A carreira de 25 anos dedicados aos impostos inclui uma passagem pelo Governo como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. O novo desafio é ter escritório próprio em tempos de crise.
Criou uma “boutique” de business e tax e já exporta serviços para os países de língua portuguesa. Rogério M. Fernandes Ferreira apostou num escritório próprio, seguindo as pisadas do pai.
Decidiu deixar uma das maiores sociedades de advogados portuguesa e abrir um escritório próprio.
Porquê?
Vários fatores fizeram-me avançar para um projeto mais vocacionado para o business e tax. Do ponto de vista pessoal, dar continuidade ao projeto que marcou a minha entrada na atividade quando comecei a trabalhar de forma autónoma com o meu pai. Do ponto de vista profissional, fiz o balanço dos anos em que trabalhei como advogado, consultor e docente universitário e da minha experiência como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais – já do “lado”, portanto, da administração tributária -, e achei que se impunha um projeto novo com a singularidade deste, mais preparado para responder de forma eficiente e personalizada às questões nacionais e internacionais, que são cada vez mais complexas e especializadas.
Como está a evoluir a carteira de clientes da RFF?
Continuamos a servir os clientes que sempre nos acompanharam ao longo de uma carreira profissional que tem já 25 anos e, entretanto, alguns outros mais, mesmo colegas de profissão e outras sociedades de advogados que nos procuram no âmbito da área fiscal e empresarial e pelo tipo de serviços que prestamos, por não terem estas especialidades ou por necessitarem de trabalhos mais especializados e complexos.
Vai aumentar o número de advogados na RFF?
Sim, contamos crescer em número de advogados em 2013. Não queremos ser um escritório grande, mas um grande escritório. Não determinámos ainda o ponto de equilíbrio da nossa estrutura, estimo que ronde os 20 ou 25 advogados.
Como analisa o negócio da advocacia em Portugal?
A informação que existe sobre esta atividade profissional, por razões de sigilo, é relativamente opaca. Os escritórios de maior dimensão ressentem-se das despesas que não estão aptos a comprimir, mas conseguirão superar com mais ou menos dificuldades a crise que vivemos, essencialmente de liquidez, e estarão sujeitos a crises de crescimento e redução do volume e tipo de serviços prestados. Não há grandes operações, o mercado imobiliário é inexistente e há áreas de prática profissional quase sem atividade. Mas há outras em crescimento acentuado, como a laboral, a fiscal ou as insolvências, por exemplo. Os escritórios de menor dimensão e custos de estrutura reduzidos também sobreviverão sem dificuldades. Mas antecipo problemas bem sérios em práticas isoladas e nos escritórios de média dimensão, nomeadamente nos mais dependentes do direito público e do Estado. Estar “no meio” implica, aqui, desvantagens várias.
Como se enfrentam estes desafios?
Vai passar, numa conjuntura económica adversa, por novos padrões reputacionais e de exigência profissional. E a tendência vai continuar a ser a internacionalização dos serviços jurídicos, em especial para e dos países de língua portuguesa com os quais temos afinidades. As sociedades de advogados tenderão a posicionar-se em novos nichos de mercado, em áreas de prática novas e em novos tipos de indústria, nas áreas menos corporativas e societárias, por exemplo, a propriedade intelectual, o direito laboral, as insolvências e a recuperação de empresas, a internacionalização e a exportação de bens e serviços ou o direito e o contencioso fiscal, nacional, comunitário e internacional.
Tem aumentado, portanto, o trabalho na área fiscal?
Muito. O fisco está bem mais atuante, tem serviços e procedimentos informatizados, responde mais depressa, tem feito progressos notáveis desde há uns 15 anos, pelo que o contencioso tem aumentado bastante. Tem crescido muito também a consultoria fiscal internacional. Há interesses vários de estrangeiros em investirem nos países de língua portuguesa ou em viverem em Portugal após a aposentação. Além disso, há cada vez mais interessados na questão fiscal. A gestão e as sanções fiscais passaram a integrar o elenco das preocupações da generalidade das empresas e dos cidadãos contribuintes.
Quem são os clientes internacionais da RFF?
São empresas, pessoas individuais, associações, fundos, multinacionais, temos clientes nacionais e outros de diversos países europeus, sobretudo francófonos e anglo-saxónicos, mas também do Oriente, Médio Oriente e América Latina, com interesses na Europa e em países de língua portuguesa, bem como alguns colegas e sociedades de advogados estrangeiras. Este “quadrado”, Portugal, Brasil, Angola e Moçambique, com ligações a Macau e China, é uma boa oportunidade para os advogados portugueses.
Grandes grupos nacionais vão para países com uma fiscalidade mais favorável. Como analisa ?
Infelizmente, é um caminho inevitável, em plena concorrência internacional. Em primeiro lugar, por causa da situação económico-financeira de Portugal, que torna os financiamentos inexistentes, ou bem mais difíceis de obter do que noutros países, como a Holanda ou o Luxemburgo, que mantêm regimes fiscais e societários estáveis, promovendo extensas redes e mecanismos internacionais direcionados ao mundo globalizado. Em segundo lugar, por causa da necessidade de internacionalização e, depois, também por razões de segurança e a certeza dos impostos, que aqui não existe. O que vai muito além dos níveis da carga tributária.
O que deveria mudar no sistema fiscal português para ajudar a ultrapassar a crise?
Temos um sistema fiscal moderno, idêntico ao de outros países com os quais queremos ser comparados.
Temos impostos sobre o património, sobre a despesa, sobre o rendimento. Onde são as diferenças? Na instabilidade das regras fiscais, na distribuição das receitas da tributação direta e indireta. Isto torna o nosso sistema bem mais regressivo do que outros, pois quem tem menos contribui com mais. Falta enquadramento internacional adequado. Mas a via fiscal não é remédio sacrossanto de resolução dos problemas da competitividade da economia portuguesa. A grande mudança deverá centrar-se numa nova preocupação pelo enquadramento fiscal internacional e na certeza e maior simplicidade das regras fiscais, dando segurança aos investidores e aos contribuintes em geral.
O que pensa do aumento do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI).
A receita do IMI aumenta por três vias: pela avaliação geral dos imóveis – nunca vi em país nenhum uma reavaliação do património de base sem diminuir a taxa do imposto -, pela subida das taxas e pela diminuição das isenções. Devia-se compensar este aumento de receita, que é municipal, com a diminuição de outros impostos municipais, como o IMT.
Faltam benefícios que estimulem a competitividade.
São bem poucos, descoordenados e nada acarinhados. Há o regime dos residentes não habituais, que tem mérito, não tivesse sido alvo de múltiplas interpretações administrativas que o minaram de alguma desconfiança (o Governo propôs, entretanto, um novo regime). Portugal tem condições para atrair contribuintes (clientes) privados: o clima, a segurança, a hospitalidade, o custo de vida. Também o regime de zona franca da Madeira tem sido alvo de uma série de alterações que nos prejudicam a todos. A própria isenção de imposto do selo nas transmissões gratuitas entre pais e filhos e entre cônjuges é um fator de atração de pessoas e de reformados para Portugal. Portugal não é um país só bom para viver, é também um país bem bom… para morrer (risos), por razões fiscais.
Vamos ter em 2013 o maior aumento da carga fiscal de que há memória. Atingimos o limite?
Em termos estritamente numéricos, estaremos ao nível de outros países europeus, o problema continua a ser o da distribuição da carga tributária, que muitos não suportam e outros carregam em demasia, o que não promove o crescimento nem uma concorrência sã. Não podemos ter quatro quintos do IRS sobre rendimentos do trabalho e de pensões nem níveis de taxas tão altos sobre rendimentos tão baixos.
Como perspetiva 2013?
Um ano imprevisível e muito difícil. Com enormes riscos no cumprimento das metas económicas e orçamentais. Estamos a viver situação única, cuja projeção e previsão é dificílima por falta de bases comparativas.
Acha que o caminho que está a ser seguido pelo Governo é o correto? Haveria alternativas?
Há sempre algumas alternativas, laterais, insuficientes, às quais não se dá devido relevo, investir no combate à fraude e à evasão fiscais, na reavaliação dos benefícios e incentivos fiscais existentes. Parece óbvio que o caminho muito dificilmente pode continuar a ser o da receita fiscal. É de facto, por enquanto, mais fácil aumentar os impostos, por decreto, do que diminuir as despesas, junto das regiões autónomas, dos municípios, das empresas públicas, ou despedir funcionários e eliminar prestações sociais. São opções bem difíceis, essas. Exigem um grande consenso, numa situação que é de emergência nacional. Precisamos de troikas mais internas, de blocos centrais bem alargados, muito determinados, provavelmente integrados pelos principais partidos do arco governativo, pelo menos PS, PSD e PP, num pacto apoiado por uma Presidência da República bem mais atuante e alinhada.
Um pacto com medidas concretas e com prazo de validade?
Isso, um pacto de regime. Com medidas muito concretas e consensuais entre os partidos desse arco governativo para, pelo menos, esta e a próxima legislatura.
Não é isso a que temos assistido, nem dentro da própria coligação. Como analisa o atual panorama político?
Com tristeza, mas ainda com esperança. A gestão dos silêncios a que há pouco assistimos na coligação governativa nada augura de bom, quando se impunha um consenso bem claro, explícito e apoiado sobre as medidas difíceis a tomar e quanto ao cumprimento dos nossos compromissos internacionais. Esperança, apesar das declarações contundentes do secretário-geral do PS, porque ele não foi explícito na rejeição ao diálogo e, certamente, terá o sentido de Estado para colaborar na redução da despesa pública e no cumprimento dos nossos compromissos internacionais. Nesta matéria, os partidos do arco governativo deviam ser cúmplices, patriotas mesmo, e encontrarem os consensos necessários para levar a carta a Garcia. E são necessárias medidas para estimular o crescimento e a competitividade. Sem crescimento também não há receita fiscal.
Como por exemplo?
Porque não explorar e conjugar as virtualidades dos regimes fiscais suspensivos comunitários com o desenvolvimento dos nossos portos de águas mais profundas, como o de Sines, e as ligações ferroviárias de alta velocidade à Europa? Porque não copiar a experiência do cheque cesu francês (um meio de pagamento simplificado dos serviços ao domicílio, com tratamento fiscal e contributivo simples e automático) e seguir algumas das recomendações do relatório de política fiscal de 2009 que não implicam despesa acrescida? Porque não optar por regimes de tributação mais objetivos e forfetários e admitir que a tributação do lucro real para empresas de menor dimensão não pode ser o mesmo que é aplicado a multinacionais? Não estou a falar das taxas do imposto, este aspeto não é de preocupar, mas na forma como é determinada a matéria coletável. É copiar outros países e, principalmente, não fazer mais reformas fiscais estruturais.
É mais fácil dialogar com o fisco?
A diferença é abissal em relação ao que sucedia alguns anos atrás, na atitude, nos procedimentos… Há maior proximidade, uma resposta mais célere e precisa. Mas há muito ainda a fazer, as respostas são ainda muitas vezes ambíguas.
É preciso ter dinheiro para levar até ao fim um processo de contencioso com o fisco?
É preciso ter muita paciência para o calvário a percorrer e para explicar todas as alternativas e situações até obter a decisão final. Há vários meios de defesa e garantias diversas, que são administrativas e judiciais e que podem ser usados em simultâneo. Tudo é caro e ainda muito demorado.
O grande entrave às garantias dos contribuintes permanece na morosidade dos tribunais.
Sim, sobretudo na primeira instância. Nos tribunais superiores temos decisões compatíveis com os prazos razoáveis de outros países.
BI
A herança dos impostos
Nome Rogério M. Fernandes Ferreira
Perfil Aos 48 anos, casado e com dois filhos rapazes, com 11 e 14 anos de idades, Rogério M. Fernandes Ferreira privilegia o descanso em casa com a família. Os livros também fazem parte da sua vida: “A Meio Caminho”, do amigo Vítor Cunha Oliveira, foi a última obra que leu. Licenciou-se em Direito, fez uma pós-graduação em Estudos Europeus e é mestre em Ciências Jurídico-Económicas pela Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Dá aulas em vários cursos de pós-graduação e é professor associado convidado e coordenador do mestrado em Gestão Fiscal no Instituto Superior de Gestão. Além disso, integrou várias comissões e grupos de trabalho no Ministério das Finanças, nas áreas do direito fiscal e financeiro e das finanças públicas. E chegou a secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (de António Guterres). Começou a trabalhar no escritório do pai, o já falecido e reputado fiscalista Rogério Fernandes Ferreira, de quem herdou o gosto pelo mundo dos impostos. Preside à Associação Fiscal Portuguesa, que pertence à International Fiscal Association. Antes de abrir o seu escritório próprio, RFF – Rogério Fernandes Ferreira e Associados, foi sócio de capital e coordenador da área de prática de Direito Fiscal de uma das mais antigas e a maior das sociedades de advogados portuguesa, a PLMJ.
Este artigo é parte integrante da edição 345 da Revista EXAME