Elisa Ferreira é uma das vozes portuguesas mais ativas no Parlamento Europeu. Membro da Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários do Parlamento e coordenadora dos socialistas europeus o segundo maior grupo político tem estado no centro da discussão sobre a resolução da crise financeira, primeiro, e da crise da dívida soberana europeia, depois. Muito crítica do modo de funcionamento da Troika e da dose de austeridade imposta aos países intervencionados, são já famosas as suas interpelações a Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu, a Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, ou a Jean-Claude Juncker, quando este liderava o Eurogrupo. Em conversa com a Exame, que decorreu na Fundação Serralves, de que é administradora, no “seu” Porto, Elisa Ferreira analisa a situação europeia e portuguesa e não tem dúvidas que “muitos dos problemas nacionais se definem a nível europeu”. Portanto, “interferir nessa agenda, utilizando toda a minha capacidade, é um serviço público que tenho muito prazer em fazer”.
Como viu o acordo alcançado para o envelope financeiro da União Europeia (UE) entre 2013 e 2020?
Com muita apreensão. A Europa ainda não tirou todas as lições da crise. Uma delas é que não é possível viver com um orçamento de 1% do PIB. Só em meios financeiros postos à disposição da salvação do sector financeiro, a crise envolveu 26% do PIB da União. Como é que se consegue funcionar assim, com uma moeda única, com países tão diferentes, num período em que era preciso algum mecanismo europeu anticíclico, de relançamento da economia? Esta análise de fundo não está a ser feita e é urgente. Quanto ao pré-acordo obtido no Conselho, o Parlamento Europeu acaba de o rejeitar “na atual forma”, através de uma maioria robusta. Não espero grandes alterações no volume financeiro global, mas o Parlamento vai utilizar todo o poder de que dispõe para introduzir alterações e melhorias na versão do Conselho.
Mecanismo que continua a não existir.
Continua a não existir. E, numa altura em que todos os orçamentos nacionais estão numa lógica de contenção, a Europa precisa de um instrumento financeiro que compense essa austeridade. Mas, é nesta altura que se decide que 1% do PIB, que já era escassíssimo, ainda será mais esmagado. O Parlamento Europeu tem sido muito crítico. Na altura da crise financeira, em 2008, fui autora de um relatório do Parlamento sobre o relançamento económico e um dos elementos críticos que identifiquei foi a ausência de meios financeiros europeus para gerir a saída da crise. O relançamento foi basicamente feito com esforços nacionais. Quem tinha condições para o fazer, fê-lo, e quem não tinha agravou o seu endividamento e as coisas estão como se sabe. E até agora continua a não haver qualquer instrumento efetivo de relançamento da economia europeia. Outra dimensão importante de saída da crise é a governação económica. Fui relatora de um diploma e co-relatora de outro no pacote legislativo Six Pack (destinado a reforçar a governação económica na UE) e que, em conjunto com o Two Pack (que acaba de ser aprovado), atualiza e reforça o Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Mecanismos centrados na austeridade.
Sim, na austeridade e na consolidação das contas públicas e, a meu ver, com grande fragilidade ao nível do crescimento. Sem essa componente, a contenção das contas públicas será difícil de atingir e não será sustentável a prazo. Sem crescimento, entramos num ciclo vicioso de austeridade, desemprego e recessão do qual é dificílimo sair. Já na supervisão e regulação dos mercados financeiros, a Europa avançou com iniciativas interessantes, como as autoridades europeias de supervisão, nova legislação e reforço dos capitais da banca, culminando na decisão de ser o Banco Central Europeu a supervisionar os bancos.
Na UE, países como a Alemanha têm elevados superávites externos, e outros, como Portugal, tradicionalmente têm grandes défices. E não há mecanismos de correção.
Nenhum. Isso tem de ser visto com muita atenção. Com o Six Pack temos um instrumento de análise dos desequilíbrios macroeconómicos que abrange pela primeira vez esta dimensão. Deu-me muito prazer ser relatora desse texto legislativo. Foi um dos grandes combates que travei. Com esse instrumento há pelo menos a esperança de começarmos a olhar para a acumulação de desequilíbrios dentro da UE. Um país com défices, como Portugal, é forçado a uma desvalorização interna (salários e preços), mas um país com excedentes, como a Alemanha, teria de a estimular e servir de motor ao relançamento europeu. Até agora, o ónus caiu para o lado mais frágil.
Há uma atitude penalizadora na Europa em relação aos países deficitários?
Esse foi um dos problemas mais graves desta crise: saímos de uma dimensão de economistas, reconhecendo que a zona euro não era uma área monetária ótima e que era preciso procurar soluções para que funcionasse, e passámos a ler o projeto de forma moralista, acusando uns de preguiçosos e perdulários, endividando-se, por contraste com outros, que são trabalhadores e sensatos. Isto é uma leitura pouco honesta intelectualmente do que se passou na Europa. Agora, começamos a ter alguma esperança de que este debate se possa fazer, já que depois da Grécia os problemas alargaram-se à Irlanda e a Portugal e contagiaram a Espanha, a Itália e a própria França. Isso fez soar as campainhas e levou a que esse simplismo pseudo-moralista recuasse.
O problema é político?
Sim. Os desequilíbrios internos na União estiveram sempre a agravar-se desde o início do euro. E o alargamento da UE a mais doze países e a afirmação total do processo de globalização agudizaram estas tensões. Houve ainda alterações institucionais no seio da UE. O Tratado de Lisboa veio reforçar substancialmente o papel do Conselho e do Parlamento, e, na prática, a Comissão ficou muito mais apagada. Alterações que se acentuaram com a crise. A crise trouxe um quase desaparecimento do método comunitário, baseado no papel da Comissão, dando muito mais poder ao Conselho dos chefes de Estado e de Governo.
Já o Parlamento Europeu tem vindo a afirmar-se de forma crescente.
O Parlamento já tinha um poder reconhecido no caso do orçamento comunitário, podendo rejeitá-lo, mas com o Tratado de Lisboa ganhou poder de decisão, como colegislador, numa série de matérias.
O Parlamento agarrou com as duas mãos esse reforço de poderes.
O Parlamento esgota-os e ultrapassa-os de vez em quando! Os cidadãos têm de sentir que o processo que decorre nesta altura na Europa não é um processo que paira sobre eles. Nós, deputados europeus, temos de utilizar até ao limite os poderes que nos foram atribuidos, e estamos a fazê-lo.
A Alemanha tem surgido, pelo menos perante a opinião pública, como força de bloqueio na resposta europeia à crise. Sente isso no Parlamento Europeu?
Sentimos. A Alemanha não tem tido consciência suficiente do enorme reforço do seu papel enquanto líder da Europa. Os seus interesses nacionais são afirmados com tanta força que acabam por aumentar os desequilíbrios internos na UE. Isto também se sente no Parlamento, embora consigamos, muitas vezes, fazer alianças com deputados de outros países com mais facilidade do que no Conselho. O Conselho parece ter perdido a capacidade de constituir redes eficazes de articulação interpaíses, mesmo entre os países da coesão.
Os interesses nacionais estão a sobrepor-se ao interesse europeu?
Claramente. Há uma mudança de cultura e de lógica e Portugal tem de mudar a sua maneira de pensar a Europa. Temos de estar muito mais atentos e ativos, e não apenas em matéria de fundos estruturais, onde tradicionalmente negociamos muito bem. Mas, temos no nosso código genético europeu uma certa abstinência e apatia perante todas as outras políticas, que são muito mais importantes na nossa vida do que os fundos estruturais.
Portugal é passivo na Europa?
É muito passivo. Há duas dimensões na nossa relação com a Europa que têm de ser muito reforçadas. Uma passa por muito maior ativismo e clareza em todas as políticas europeias para além dos fundos estruturais. E a outra, em relação a estes fundos, passa pela definição muito mais exigente de como os queremos aplicar. Negociámos os montantes com imenso empenho, mas a discussão sobre a sua aplicação é quase inexistente. Temos de ser acionistas da empresa UE e não bons alunos. Sou absolutamente contra a lógica do ‘bom aluno’. Temos de ser ativos e construtores da União. Temos condições para o fazer, mas há que melhorar muito a nossa organização interna e procurar alianças para defesa dos nossos interesses, evitando o conformismo de um empobrecimento permanente, consentido a troco de fundos estruturais. Seria bom que não precisássemos de fundos, seria sinal de que o nosso PIB tinha aumentado. Mas, não é isso que tem acontecido, pelo menos em boa parte do país. As regiões norte e centro ainda têm um PIB per capita próximo das mais pobres da Europa. É muito preocupante.
Tem sido muito crítica em relação à Troika, nomeadamente quanto ao seu modo de funcionamento.
As equipas da Troika entraram nos países num clima de tensão e com um poder que ultrapassa muito o estatuto das pessoas que as integram. O que tenho perguntado muitas vezes aos responsáveis máximos da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu (BCE) é quem controla as determinações e o poder desses técnicos que integram as equipas da Troika. Eles têm de responder perante alguém. E não fiquei elucidada. Há falta de transparência e de mecanismos de prestação de contas. Essas equipas parecem ter entrado pelos países sem mecanismos de controlo. Mas, estamos em democracia. É preciso que alguém assuma a responsabilidade de rever as medidas de política que não funcionaram. E, se em relação à Grécia, o argumento é de que a receita não funcionou porque os gregos não a seguiram e, ao contrário do que se disse, os gregos fizeram um esforço brutal, desencadeando uma recessão enorme, no caso português a receita foi implementada e seguida até à exaustão. Se o resultado a que se chega é diferente do esperado, alguma coisa correu mal e tem de ser analisada. Onde é que se faz essa análise? É essa a minha pergunta.
A receita seguida está errada?
Tenho tido inúmeras discussões com a Comissão e com o BCE argumentando que a dose de austeridade é tão excessiva que está a destruir a economia interna, desencadeando um processo de falências e de desemprego imparável. O desemprego já está acima dos 17%. E este é apenas o registado. Se somarmos os inativos e os que emigraram e emigraram os melhores e mais qualificados, os números serão ainda mais elevados. É gravíssimo. É preciso recalcular os multiplicadores, isto é, o impacto efetivo das medidas de austeridade, implícitos nos modelos, porque ele está a ser muito maior do que o esperado. O Fundo Monetário Internacional já o fez e a Comissão não pode recusar fazê-lo. No grupo socialista do Parlamento Europeu pedimos a três universidades que construíssem um modelo macroeconómico para a economia europeia, alternativo ao da Comissão, e a conclusão é de que os multiplicadores para Portugal e para a Grécia são da ordem de 1,5 a 2. E, nalguns sectores em Portugal, o multiplicador chega a ser 3. Ora, a Comissão está a trabalhar com multiplicadores entre 0,7 e 1,2. Acresce que, quando todos os países da União adotam políticas de austeridade, há um efeito de contaminação que tem de ser tomado em conta. Estas ideias vão fazendo o seu caminho, só que muito lentamente, porque a ideologia dominante continua baseada na penalização e no castigo. A Europa precisa de lucidez para revisitar as causas da crise sem dogmatismos e, no curto prazo, ter a coragem de rever as medidas de austeridade, ajustando as condições, a dimensão, o conteúdo e o calendário do esforço pedido aos países. De contrário, entramos numa espiral imparável de desemprego.
Como vê a atuação do Governo de Pedro Passos Coelho?
É um Governo que segue a Troika até à exaustão. O meu receio é que depois de tanto esforço não tenhamos feito as mudanças com impacto efetivo na competitividade e que tenhamos perdido a geração mais qualificada que alguma vez tivemos.
O Governo tem salientado que está muito condicionado pelo memorando assinado com a Troika pelo Governo socialista.
É evidente que todos os memorandos não foram assinados por duas partes com inteira liberdade. É como exigir uma confissão a alguém que está com a corda na garganta. Mas, os memorandos não são escritos em mármore. Aliás, o próprio Governo já alterou algumas dimensões. Reconhecendo as limitações do Governo, tem faltado a preocupação de ir questionando e corrigindo alguns dos exageros da receita. Pelo contrário, há uma crença, e diria quase uma fé, de que é pela via da austeridade que lá chegaremos. E aí temos uma discordância de partida. A economia real, que é fundamental para que haja sustentabilidade a prazo, também das contas públicas, está no limite da sobrevivência. É preciso, rapidamente, dar algum oxigénio à economia, porque corremos o risco de desestruturar completamente as bases de um relançamento futuro. Seria muito bom sentir que o Governo tem essa consciência, mas tenho a sensação de que não a tem.
Mas, o Governo aponta a queda dos juros associados à dívida portuguesa como um sinal de que o país está no caminho certo.
Mas não foi a intervenção da Troika que travou a especulação sobre a dívida soberana, mas sim a intervenção do BCE.
Com a liderança de Mario Draghi, o BCE passou a ter um papel muito mais ativo na gestão da crise, com resultados visíveis.
O discurso do Mario Draghi no último verão anunciando que o BCE estava preparado para intervir ilimitadamente para estabilizar as dívidas soberanas e preservar o euro foi um momento decisivo. Mas, provou também que a justificação da explosão do custo da dívida soberana não estava na fragilidade da economia, mas antes na especulação dos operadores financeiros.
Passou por Governos PS nos anos 90 e princípio deste século. Sente que tem uma quota-parte de responsabilidade na situação de crise a que Portugal chegou?
Acho que todos temos. Mas, respondo por aquilo que fiz. Acho que ficou um legado positivo no Ambiente e no Planeamento.
Olhando para trás, houve uma aposta excessiva em infraestruturas rodoviárias?
É evidente que utilizámos excessivamente os fundos estruturais para infraestruturas rodoviárias. Há uma máquina montada, muito oleada, que é difícil de parar.
Refere-se às empresas de construção?
Estou a falar das empresas, das assessorias, dos consultores. Há toda uma máquina. Continuámos a fazer estradas quase sem controlo e desguarnecemos imenso a ferrovia. Isso é lamentável. E ainda não passámos das infraestruturas básicas para as de nova geração, associadas a ciência, tecnologia e inovação. Outro problema nacional é a falta de memória, sobretudo quando mudam os Governos. Esta obsessão por reinventar tudo, em permanência e sem avaliação, é péssima. É preciso fazer debates sérios e assentar ideias.
Faz sentido retomar o projeto do comboio de alta velocidade? E o novo aeroporto?
Tenho muitas dúvidas sobre a necessidade e a viabilidade económica de outro aeroporto. Já o comboio de alta velocidade é estrategicamente importante quando a Espanha está coberta com comboios rápidos. Temos de fazer um estudo sério sobre a ligação ferroviária à Europa. E depois tomar uma decisão sustentável independentemente de os Governos mudarem. Parece que por fim (depois de hesitação, atrasos e perdas de fundos) assentámos na linha de mercadorias de Sines. Mas, já está lançado um novo projeto mal estudado e, a meu ver, ruinoso: o novo porto na Trafaria.
Este artigo é parte integrante da edição 348 da Revista EXAME