Alegre, em Ílhavo, não é a da porcelana da histórica marca portuguesa, com quase dois séculos de vida. Nem sequer é a sensação do calor extremo que emana dos fornos, de onde saem peças que chegam a algumas das mesas mais ilustres, da Casa Branca a casas reais e a embaixadas de todo o mundo. A primeira imagem que se tem é a dos andaimes, das máquinas em trabalho incessante, do frenesim dos operários, do pó que se cola a tudo. É a imagem da zona envolvente da fábrica, transformada num estaleiro de obras.
“Isto agora está um pouco caótico, mas em breve vai nascer aqui algo extraordinário”, antecipa Nuno Barra, diretor de Marketing e de Design Externo do Grupo Vista Alegre Atlantis (VAA), nascido em 2001 da fusão das porcelanas Vista Alegre com os cristais Atlantis e adquirido em 2009 pelo Grupo Visabeira.
Barra fala do novo complexo turístico e cultural que vai surgir junto à fábrica, fundada em 1824 por José Ferreira Pinto Basto, nas margens da ria de Aveiro, num projeto revolucionário para a época, que incluía casas para alojar os operários, creche, teatro e outras instalações de apoio. Agora, a empresa tenta recuperar esse espírito inovador, criando um conceito turístico com forte ligação à fábrica, num investimento estimado em 20 milhões de euros.
A peça chave deste projeto é o Montebelo Vista Alegre Ílhavo, um hotel de cinco estrelas que resulta da reabilitação do antigo palácio da família Pinto Basto, no terreiro da fábrica, e da construção de um novo edifício de linhas modernas, virado para a ria – não lhe faltará um cais para passeios de barco. Com inauguração prevista para outubro, terá 83 novos quartos, 73 dos quais na nova ala, e representa a maior fatia do investimento: 12 milhões de euros.
“Mais do que um espaço para dormir, queremos que este seja um hotel para as pessoas viverem a experiência Vista Alegre”, explica à EXAME Frederico Costa, presidente da Visabeira Turismo. “O hotel vai estar muito ligado à fábrica e ao lugar, vai respirar-se muito a história e o trabalho da Vista Alegre, mas, mais do que uma experiência decorativa, queremos que seja uma experiência participativa, ligada a todo o complexo. As pessoas vão poder, por exemplo, fazer as suas próprias peças ou participar em workshops.” Será o primeiro hotel Vista Alegre do grupo com sede em Viseu, mas em Lisboa poderá nascer outro, com construção prevista a partir do próximo ano. “Será um hotel Vista Alegre ou um Bordallo Pinheiro [outra marca histórica adquirida pela Visabeira em 2009], mas ainda não está definido”, refere Frederico Costa.
O projeto, porém, não se esgota na unidade hoteleira, que será apenas uma das peças do renovado puzzle montado no lugar da Vista Alegre. Vai ter todas as componentes do bairro operário, incluindo a Capela de Nossa Senhora da Penha de França, do século XVII, classificada como Monumento Nacional, os jardins, o teatro (onde será instalado um laboratório de produção cultural multimédia) e o museu. Este último, que ficará ligado ao hotel, está a ser ampliado e melhorado, com uma profunda reorganização do acervo através de uma parceria com o Museu Nacional de Arte Antiga. A zona terá ainda lojas, residências de design e espaços para workshops didáticos em várias áreas criativas.
Regresso ao futuro
A imagem do complexo da Vista Alegre transformado num estaleiro de obras é a metáfora perfeita de uma casa quase bicentenária que aceitou fazer um facelift para se manter jovem e moderna. Em 2009, quando o Grupo Visabeira (com negócios que vão da construção e do imobiliário ao turismo) assumiu o controlo da VAA, já então a maior do sector na Península Ibérica, a casa estava em ruínas e quase a desabar: havia produtos Vista Alegre nas prateleiras dos supermercados e máquinas Nespresso nas lojas da marca, os prejuízos tinham atingido 18 milhões de euros e a empresa estava à beira da insolvência, quase sem fundos para cumprir os seus compromissos. O futuro fazia temer o pior. “Percebeu-se que 2009 era um ano limite para a empresa. A marca tinha um potencial grande, mas tinha também alguns problemas gritantes. Era, por exemplo, muito fechada, demasiado conservadora, demasiado clássica. Tinha-se afastado das tendências do mercado, estava excessivamente parada no tempo”, recorda Barra.
Para reerguer a empresa foi preciso começar não pelo telhado, mas pela base, pela imagem da marca. Se a Vista Alegre queria ter futuro, tinha que conquistar o público do futuro. Não podia continuar a ser uma marca dos pais e dos avós, a ganhar pó nos armários lá de casa e que as gerações mais jovens receberiam um dia em herança. Tinha que se reinventar. Rejuvenescer.
“Se queríamos sobreviver, tínhamos que nos modernizar. Isso passava por manter a nossa raiz clássica, mas criando também produtos mais contemporâneos, que acompanhassem as tendências do mercado”, afirma o diretor de Marketing e de Design Externo do grupo. A reinvenção da marca fez-se através da associação a alguns dos melhores criadores nacionais e internacionais em diversas áreas. A parceria mais mediática e bem sucedida foi com a marca de alta costura Christian Lacroix. Iniciada em 2013, permitiu à Vista Alegre estar num dos três principais centros mundiais onde se definem as tendências (Paris) e saltar etapas de criação de notoriedade em alguns mercados, da Europa aos Estados Unidos e ao Médio Oriente.
“A Christian Lacroix é uma marca que tem muito a ver connosco. Tem um elemento de contemporaneidade com alguma irreverência, mas com uma forte ligação ao clássico”, refere Nuno Barra. Foi Sam Baron, designer que é responsável pelo Departamento de Design da fábrica, o centro de comunicação e pesquisa da Benetton, e que também tem colaborado com a Vista Alegre, quem apresentou o responsável da Vista Alegre a Sacha Walckhoff, diretor criativo da Christian Lacroix. As negociações foram longas e difíceis, mas Walckhoff acabou por se entusiasmar com o projeto. “Gosto desta ideia de colaboração entre duas grandes casas europeias”, revela à EXAME. “Com o Nicolas Topiol, CEO da Christian Lacroix, acreditámos que as competências e o conhecimento histórico da Vista Alegre casavam perfeitamente com a Christian Lacroix e trabalhámos com muita facilidade na primeira coleção, que se tornou rapidamente um êxito em todo o mundo. Agora, todos os anos lançamos uma coleção em conjunto.” O diretor criativo da casa francesa não esconde a sua admiração pela marca de Ílhavo. “É uma empresa moderna que ainda está ligada ao seu passado e com uma extraordinária habilidade. Aos meus olhos, isso é algo precioso.”
A mais recente colaboração entre as duas marcas é a coleção Caribe, que apresenta peças de exuberância tropical, com flores, penas, samambaias e libelinhas dispostas ao estilo de um herbário barroco e frisos ao estilo dos bordados ingleses que adornavam as saias das mulheres de Salvador da Baía. Os preços das peças variam entre €29 e €235.
A parceria correu tão bem – no seu conjunto, as peças Christian Lacroix, de mesa e de decoração, são as mais vendidas da Vista Alegre – que este ano a marca portuguesa decidiu fazer uma parceria com outra casa de alta costura, a Oscar de La Renta, sediada em Nova Iorque. A aposta permite-lhe marcar presença noutro centro de decisão de tendências (Nova Iorque) e reforçar a sua presença no mercado americano. “É um mercado muito importante para nós, onde queremos crescer, por isso fazia todo o sentido esta ligação. A moda contagia tudo o resto. E se vou a uma feira e me inspiro para fazer uma coleção, quando esta chegar ao mercado já vou um ano atrasado. Só estando nos centros onde se decidem as tendências podemos estar na vanguarda.”
O primeiro produto desta parceria, que chegou às lojas em maio, é a coleção Coralina, totalmente em cor coral, que inclui motivos florais inspirados num vestido criado para a revista Vogue em 2006, e destaca-se pelas cores quentes e vibrantes características da Casa Oscar de La Renta. A coleção inclui uma gama completa de mesa, com serviços de chá e de café, com preços que variam entre €10,5 (prato de doce) e €145 (terrina).
Dos livros e dos quadros para a mesa
As colaborações da marca não passam, porém, apenas pelos designers. Há coleções com participação de autores consagrados de inúmeras outras artes, da escultura à pintura, arquitetura e literatura. Incluem nomes como Joana Vasconcelos, Cruzeiro Seixas, José de Guimarães, Siza Vieira, Valter Hugo Mãe, Graça Morais, Malangatana, Sempé e muitos outros.
As coleções 1+1=1, por exemplo, unem o trabalho de autores consagrados em várias áreas criativas, com edições limitadas de mil exemplares (um dos exemplos é a jarra A Viagem do Elefante, que reinterpreta a obra de Saramago, criada por David Almeida, amigo e colaborador do escritor), as 2i são assinadas por ilustradores conceituados, numa parceria entre a Vista Alegre e a Ilustrarte – Bienal Internacional de Ilustração e o Projeto Artistas Contemporâneos, lançado em 2008, é uma coleção premium que prevê o lançamento de quatro edições anuais, limitadas e numeradas, concebidas por diversos artistas ligados às artes plásticas e gráficas, entre os quais Eduardo Nery, Manuel João Vieira, Nadir Afonso, Roberto Chichorro, entre outros. As colaborações estendem-se também à hotelaria, onde a Vista Alegre tem uma presença notória em alguns dos mais importantes hotéis e restaurantes do mundo, tendo a marca convidado chefs nacionais e estrangeiros a desenvolver peças para a sua Chef’s Collection.
Ainda este ano, a marca – que está a preparar a primeira coleção com o designer holandês Marcel Wanders – irá revelar o resultado da colaboração com a fadista Mariza, mas escusou-se a revelar mais pormenores. Certo é que a aposta no design contemporâneo é para continuar.
Inovar para sobreviver
“Sempre tivemos uma presença clássica muito sólida, que não abandonamos, mas a nossa grande aposta tem sido o produto contemporâneo, sobretudo para recuperar o tempo perdido”, refere Nuno Barra. Uma das consequências da nova estratégia foi a junção do marketing e do design externo (as colaborações com artistas) sob a mesma alçada. “Isto permite que o marketing identifique as necessidades e as trabalhe diretamente com o design. Depois, os artistas trazem não só o nome e o know-how deles, mas também uma visão contemporânea da porcelana.”
Inovar constantemente é a única hipótese de a marca se diferenciar num mercado muito concorrido. “Nas feiras internacionais deste sector há centenas de marcas; então temos que fazer produtos que nos diferenciem. Todos os anos trazemos algo de novo para o mercado. Já começamos a ser vistos como uma empresa que apresenta produtos muito relevantes e muito inovadores ao nível do design.”
Esta aposta, fundamental para a revitalização da marca, tem-lhe valido o reconhecimento em alguns dos mais importantes prémios de design internacionais. Este ano, o serviço Orquestra e a coleção Plissé receberam um Red Dot Award cada, o mais importante prémio de design internacional, que comemorou este ano a sua 60.ª edição. O Orquestra foi também distinguido pela prestigiada revista Wallpaper, na categoria Best Coffee and Cake. O serviço foi criado pelos designers David Raffoul e Nicolas Moussallem, aquando da sua passagem pela fábrica de talentos da marca portuguesa, a ID Pool, uma residência artística nas casas do bairro da Vista Alegre onde já estiveram mais de meia centena de designers nacionais e estrangeiros. Ali permanecem durante um a três meses, com o objetivo de dar asas à imaginação e propor produtos originais inovadores.
Em alguns casos com grande sucesso: foi na ID Pool que o conceituado designer brasileiro Brunno Jahara criou, em 2013, o serviço Transatlântica, que é o mais vendido da Vista Alegre. O objetivo, porém, não é apenas o lançamento de novos produtos, assegura Nuno Barra. “Em primeiro lugar, o que quisemos foi trazer sangue novo para a fábrica. Além disso, permite-nos a partilha de know-how. Alguns deles têm ideias bem originais de aplicação da própria porcelana.”
À procura de novos mercados
Mais importante do que os prémios, a aposta no design tem-se traduzido em vendas: as peças contemporâneas já ultrapassam as clássicas em faturação. E tem permitido ao grupo reforçar a sua ambição de levar a marca a novas geografias. O grupo tem atualmente quatro filiais no exterior (VA Espanha, VA Brasil, VA EUA e VA Moçambique) e exporta os seus produtos para mais de 50 países. As vendas para os mercados internacionais, que em 2009 ainda eram minoritárias (46,5%), já representam a maior fatia do negócio. Em 2014, 62% dos mais de 65 milhões de euros de vendas foram para o estrangeiro. A percentagem cresceu ainda mais no primeiro trimestre deste ano: 74%.
Espanha, onde a marca tem duas lojas próprias e está presente em 44 espaços El Corte Inglés, é o principal mercado externo: garante 12% da faturação do grupo. Seguem-se os mercados alemão (11%), holandês (6,5%) e francês (6,4%), para onde a VAA vende sobretudo cristal Atlantis. Só depois vêm o Brasil e os EUA, duas grandes apostas para o crescimento do grupo.
Depois de, em dezembro, ter inaugurado um espaço em São Paulo, na Haddock Lobo, onde estão as principais marcas internacionais de luxo, a marca investiu este ano um milhão de euros na abertura de duas novas lojas em Espanha (Madrid e Barcelona). O plano de expansão internacional prevê a abertura de mais lojas em Espanha e também noutras cidades brasileiras. A próxima deverá ser no Rio de Janeiro. “Será uma questão de tempo, de encontrar um espaço que encaixe no posicionamento da marca”, revela Nuno Barra.
Além de Espanha e Brasil, o grupo tem duas lojas em Maputo e um showroom permanente em Nova Iorque e ainda lojas franchisadas em Angola, China, Bielorrússia, Namíbia, Tunísia, México e Emirados Árabes Unidos. O seu crescimento passa também pela Internet, onde o volume de negócios “tem vindo a crescer gradualmente”. A loja online para Portugal foi lançada há ano e meio e já supera em vendas algumas das lojas físicas. Depois, foi criada uma para Espanha, outra para a UE e uma para o resto do mundo. Ainda este ano surgirá uma loja online para o mercado brasileiro e outra para os EUA.
Juntar-se-ão 30 lojas físicas (cinco das quais em espaços outlet), que já existem em Portugal e que foram alvo de um profundo processo de renovação desde que a Visabeira assumiu o controlo do grupo. “A rede de lojas estava completamente desfasada do comportamento dos consumidores atuais. Pareciam ourivesarias, as pessoas tinham medo de entrar”, lembra Barra. Não houve outra alternativa senão reequacionar tudo. “Tivemos que pensar, caso a caso, a localização e a dimensão das lojas e depois definir um layout que fosse mais consentâneo com o posicionamento da marca e com as novas tendências do retalho. Hoje, os clientes podem ver e sentir o produto, não é aquela coisa do ‘olhe, desculpe, pode mostrar-me aquela peça que está ali em cima, no terceiro andar?’.”
Os clientes da Vista Alegre
E quem são, afinal, os clientes Vista Alegre? O diretor de Marketing e Design Externo admite que o perfil médio é o de um cliente “de classe média/alta, com habilitações académicas e rendimentos acima da média”, mas rejeita que a marca seja cara e elitista. “Temos muitos clientes que não encaixam neste perfil, que vão comprar presentes para oferecer a um familiar ou a um amigo, como sempre aconteceu.”
O responsável lembra que na sua génese a Vista Alegre não foi criada como uma marca elitista, antes como uma marca que todas as pessoas podiam ter em casa. “Se não fosse assim, seria uma marca de nicho. Ao invés, é uma marca transversal na sociedade portuguesa.” Entre pratos a €6 e a €150, há uma vasta gama de produtos a diferentes preços. “Um dos nossos serviços mais vendidos, o Sagres, que tem já 80 anos, totalmente branco, só com relevo, pode ser comprado por qualquer pessoa. Não é, por exemplo, uma Baccarat [marca francesa de cristal de luxo], onde um copo custa €80.”
Apesar do posicionamento da Vista Alegre como produto premium de prestígio, o Grupo VAA tem duas outras marcas: a Casa Alegre, para um segmento médio do mercado “mais jovem e casual”, e a Ema, “uma marca de supermercado, mais acessível”. Recentemente, em parceria com a Ikea, constituiu uma nova empresa, a Ria Stone, para produzir loiça de mesa em grés para o gigante sueco, mas sem o selo Vista Alegre.
Para perceber a revolução operada na VAA desde que o Grupo Visabeira assumiu o controlo é preciso olhar os números: conseguiu aumentar a faturação (de 54 milhões de euros em 2009 para 65 milhões em 2014), reduzir prejuízos (de 18 milhões de euros para 1,9 milhões), vender mais peças (de 19 milhões para 24 milhões) e até empregar mais pessoas (1667 em 2009, 1683 atualmente). A evolução dos números mostra que a estratégia definida começa a dar frutos, mas o trabalho ainda não está concluído. Falta vencer um desafio: o do equilíbrio financeiro. Só nos dois últimos anos a empresa investiu quase 40 milhões de euros para se renovar e se expandir internacionalmente, o que, naturalmente, prejudicou os resultados. Mas Nuno Barra espera que em breve as sementes possam começar a dar frutos. “Sabemos que ainda vamos passar por um período a perder dinheiro para depois colhermos os frutos. Sem investimentos a empresa não poderia crescer e estar em novos mercados. Fazendo estes investimentos, há uma fase em que vai ser difícil, mas esperamos em breve, com o crescimento de alguns mercados, chegar aos lucros.” Algo que só aconteceu uma vez desde 2009: em 2011, o grupo lucrou nove mil euros, mas também investiu 10 vezes menos do que em 2013, por exemplo.
A ambição do Grupo Vista Alegre não é curta, garante Nuno Barra. “O caminho que estamos a trilhar tem um objetivo: sermos a referência a nível mundial em todas as áreas da porcelana, na mesa, na decoração e na hotelaria.”
Este artigo é parte integrante da edição de agosto de 2015 da Revista EXAME