O seu avô foi o primeiro homem a subir à estratosfera, a mais de 15 mil metros de altitude. O pai, o primeiro a descer ao ponto mais profundo do planeta, a Fossa das Marianas, quase 11 mil metros abaixo do nível do mar. As pisadas não eram fáceis de acompanhar, confessa Bertrand Piccard. “Em criança, decidi que queria ser explorador. Mas não sabia o que explorar. E quando era adolescente sentia-me deprimido, porque tinha grandes sonhos de exploração e absolutamente nenhuma ideia do que fazer para alcançar esses sonhos.”
Mas o suíço encontrou o seu caminho: em 1999, tornou-se famoso por ser o primeiro a fazer uma viagem de circum-navegação em balão (sem paragens); anos depois, repetiu a proeza, num avião movido a energia solar. Hoje, dedica a sua vida a apoiar e a divulgar projetos de tecnologia sustentável, tema que o trará a Portugal em setembro, para participar nas Conferências do Estoril, na Nova SBE, evento de que a VISÃO é media partner.
“Porque está lá” é a famosa resposta que George Mallory terá dado como motivo para escalar o Evereste. As motivações para as suas explorações parecem ser mais do que isso. O que o impele a ir aonde nenhum homem foi antes?
Quando fazemos algo que nunca ninguém fez, precisamos de inventar tudo, e isso estimula a criatividade, estimula o desempenho. Ninguém nos diz como fazer, temos de descobrir sozinhos e com a nossa equipa. E quando algo parece impossível, a qualidade das pessoas que se juntam à equipa é fantástica, porque são as pessoas que querem encontrar soluções, que estão prontas para mudar a nossa mentalidade para chegar ao objetivo. É uma experiência fascinante e obriga-nos a sermos bons. Pelo contrário, quando estamos na rotina, a fazer coisas que já foram feitas antes, não nos é exigido nenhum desempenho especial ou qualidade: basta reproduzir o que foi feito antes. Isso não é estimulante.
Mallory morreu a perseguir o seu sonho de “chegar lá”. Qual o espaço que o medo ocupa na sua mente, quando enceta mais uma das suas aventuras? Ou os Piccards simplesmente não têm o gene do medo?…
O medo é um seguro de vida. O medo diz-nos que estamos a sair da nossa zona de conforto. Diz-nos para termos cuidado. Não significa que temos de parar. Significa, sim, que devemos perguntar a nós próprios: o que fazer agora? Se concluirmos que é uma situação muito má, talvez tenhamos de parar ou fazer diferente; se for a sensação de que é apenas algo novo para descobrir, então podemos continuar. Extraordinário é que o medo desaparece se estivermos em sintonia interna. Percebi isso quando comecei a praticar asa-delta, tinha 16 anos. Foi uma experiência fantástica perceber que, se estamos completamente conectados a nós mesmos, conscientes da situação, focados no nosso corpo e na experiência, o medo desaparece, porque controlamos tudo. Mudou completamente a minha vida. Mostrou-me que, se eu quisesse ser bem-sucedido, teria de ter essa consciência de mim próprio.
Volta ao mundo em balão
O nome de Bertrand Piccard foi inscrito nas enciclopédias dos pioneiros há 23 anos, quando se tornou o primeiro homem (juntamente com o seu companheiro de voo, Brian Jones) a circum-navegar o planeta num balão, sem paragens – uma viagem de 45 mil quilómetros, percorridos em 20 dias, entre 1 e 21 de março de 1999. Nessa altura, havia sete equipas a tentar o mesmo, incluindo duas lideradas por Richard Branson e por Steve Fossett, o que transformou a aventura numa corrida. O balão de Piccard era movido a gás propano, media 55 metros de altura e foi batizado de Breitling Orbiter 3 (o patrocínio era da marca suíça de relógios de luxo). Como o nome dá a entender, o explorador falhou a circum-navegação com os seus dois primeiros balões.
O seu avô subiu, o seu pai desceu. Como decidiu que a sua primeira grande conquista seria dar a volta ao mundo em balão? Sentou-se com um mapa e um livro de História à sua frente e disse a si mesmo: “Ora vamos lá ver o que ainda não foi feito”?
[Risos.] Não, não funciona assim. Depois de ver o meu pai a ir às profundezas do oceano, sabendo que o meu avô havia estado na estratosfera, tendo conhecido astronautas, pioneiros, exploradores… em criança, decidi que queria ser explorador. Mas não sabia o que explorar. E quando era adolescente sentia-me deprimido, porque tinha grandes sonhos de exploração e nenhuma ideia do que fazer para alcançar esses sonhos. Comecei a desenvolver no meu coração uma bússola com uma agulha que me apontava o desconhecido. E eu tentei. Tentei tudo. Tudo! Tentei coisas que falhei. No desporto, por exemplo, falhei. Não era bom. Um dia, vi uma asa-delta, que era uma coisa nova. Era uma das primeiras asas-deltas na Suíça e na Europa, e pensei: “Vou experimentar.” E depois alguém me ligou e disse: “Ah, estás a voar de asa-delta, devias experimentar o meu ultraleve, que é uma asa-delta com motor. É o primeiro na Suíça. Vem e experimenta.” Respondi que sim. E depois vi um balão de ar quente e pensei em lançar-me de asa-delta a partir do balão de ar quente. E assim fiz. Depois o piloto convidou-me a cruzar o Atlântico de balão [numa competição], e vencemos essa corrida. Então pensei: “OK, adoro balonismo, é uma coisa nova. Vou tentar dar a volta ao mundo em balão.” Criei um projeto à volta disso e consegui à terceira tentativa, o que me trouxe ao Solar Impulse. E o sucesso do Solar Impulse levou-me a encontrar soluções para proteger o ambiente. Foi uma grande cadeia de acontecimentos, um leva ao outro, e em cada podia dizer sim ou não. Se eu tivesse dito “não” quando vi a primeira asa-delta, a minha vida teria sido completamente diferente. Quando fui convidado a cruzar o Atlântico de balão, podia ter dito “não, não vou contigo, não sei pilotar um balão, não é para mim”. Mas disse que sim, porque era algo novo e eu queria experimentar. Portanto, é uma questão de dizermos sim ou não ao que a vida nos oferece, e sempre que o fazemos somos levados numa direção diferente. Devemos estar atentos a todos os momentos decisivos nas nossas vidas, quando temos de decidir entre sim e não, e imaginarmos aonde a vida nos levará se dissermos sim ou não.
Quando fazemos
algo que ninguém
nunca fez,
precisamos de
inventar tudo,
e isso estimula
a criatividade
Qual a ligação entre o balão e o Solar Impulse? Como passou de uma coisa para a outra?
No balão, o mais difícil era manter-me muito tempo no ar. O balão que tinha voado mais tempo quando comecei o projeto de dar a volta ao mundo voou seis dias, e eu sabia que tinha de voar 20 dias. Era um enorme desafio. E havia outros que queriam fazer o mesmo: Richard Branson, Steve Fossett… Outras sete equipas. Claro que eu era o menos favorito, com uma pequena equipa da pequena Suíça. E falhei duas vezes, mas os outros também falharam. O que era diferente na minha equipa é que eu voltava a tentar com uma estratégia diferente: mudava a forma do balão, o tipo de combustível, a tripulação… E assim progredia. Os meus concorrentes não fizeram isso. Tentaram a mesma coisa repetidamente e falharam sempre pelo mesmo motivo. Eu falhei por diferentes razões, até que consegui. Mas pousar foi… interessante. Tínhamos voado 45 mil quilómetros, eu e o meu amigo Brian Jones; e, dos 3 700 quilos de propano líquido, sobraram 40 quilos. Naquele momento, apercebi-me do quanto somos dependentes do combustível fóssil, e pensei: “OK, consegui com o balão, mas agora, se quero fazer melhor, tenho de me livrar do combustível.” Este é o início do sonho do Solar Impulse. A solução para voar e ficar no ar perpetuamente sem combustível era ter um avião a produzir eletricidade a partir do sol, armazenando a energia em baterias durante o dia para que pudéssemos usá-la à noite. E claro que queria usar este projeto para promover energias renováveis, tecnologias limpas, eficiência energética. Comecei este projeto em 2002, há exatamente 20 anos, e há 20 anos as pessoas pensavam que as energias renováveis eram inúteis, uma anedota. Eu provei que não eram uma anedota, que serviam para fazer coisas impossíveis.
A tecnologia solar está hoje mais ou menos avançada do que, nessa época, esperaria que estivesse?
A tecnologia não é realmente melhor hoje do que era há 20 anos. Mas o que mudou foi o preço, que foi dividido por 40. Atualmente, a energia solar não é cara. É mesmo a energia mais barata – o seu país, Portugal, detém o recorde mundial da eletricidade mais barata do mundo, que é de 1,5 cêntimos por kWh. É quatro vezes menos do que a energia nuclear, o petróleo e o gás. Portanto, tornou-se acessível. Tornou-se a energia que todos podem usar. Esta é a grande mudança.
Então, por que razão a energia solar não tem uma fatia maior no mix energético?
Fiz essa pergunta a um ministro em Portugal. Ele disse-me que existem dois obstáculos. Um é a dificuldade da administração em dar permissões a projetos privados; outro é a oposição das pessoas que querem proteger a paisagem. O que é uma loucura! As pessoas dizem não à energia solar, que é a energia mais limpa que podemos ter?!
A Fundação Solar Impulse e seu Selo de Solução Eficiente: o projeto passa por encontrar mil soluções que nos coloquem no caminho da sustentabilidade. Esta marca já foi ultrapassada. Quer destacar algumas?
Existem soluções extremamente valiosas na produção de energia. Umas são promissoras no uso eficiente da energia, outras são eficientes ou de economia circular. Dou alguns exemplos. Na economia circular, temos um sistema que permite transformar todos os resíduos não recicláveis em matéria-prima de construção, em cascalho. Isto significa que podemos fechar os aterros e acabar com a poluição nos oceanos, porque há um processo que leva todo esse lixo, que geralmente vai para o oceano ou para os aterros, e o transforma em algo útil. Um exemplo na eficiência energética: bombas de calor. Para aquecer ou arrefecer um edifício, há uma empresa que está a fazer pequenos buracos no solo, não muito profundos, de 180 metros, ligados a bombas de calor, aproveitando a temperatura constante no subsolo para aquecer o prédio no inverno e arrefecê-lo no verão. Em termos de produção de energia, existem formas de produzir gás com biomassa, como os resíduos da agricultura: em vez de queimarmos o lixo, podemos usá-lo para produzir gás e, daí, eletricidade. Há também pequenas turbinas para instalar em riachos, para produzir eletricidade constante, uma coisa que se pode fazer em aldeias ao longo de um rio. Não só estas são soluções eficientes como dão lucro financeiro. E são mais baratas do que os sistemas convencionais, sujos.
Piccard em Portugal
O explorador suíço é um dos oradores da 7.ª edição das Conferências do Estoril, que se realizam no campus da Nova SBE, em Carcavelos, Cascais, nos dias 1 e 2 de setembro. Além de Bertrand Piccard, que fará uma apresentação com o título Espírito Pioneiro: A Chave para Inventar o Futuro, marcarão também presença a jornalista (vencedora de um Pulitzer) Anne Applebaum, os ex-presidentes da Colômbia, da Nigéria, da Croácia e da Polónia, o atual primeiro-ministro de Cabo Verde, a ex-primeira-ministra da Ucrânia e Roberta Metsola, a presidente do Parlamento Europeu, entre outros. A VISÃO é media partner das Conferências do Estoril.
Como é que esses projetos sustentáveis se comparam com os convencionais, em termos de rentabilidade?
Todas as soluções que recebem o selo da minha fundação são economicamente rentáveis. Porque economizam energia, recursos naturais e resíduos, são mais eficientes… Se é mais eficiente e economiza recursos, é mais barato. E o que se poupa ao usar estes sistemas paga os investimentos iniciais. Recupera-se o dinheiro ao longo da vida útil do sistema. Mas é uma coisa que as pessoas, principalmente nas administrações públicas, não perceberam ainda. Nos concursos públicos de uma cidade, uma região, um país, muitas vezes opta-se pelo mais barato no momento, ainda que seja muito mais caro daqui a dez ou 20 anos. Esse é o grande erro. Se queremos um mundo mais limpo e mais eficiente, temos de alterar estes processos, através de regulamentação. Muitas destas soluções não são adaptadas porque a legislação não as incentiva.
É falta de visão ou de fundos para o investimento inicial?
É uma forma de pensar a curto prazo. É como quando escolhemos uma casa: se um promotor disser aos clientes que pode construir-lhes uma casa barata ou, em alternativa, uma mais cara, mas mais eficiente, que permitirá a recuperação do investimento com o tempo, muita gente vai escolher a mais barata, porque só vê o momento inicial em que o dinheiro lhe sai do bolso. Ao longo dos anos, vão perceber que foi uma má opção, mas aí já é tarde. Diria que é uma questão de educação, de planos de negócio, e também de obter investimentos suficientes no início para permitir fazer a escolha certa, o que envolve o sistema financeiro. Mas é um processo que tem de se tornar a norma. Em vez de comprar o mais barato, temos de comprar o que é melhor ao longo de uma vida. Para isso, temos de mudar a mentalidade das pessoas.
Considera-se um ecorrealista. O que significa?
Realismo é quando o objetivo é chegar a um resultado, independentemente da nossa própria ideologia. Se eu fosse puramente ecologista, poderia querer lutar contra toda a indústria, em vez de apoiar as indústrias que trazem soluções. Se for motivado pela minha ideologia, posso perder soluções e ficar impedido de atingir um resultado. Por outro lado, se sou da indústria e quero lutar contra o ecologista e forçar as minhas coisas, vou perder todas as soluções ecológicas que posso pôr no mercado. Realismo é quando nos livramos da nossa ideologia pessoal, nos abrimos para o modo de pensar dos outros e tentamos encontrar um valor comum, um interesse comum. Há coisas que protegem o ambiente e outras que são lucrativas; se formos realistas, tentamos juntar as duas: que protejam o ambiente e sejam financeiramente lucrativas. Conciliar ecologia e economia.
Fico muito otimista
quando vejo as
soluções que
existem. E fico
muito pessimista
quando vejo o
tempo que
levamos a
implementar as
soluções
Cada vez mais gente defende o decrescimento económico como sendo a única forma de salvar o planeta. É?
Decrescimento económico… Esse é um debate de ricos. Perguntemos às pessoas que não têm nada se querem decrescimento económico. Perguntemos às pessoas que ganham o salário mínimo, que estão desempregadas, que são pobres… É muita gente. Essas pessoas não podem decrescer porque já não têm nada. Para que queremos crescimento económico? Para pagar a Educação, a Saúde, o Estado Social, as pensões. Se degradarmos a economia, vamos ter muito mais pobreza. Não, não sou a favor de um decrescimento económico. Mas sou a favor do decrescimento da poluição, da ineficiência e do desperdício. Tudo isso tem de diminuir, sim, mas chama-se eficiência, não se chama decrescimento. Por outro lado, é muito claro que não podemos continuar a nossa busca pelo crescimento como temos feito até agora, e que está a conduzir-nos a um desastre ecológico. Tanto o decrescimento como o crescimento devem ser combinados no que eu gosto de chamar de crescimento qualitativo: é quando criamos empregos e estimulamos a economia substituindo o que é poluente pelo que protege o ambiente.
Quais são os impactos das alterações climáticas que mais o preocupam?
O facto de que a qualidade de vida na Terra será comprometida. Teremos uma diminuição da biodiversidade, um clima errático, com enchentes, secas, furacões, desastres naturais, doenças tropicais na Europa, fome em África, a subida do nível do mar, que obrigará centenas de milhões de pessoas a deslocarem-se, tornando-se refugiados climáticos… É um futuro miserável. Estamos a destruir o equilíbrio da Natureza. Um equilíbrio que levou milhares de milhões de anos a ser atingido, e os seres humanos estão destruí-lo em 100 anos. É uma loucura! E hoje já estamos a ultrapassar os momentos irreversíveis. Por exemplo, quando o permafrost derrete, liberta milhares de milhões de toneladas de metano para a atmosfera, o que amplifica os processos das alterações climáticas. É por isso que não podemos esperar para ter soluções melhores no futuro e desse modo reparar os problemas que causamos. Não, temos de agir hoje, com as soluções atuais, e fazê-lo globalmente e depressa.
Além das alterações climáticas, que outros problemas ambientais devemos levar mais a sério?
A destruição da biodiversidade, que está a alterar o equilíbrio da vida na Terra. Temos de ter cuidado também com o esgotamento dos recursos naturais, porque vamos desperdiçando tantas terras raras, tantos minerais de que precisamos para a transição ecológica, para fabricar motores elétricos, baterias, painéis solares…
A primeira circum-navegação com avião solar
Depois de quase esgotar o combustível do balão, o que por pouco lhe custava o recorde, Piccard decidiu que a aventura seguinte passaria por um veículo que não precisasse de combustível. Nasceu aí a ideia que germinaria no Solar Impulse, um avião movido exclusivamente a energia solar, com mais de 11 mil células fotovoltaicas espalhadas pela estrutura (a maioria nas enormes asas). Este protótipo bateu vários recordes de distância e permanência no ar, mas tratava-se sobretudo de uma forma de mostrar ao mundo as potencialidades da energia solar. O sucesso do projeto redundou no Solar Impulse 2, com ambições mais altas. Em março de 2015, André Borschberg e Bertrand Piccard iniciaram, à vez, revezando-se, a primeira viagem de circum-navegação aérea num veículo sem combustível. Em julho de 2016, à 17.ª etapa, Piccard aterrou em Abu Dhabi, de onde o seu companheiro havia partido 16 meses antes. Antes de aterrar, os dois pilotos suíços anunciaram a criação, a partir da Fundação Solar Impulse, da Aliança Mundial para Soluções Eficientes, uma organização para promover as energias limpas e outras tecnologias sustentáveis. O objetivo passava, então, por identificar mil projetos que fossem simultaneamente sustentáveis do ponto de vista ambiental e económico. Entretanto, já foram atribuídos mais de 1 400 selos de Solução Eficiente. Na sua demanda para dar projeção às tecnologias verdes, Piccard teve ainda tempo para bater mais um recorde mundial: em 2019, percorreu 778 quilómetros num carro a hidrogénio, sem abastecer.
Depois de dar a volta ao mundo num avião solar, a sua conquista seguinte foi bater o recorde de distância percorrida num carro a hidrogénio. O hidrogénio é a nossa próxima arma?
O hidrogénio é uma solução interessante, pois permite trazer todos ao jogo. Para os países, aumenta a autonomia energética. Para a indústria, é a melhor maneira de fazer aço, fertilizantes… E para as petroleiras é uma oportunidade de negócio. Em vez de ter todo o mundo a resistir, temos o mundo a unir-se para aumentar o uso de hidrogénio. Mas não podemos iludir-nos: é preciso energia para produzir hidrogénio, e temos de ser eficientes para usar o hidrogénio de forma inteligente. Dentro das cidades, para carros pequenos, as baterias são mais eficientes do que o hidrogénio, que será melhor para camiões, comboios, navios ou mesmo aviões.
O mundo está muito longe dos objetivos do Acordo de Paris. Quão otimista está quanto a conseguirmos ainda evitar o desastre?
Fico muito otimista quando vejo as soluções que existem. E fico muito pessimista quando vejo o tempo que levamos a implementar as soluções.
Os ciclos políticos têm quatro ou cinco anos. As mudanças estruturais de que precisamos são de longo prazo e impopulares. O processo democrático é compatível com os objetivos que temos?
A democracia levará mais tempo a resolver as alterações climáticas, mas é um modelo que respeita os seres humanos. O que gostaria é que a democracia fosse mais rápida. E aquilo de que precisamos no processo democrático é de ter o legislador, os parlamentos de todos os países, a modernizar as leis para as pôr ao nível das novas tecnologias. As regulamentações estão muito atrasadas. É permitido poluir. É permitido emitir todo o dióxido de carbono que se quiser. Acusamos as grandes empresas de poluir e respondem-nos: “O que eu faço é legal, respeito as normas.” E legalmente estão certas. É isso que temos de mudar. Se existem soluções que permitem poluir menos com o carro, temos de colocar os padrões a um nível que puxe todas essas inovações para o mercado. Se tivermos novos tipos de sistemas de aquecimento e refrigeração, os velhos tipos devem ser proibidos, para obrigar todas as pessoas a usar esses sistemas mais limpos e mais rentáveis. Os governos têm de fazer isso, e uma democracia pode fazê-lo muito bem. Mesmo que um ditador possa andar mais depressa, a qualidade de vida sob uma ditadura não é melhor do que sob uma democracia.
Por falar em ditadores, a guerra pode, de uma forma perversa, acelerar a transição para fontes de energia mais limpas?
Espero que sim, mas não é o que tenho visto. Hoje, com a guerra na Ucrânia, a primeira reação de todos os países é a de pensar “Como posso obter gás e petróleo noutro lugar” em vez de ser “Como posso reduzir o consumo de petróleo e gás?” E precisamos mesmo de pensar nesses termos: economizar energia, recursos naturais, produzir menos, consumir menos para produzir menos resíduos. E, para isso, há que instalar novos processos que sejam economicamente rentáveis. Em vez disso, no meio de uma crise, como a guerra na Ucrânia, há muitos países que regressam às bases, procurando obter o mesmo tipo de energia noutro sítio. É uma reação errada.
Nunca olha para a guerra e pensa: “Para quê dar-me ao trabalho? Vamos destruir-nos numa guerra global muito antes de o desastre climático se instalar”?
Não. Já tivemos guerras durante toda a História, e a humanidade nunca foi destruída. A guerra é algo atroz, mas a única coisa que pode destruir a humanidade e a qualidade de vida são as alterações climáticas. Ou guerra nuclear. Sim, uma guerra nuclear pode ser pior, mas não vejo as pessoas a serem estúpidas ao ponto de provocarem uma guerra nuclear.
A família Piccard é notável. A exploração está no vosso sangue? Ou simplesmente é assim que os Piccards são criados?
É a educação, a forma como somos criados. Não está nos genes, e seria triste se estivesse apenas nos genes, porque assim não podíamos transmitir esse espírito a outras pessoas. Sendo uma questão de educação, podemos fazer discursos, dar entrevistas, dar o exemplo e mostrar que o interessante da vida é entrar nos pontos de interrogação, entrar nas dúvidas, na incerteza, porque é o único lugar onde podemos aprender algo novo.
Como é que a vida que escolheu fez de si quem é hoje? O que aprendeu sobre si mesmo e o mundo?
Eu era tímido quando era jovem. Tinha medo de subir às árvores, porque tinha medo das alturas. Tinha medo de falar em público. Aos 16 anos, curei-me com a minha asa-delta, ao saltar de um penhasco e aprendendo a fazer mais e melhor. Isso mostra que somos muito mais livres do que pensamos para construir a nossa vida. Mas só se aceitarmos o risco de falhar. Se aceitarmos o medo, se aceitarmos as dúvidas… Muita gente tem medo e prefere viver com o problema ao invés de correr o risco de procurar outra coisa. O que aprendi na minha educação é que temos de arriscar. De questionar as nossas certezas. De aprender com outras pessoas como fazer diferente. E temos de aprender com pessoas diferentes de nós. Se estivermos a falar apenas com pessoas que pensam como nós, não aprendemos nada. Não, precisamos de estar em contacto com pessoas de outras religiões, de outro partido político, com outra educação, outras formas de pensar, de discutir com elas e aprender. É como voar num balão: precisamos de mudar de altitude para encontrar ventos com melhores direções, e para isso tem de largar lastro. Passamos pela atmosfera, verificamos o vento e apanhamos o que é melhor para nós. Na vida, é a mesma coisa. Temos de largar o lastro das nossas crenças, as certezas, as convicções, os paradigmas, os dogmas. E isso leva-nos a outras influências, outros níveis, outras visões do mundo, e a nossa vida terá outra direção.
Tem três filhos. Está a vê-los a seguir os seus passos? Ainda há alguma coisa nova para eles conquistarem?
Eles têm as suas próprias carreiras, os seus próprios empregos. Mas fazem o que fazem com espírito pioneiro. Com responsabilidade, curiosidade, experimentando coisas novas, arriscando… É um prazer ver que implementam esse pioneirismo nas suas vidas profissionais e privadas.
Qual é a sua próxima aventura?
Tenho várias coisas. Uma é acelerar a implementação de todas as soluções ecológicas que identificámos com a minha fundação. Temos agora mais de 1 400 soluções, e não são suficientemente usadas, pelo que continuo a viajar por todo o mundo, para conhecer políticos, grandes empresas, e pressionar pela implementação de soluções limpas. Também estou a trabalhar em dois novos projetos: um avião de hidrogénio e um dirigível solar, com 150 metros de comprimento, que pode viajar pelo mundo sem poluição. Quero mostrá-lo em escolas, em universidades, falar com governos e inspirar as pessoas.
Mais alto, mais baixo, mais tudo
Os Piccard são uma dinastia de pioneiros. Antes de Bertrand, já Auguste, Jean, Jeannette, Donald e Jacques tinham ido onde nenhum outro antes fora
Desde muito novo, Bertrand sabia que queria ser explorador. Só não sabia o que ainda havia para explorar, até porque a sua família já se lhe tinha antecipado e, pelo caminho, elevado a fasquia. O avô paterno, o físico Auguste Piccard, é uma lenda do balonismo: inventou um balão e uma cápsula pressurizada para se transportar à estratosfera, algo nunca antes conseguido. Foi assim que, em 1931, Auguste se tornou, juntamente com o seu companheiro de viagem, Paul Kipfer, a primeira pessoa da História a ver a curvatura da Terra, de uma altitude de 15 mil metros.
Depois de conquistar os céus, o suíço virou-se para as profundezas, adaptando a cápsula do balão de forma a suportar a imensa pressão do oceano. Nasceu assim o batiscafo, um submarino capaz de descer a profundidades até aí inimagináveis. Em 1953, Auguste (que seria a inspiração de Hergé para criar a personagem do professor Girassol, de Tintim) desceu a mais de três mil metros, batendo um recorde mundial – levando consigo o filho, Jacques.
Jacques Piccard dedicar-se-ia a aperfeiçoar a invenção do pai, esforço que culminou na construção do Trieste, um batiscafo capaz de descer ao ponto mais profundo do planeta. E foi isso mesmo que Jacques fez, emulando também o pai na coragem de testar as suas próprias criações: em 1960, desceu à Fossa das Marianas, no Pacífico, a praticamente 11 mil metros de profundidade, na missão Challenger Deep, patrocinada pela Marinha dos EUA.
O professor Girassol (Tournesol, no original), de Tintim, é baseado em Auguste Piccard, admitiu Hergé
O engenheiro suíço continuaria a desenvolver projetos de oceanografia, mas tornar-se-ia também um ativista ambiental, transformação provocada em parte pelo facto de ter testemunhado vida animal (peixes e camarões) na Fossa das Marianas, o que se julgava ser impossível, devido à pressão da água. Esta descoberta, aliás, levou ao abandono definitivo da ideia de depositar lixo no fundo do oceano, que alguns governos debatiam.
Não foi só a ascendência direta de Bertrand a gravar o nome Piccard nos compêndios. O tio-avô Jean, irmão gémeo de Auguste, desenvolveu os seus próprios balões de alta altitude, além de várias outras invenções que passaram a ser usadas na aviação e na aeronáutica. E, tal como o irmão, fez questão de experimentar as suas criações, servindo de copiloto à sua mulher, Jeannette. Em 1934, três anos depois de Auguste ter ido aos 15 mil metros, o casal atingiu quase 18 mil. Jeannette tornou-se, assim, a mulher que subiu mais alto, recorde que deteve durante 29 anos – e, segundo alguns parâmetros, foi também a primeira mulher a chegar ao espaço (a própria cosmonauta russa Valentina Tereshkova, a primeira mulher em órbita, em 1963, considera que Jeannette foi a verdadeira pioneira do espaço).
O casal Jean e Jeannette passaram o bicho da aventura a um dos seus filhos, tal como Auguste fez com Jacques, e este com Bertrand. Don Piccard, além de ter batido vários recordes de altitude com balões, seria ainda o primeiro a atravessar o canal da Mancha num balão de ar quente, em 1963.
Luís Ribeiro