Numa discussão focada em explorar os principais desafios que enfrenta hoje a paz mundial, Anne Applebaum, historiadora aclamada e vencedora do prémio Pulitzer, sentou-se com Paulo Portas em mais uma sessão promovida pela sétima edição das Conferências do Estoril. Sob o mote “Resistir ao Populismo”, os dois oradores discutiram o atual estado da política mundial e a força do nacionalismo em potências como os EUA e a Rússia, refletindo também sobre os efeitos da Internet no seu crescimento.
Compreender o populismo implica compreender o passado, o presente e, possivelmente, o futuro. Frequentemente este movimento nasce de um receio das mudanças que acontecem hoje e que implicam um afastamento do passado, nomeadamente quando se trata do nacionalismo. “De muitas maneiras, o populismo ou o autoritarismo são uma reação a mudanças demográficas, informacionais e económicas muito, muito rápidas. E as pessoas que se incomodam com essa mudança são as que a querem impedir. Querem o fim dessa cacofonia, querem voltar a algo diferente ou mais estável que se lembram. Essas são realmente as pessoas que são apeladas pelo populismo”, explica a historiadora.
Putin assume-se como um exemplo perfeito deste tipo de atitude, desejando regressar a uma Europa pré-liberalista. Perceber as motivações do atual Presidente da Rússia é perceber também o seu passado e os eventos que moldaram a sua visão e aspirações políticas. “O acontecimento que mais marcou sua vida (de Putin) foi a experiência de ser oficial da KGB em Dresden, Alemanha, em 1989, trabalhando em conjunto com a Stasi (principal organização de polícia secreta e inteligência da República Democrática Alemã) como parte da ocupação soviética da Alemanha Oriental. E a sua experiência de ver a queda do Muro de Berlim cair depois disso também. Aí prometeu mudar as coisas novamente. Assim, enquanto milhões de outras pessoas, incluindo a maioria de nós nesta sala, assistiram a esses eventos com entusiasmo e prazer. Ele viu-os como trágicos e terríveis, como uma catástrofe geopolítica”, lembra Applebaum.
“Ele é alguém que se opõe fundamentalmente a este sistema político que descrevemos como democracia liberal. E ele vê isso agora, como uma ameaça pessoal para ele, e sua forma de poder cleptocrata autocrático e para a Rússia, mais amplamente. Para ele, a Ucrânia é, ao mesmo tempo, uma espécie de território russo renegado que deveria fazer parte do Império Russo, mas passou, também, a ser um símbolo dessa transição democrática, à qual ele se opõe”, acrescenta a historiadora premiada. É uma ameaça que, mais do que apenas a Ucrânia, põe em causa os ideias da democracia liberal, assumindo-se, também por isso, como uma luta “ideológica”, nas palavras de Applebaum.
No caso dos EUA, a essência é semelhante, predominando o lema vincado por Trump: “Let´s make Ameria great again”, uma referência a um passado melhor e a um período mais próspero do país, uma noção também partilhada por Putin. Embora ambos se assumam como formas de populismo, e nestes casos, nacionalismo, ambos se encontram em circunstâncias fundamentalmente diferentes, pelo que a forma de combater ambos os movimentos tem necessariamente de ser distinta.
Durante a sessão, Applebaum preocupou-se em substituir o termo “populismo” por “autoritarismo” já que o primeiro ganhou uma reputação negativa que nem sempre lhe faz jus. Afinal, ao longo da história o populismo assumiu muitos formatos, foi tanto de direita como esquerda e nem sempre as radicais. “(O populismo) pertenceu a tantos movimentos diferentes ao longo da história e ao longo do tempo que tiveram diferentes conotações, algumas perfeitamente democratas. Prefiro a expressão autoritarismo”, salienta a historiadora. Portas acrescenta: “Tem vindo a tornar-se (uma palavra) um pouco abusiva porque se queremos insultar alguém basta dizermos que é populista”.
Posto isto, o autoritarismo caracteriza-se, segundo Applebaum, não pelos ideais propriamente ditos que os seus líderes afirmam defender, mas pelo pensamento subentendido com que governam. “Eles criam esta ideia de que ´eu represento as pessoas reais, eu represento as pessoas autênticas, o que eu quero é, portanto, mais importante do que todas estas regras mesquinhas sobre freios, contrapesos e eleições. E, portanto, mereço permanecer no poder, mesmo que tenha perdido a eleição´”, explica, acrescentando: “E isso é, claro, ainda mais perigoso na pessoa de Donald Trump”.
Trump, a Internet e o sistema eleitoral
A permanente negação de Trump em relação aos resultados das eleições de 2020, aliado ao incentivo que dá aos seus eleitores para percecionarem o episódio de 6 de Janeiro como a defesa dos verdadeiros interesses do país, em lugar do crime e traição que constitui perante o atual sistema democrático e os seus valores, assumem-se, hoje, como ameaças disruptivas à democracia nos EUA. A esta pressão já sentida no sistema aliam-se outros fatores culturais ligados, por exemplo, à política de cancelamento na Internet que continua a promover um ambiente de divisão e confronto violento dentro do universo do online, incentivando, também com isso, à adesão a ideologias mais radicais, como é o trumpismo.
No caso dos EUA, e uma vez que a democracia digital ganha cada vez mais força com a influência inegável da Internet na sociedade atual, torna-se importante delinear algum tipo de regulamentação que possa ajudar a controlar o universo o online, sem que isso afete, no entanto, os direitos básicos dos cidadãos à liberdade de expressão que estão na base de qualquer democracia liberal. “Sou a favor de uma regulamentação que não seja censura. Sou a favor de pensar mais sobre os algoritmos naos media sociais e o que eles promovem, porque não se trata de um conteúdo específico. Eles promovem a divisão e são configurados para encorajar a raiva, o que mantém as pessoas envolvidas e as mantém online. E isso é para o benefício comercial das empresas certas, os algoritmos”, argumenta Applebaum.
Ainda assim, a historiadora admite que, sendo impossível regressar a uma “era pré-Internet”, torna-se essencial não apenas aceitá-la, mas procurar tirar o melhor partido das suas potencialidades, inclusive a nível político. “Gostaria de ver os políticos democratas a procurar encontrar formas mais interessantes de usar a internet para conduzir debates online. Há exemplos disso em todo o mundo. Existem alguns exemplos interessantes. Por exemplo, na Tailândia, onde todas as conversas online foram orquestradas para permitir que as pessoas digam o que pensam num contexto onde não há raiva, ódio ou divisão, mas onde se procura criar consenso e permitir que as pessoas reflitam sobre as suas opiniões”, diz a historiadora.
Um exemplo de uma possível solução ao problema seria a quebra do anonimato. “Isso não significa eliminar todo o anonimato, mas pelo menos criar alguns lugares (na Internet) onde as pessoas são responsáveis pelo que dizem”, exemplifica.
O problema da democracia nos EUA é, no entanto, bem mais profundo, assim como bem mais antigo do que a Internet, tornando-se necessário reavaliar a própria Constituição do país. Um aspeto que Applebaum salienta é o sistema eleitoral dos EUA hoje. “Se eu tivesse uma varinha mágica, mudaria a nossa constituição para eliminar o Colégio Eleitoral ”, assegura a vencedora do prémio Pulitzer. Não tendo varinha, as mudanças continuam a ser possíveis, embora aconteçam mais devagar e passo a passo.
Recentemente, no Alasca, um novo sistema de votação, conhecido como votação de escolha classificada, foi utilizado. A premissa base deste sistema estabelece que em lugar de elegerem apenas um candidato, os eleitores irão colocar na folha de voto tanto a sua primeira opção como a sua segunda opção. O sistema já é utilizado em outros países, mas poderia, na eventualidade de ser adotado nos EUA, trazer consigo mudanças significativas. “(Este sistema) favorece candidatos mais moderados, pessoas mais centristas (…). Favorece a polarização muito profunda. (…) Isto forçaria os candidatos a falar, para uma gama mais ampla de pessoas, e não apenas para pequenos grupos partidários, seria uma mudança enorme”, afirma Applebaum.
A Rússia e a necessidade de lutar pela paz
No caso russo, o autoritarismo escalou de uma forma que não fez nos EUA, dando início a uma guerra que veio interromper quase oito décadas de paz na Europa. Por agora, a resposta da União Europeia tem recaído maioritariamente sob sanções ao país de Vladimir Putin e sob o fornecimento de armas à Ucrânia, uma estratégia que procura, acima de tudo, impedir um escalar da guerra, envolvendo mais países e cedendo ao receio de que a mesma se viesse a tornar a Terceira Guerra Mundial.
Mas será válido combater violência com pacifismo? “A Europa vive há muito tempo na ilusão de que todos os problemas podem ser resolvidos através do diálogo e do debate. E também na ilusão de que a paz pode ser alcançada pela conversa e também pelo comércio”, acusa a historiadora. Esta necessidade de preservar a paz pode ser explicada olhando para o passado do continente europeu. Depois de uma devastadora guerra na qual o autoritarismo esteve na base, a democracia encontrou, finalmente, o ambiente ideal para prosperar, uma vitória conseguida a grande custo. Estará a Europa pronta a abdicar da estabilidade que daí adveio? “Infelizmente, nem todos os problemas podem ser resolvidos dessa maneira. (…) E a guerra na Ucrânia é um lembrete útil aos europeus de que às vezes podemos ter que lutar para manter a paz. Parece paradoxal, mas se queres manter a paz, se queres estabilidade, às vezes tens de estar preparado para te defenderes, tens de ter uma defesa forte”, argumenta Applebaum.
Por agora, no entanto, a Europa deve prepara-se para o grande desafio que será o inverno que se avizinha. Sem poder depender do gás russo, muitos países europeus vêm-se incapazes de assegurar energia à sua população. “A Rússia não é a única autocracia do mundo construída sobre petróleo e gás. Temos a Venezuela, o Irão, a Arábia Saudita, muitos outros. E se tivéssemos diferentes fontes de energia, privaríamos aqueles países do monopólio que tem mantido o poder autocrático”, termina a historiadora.