Cem por cento natural, a cortiça parece imparável nas suas investidas por terra, mar e ar. Absorve derrames de petróleo, serve para construir paredes e tetos, instrumentos musicais, sapatos, malas, joias, canas de pesca e guarda-chuvas. Está no interior das pás eólicas, vai ao espaço, anda de automóvel e de metro, ganha medalhas olímpicas em provas de caiaque, conquista designers e arquitetos em todo o mundo. Versátil e leve, saltou do mundo do vinho para se revelar uma das matérias-primas de eleição do século XXI.
Na última década, o setor investiu 500 milhões de euros em tecnologia, investigação e desenvolvimento, com o objetivo de recuperar qualidade, prestígio na rolha, mas também de analisar a matéria–prima ao microscópio, potenciar algumas das suas características, encontrar novas aplicações, da indústria farmacêutica à biocosmética.
Um dos triunfos recentes, já patenteado, permite à cortiça render mais 40% a 80% com a ajuda de radiações de micro-ondas. O trabalho de magia molecular desenvolvido no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, finalista do Prémio Inventor do Ano da Agência Europeia de Patentes, na categoria Indústria, em 2013, torna literalmente possível o milagre da multiplicação da cortiça, mantendo todas as suas propriedades. “Atendendo aos custos da matériaprima e ao facto de ela ser finita, este é um processo que pode ter grande impacto na indústria, com a vantagem de permitir aumentar o volume do granulado de cortiça de maneira limpa”, explica Helena Pereira, investigadora responsável por este projeto, desenvolvido a partir de um convite direto da Corticeira Amorim.
No grupo líder mundial no setor da cortiça a aposta na inovação traduz-se num investimento de seis milhões de euros por ano. Nas vendas de 542,5 milhões de euros, a quota das rolhas é de 59,5%, aproximadamente o dobro do valor relativo a revestimentos, isolamentos e aglomerados compósitos. No conjunto, o contributo direto de novas aplicações parece ainda residual, limitado a 15 milhões de euros. “Mas são 15 milhões faturados em coisas que não fazíamos há quatro anos e que queremos transformar em 25 milhões dentro de dois anos”, refere o presidente da Corticeira Amorim, António Rios Amorim.
Se o papel de um líder é “apontar o caminho e tentar contagiar um pouco os outros com a nossa visão de negócio, arriscar”, como diz o gestor, o futuro, pelo menos na versão da Corticeira Amorim, passa por “reafirmar a matéria-prima como material de excelência, melhorar a sua performance em aplicações tradicionais, sendo simultaneamente ousado na busca de novas aplicações”.
O resultado, traduzido nas 42 patentes submetidas a registo entre 2007 e 2013, é visível em soluções como a Helix, capaz de oferecer ao mercado uma rolha ergonómica e reutilizável através de um sistema de abertura rápida que permite esquecer o saca-rolhas. Ou também no CorkSorb, pronto a ajudar a controlar derrames como o que atingiu o Golfo do México em 2010, Prémio Inovação Cotec-Unicer (2012), capaz de aproveitar as características inatas da cortiça para oferecer uma capacidade de absorção de óleos no chão de uma oficina ou no mar nove vezes superior aos produtos tradicionais.
No currículo recente da Corticeira há outras distinções a premiar a inovação e a sustentabilidade. O aglomerado de cortiça expandida da sua subsidiária Amorim Isolamentos foi considerado um dos 10 produtos mais ecológicos e sustentáveis para a área da construção, integrando o Top-10 Product for 2013, da Building Green, uma publicação do maior diretório norte–americano de produtos para a construção sustentável. A gama de subpavimentos AcoustiCork, da Amorim Cork Composites, obteve a classificação A+ do Building Research Establishment, de Londres. A própria Corticeira foi distinguida como uma das 10 empresas mais inovadoras da Europa, recebendo o estatuto de Ruban d´ Honneur dos European Business Awards de 2012-2013.
Cortiça vai aterrar em Marte com a NASA
“A cortiça usufrui hoje de uma notoriedade internacional até aqui nunca vista”, comenta António Rios Amorim, que está decidido a ter um papel proativo na reinvenção da cortiça, para dar cada vez mais valor acrescentado a esta matéria-prima.
Aterrar em Marte é apenas mais uma missão ao alcance do grupo português e que pode ajudar a cumprir esse objetivo de valorização do produto. A excelente performance da cortiça a altas temperaturas levou a NASA a interessar-se por este material nos anos 60, usando-o na proteção térmica dos Space Shuttle e mísseis. Na altura, foi a NASA que descobriu a cortiça e o grupo Amorim.
“Percebeu que a matéria-prima tinha propriedades únicas e contactou-nos porque éramos os maiores do mundo. Ganhamos novas competências, mais capacidade, trunfos críticos ao esforço da inovação. Percebemos que devíamos ser nós a avançar por este caminho”, resume o gestor, agora a trabalhar em projetos com a Embraer, a Siemens, a Volkswagen, a Alstom, a BMW e a Caetano Bus.
Um dos próximos passos será dado com a Agência Espacial Europeia, e promete simplificar a reentrada das cápsulas espaciais na Terra. O nome de código deste projeto é cTPS e é dedicado ao desenvolvimento e teste funcional de um sistema de proteção inovador, com funções estruturais e térmicas. O segredo está num inovador material compósito com cortiça, nas mãos de um consórcio português constituído pela Amorim Cork Composites, a Critica Materials, o Polo de Inovação em Engenharia de Polímeros e o Instituto de Soldadura e Qualidade.
Em terra, os transportes são “uma das áreas de negócio mais promissoras”, diz António Rios Amorim. Nos automóveis, as transmissões, juntas e válvulas já incorporam cortiça, mas há muito mais terreno a conquistar por esta matéria-prima leve, com características especiais e garantias de isolamento térmico, acústico e antivibrático, à medida do desafio de reduzir o peso dos veículos, aumentar a sua eficiência, reduzir consumos.
Rendida aos argumentos da acústica e da estética, a Mercedes decorou o interior do modelo F700 a cortiça, e no portefólio da Corticeira há vários projetos nesta área, dos componentes para autocarros e automóveis ao desenvolvimento de sistemas acústicos e térmicos para a aeronáutica, ou à redução da vibração e da poluição sonora nas linhas de caminhos de ferro.
Setor
NÚMEROS DA CORTIÇA
Valor das exportações
835 milhões de euros, menos 1% do que em 2012, após três anos a crescer, em média, 7%. A queda reflete a desvalorização do dólar, a quebra na construção e a mais baixa colheita vinícola em 2012. No total, o setor vale 2% das exportações nacionais
Principais produtos exportados:
Rolhas 68,4%
Materiais de construção 27,5%
Outros 4,1%
Investimento em marketing
34 milhões de euros entre 1999 e 2011, mais 7,3 milhões em 2013-2014
Investimento em I&D
500 milhões de euros na última década
N.º de empresas
637
N.º de trabalhadores
8591
Universo empresarial
50% das empresas têm até 5 trabalhadores e 70% têm até 10 trabalhadores
Fonte
APCOR
Quatro perguntas a João Rui Ferreira
Presidente da APCOR – Associação Portuguesa da Cortiça diz que o setor “tem de ganhar escala”
P A cortiça está “in”?
R É impressionante a quantidade de novas aplicações que surgiram nos últimos três anos. Temos um produto que faz parte do futuro, encaixa no modelo de desenvolvimento sustentável, responde bem em termos de performance, economia e ambiente.
P Quais as áreas com mais potencial?
R O peso da rolha nas exportações situa-se em 70%, continuando a ser um segmento prioritário. Mas uma das áreas com maior crescimento será a da cortiça invisível, como acontece nas bicicletas desportivas de topo e nas melhores canas de pesca do mundo. E temos as composições com outros materiais, mix de produtos como a cortiça/betão.
P Quais os maiores desafios?
R Temos de dar prioridade à inovação sem baixar a guarda na qualidade. É importante ganhar escala nas novas aplicações, apanhar o comboio da arquitetura, do design, da engenharia, ser proativo nos transportes, entrar nos centros de cultura. Para a Alemanha, por exemplo, já exportamos mais cortiça em materiais de construção do que em rolhas.
P como vê o futuro das empresas do setor?
R Temos um universo empresarial suportado por pequenas empresas. Metade tem cinco trabalhadores ou menos e 70% têm até 10 trabalhadores. A subcontratação é uma realidade que irá crescer. Devemos assistir à evolução de parcerias e até a casos de consolidação entre empresas para ganharem dimensão e massa crítica: fazer inovação quando se tem um volume de negócios de cinco milhões de euros é difícil.
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