Nos últimos tempos, têm surgido nas redes sociais publicações que alegam que as vacinas contra a Covid-19 violam o Código de Nuremberga, criado depois da Segunda Guerra Mundial, em 1947, na Alemanha, após o julgamento de um grupo de médicos nazis acusados de conduzir experiências científicas atrozes com prisioneiros de campos de concentração sem o seu consentimento.
Este código, que inclui um conjunto de 10 princípios éticos, pretende regular as experiências com humanos, focando-se, essencialmente, na garantia do consentimento informado neste tipo de ensaios, sendo que a primeira regra dita que “o consentimento voluntário do sujeito humano é absolutamente essencial” em qualquer experiência do género.
O documento esclarece ainda que todo o tipo de experiências deve ter “resultados vantajosos para a sociedade” e basear-se em “em resultados de experiências com animais e no conhecimento da evolução da doença”, além de dever ser “conduzido de maneira a evitar todo o sofrimento e danos desnecessários, físicos ou mentais”. Além disso, é descrito que nenhuma experiência deve ser realizada “quando existirem razões para acreditar numa possível morte ou invalidez permanente” e que “o investigador” deve estar preparado para suspender os procedimentos em qualquer estágio, se tiver motivos razoáveis para acreditar que” continuar o ensaio pode provocar morte ou invalidez aos participantes.
Nas redes sociais, vários utilizadores defendem que as pessoas que recebem a vacina contra a Covid-19 não são informadas acerca do que alegam ser a sua “natureza experimental”, juntando o argumento de que foram “desenvolvidas de forma demasiado rápida”. Noutras publicações, alega-se que os certificados de vacinação violam o Código de Nuremberga já que, passando a ser necessário estar vacinado para se conseguir ter acesso a locais ou viagens, o consentimento informado deixa de existir.
“Argumento não tem base legal”
À VISÃO, José Filipe Pinto, professor catedrático, especialista em populismos, rejeita e desvaloriza os argumentos dos movimentos negacionistas sobre Nuremberga. O académico recorda que “os movimentos negacionistas não são novos” e que, neste caso, apenas “estão a aproveitar o elemento conjuntural da pandemia para voltarem a erguer as suas bandeiras”. “Sempre exisitiram e vão continuar a existir”, diz.
“Neste caso, a pandemia representou uma oportunidade. Na sua génese, estes grupos são antissistema e contracorrente, que se agarram a forças ocultas e teorias da conspiração, mantendo uma postura de oposição ao atual regime, sem que apresentem uma verdadeira alternativa. Hoje falam de Nuremberga, mas é claro que não existe nenhuma base legal que sustente esse argumento. Quando esse argumento deixar de valer, estes movimentos vão, certamente, encontrar outro qualquer acontecimento na História que lhes permita manter esta postura anticivilizacional, que mistura elementos que, à partida, não faz sentido juntar, colocando em causa o sistema que combatem”, explica José Filipe Pinto.
Também a maior parte dos especialistas ouvidos pelo Full Fact, um site britânico dedicado ao fact checking, rejeita, porém, estes argumentos, considerando que só faria sentido referências ao Código de Nuremberga num momento de desenvolvimento e testes das vacinas, e não quando a sua inoculação ao público já começou, depois de cumpridos todos os processos e aprovações normais nestas situações.
E, mesmo assim, a relação com o código não seria, neste caso, justa: “Comparar voluntários que querem ajudar a desenvolver uma vacina, onde os riscos foram mitigados e estão a ser monitorizados de perto, com as decisões dos médicos nazis a fazerem experiências em humanos sem anestesia, segurança, e sem ter em conta se o ser humano sobreviveu ou não, acho que é mesmo inapropriado”, referiu, ao Full Fact, Alexis Paton, professor na Universidade de Aston, em Birmingham, Inglaterra.
Publicações que mencionam Código de Nuremberga não são de agora
Em março, várias publicações nas redes sociais já afirmavam que o Tribunal Penal Internacional (TPI) tinha aceitado uma reclamação que acusava o programa de vacinação contra a Covid-19 de Israel de violar o Código de Nuremberga. Uma das publicações afirmava, até, que se estava a viver um “um genocídio” e que os media estavam a ignorar a situação. À Reuters, um porta-voz do TPI referiu que a reclamação tinha sido recebida pela entidade, mas que isso não significava que a mesma tinha sido avaliada e aceite.
Já em julho, apoiantes do movimento norte-americano QAnon, que se dedicada a espalhar teorias da conspiração, inundaram as redes sociais, garantindo que um segundo conjunto de julgamentos semelhante ao que deu origem ao Código de Nuremberga seria realizado para processar quem decidiu as medidas restritivas relacionadas com o coronavírus, por se tratarem de crimes contra a humanidade: chamaram-lhe “Nuremberg 2.0”.
Reiner Fuellmich, um advogado alemão especializado em fraude corporativa, tem sido a grande esperança de todos os que não acreditam na pandemia da Covid-19 e já prometeu que cientistas e líderes mundiais seriam julgados.
O Código de Nuremberga foi adotado como parte das Convenções de Genebra de 1949, o que significa que uma violação dos seus princípios constituiria um crime de guerra. É um modelo para muitos dos padrões legais e éticos de hoje, internacional e nacionalmente, e mudou a forma como se regula a proteção dos participantes numa investigação científica.
Conclusão
ENGANADOR
A ação dos cientistas na criação de vacinas para combater a Covid-19 não desrespeitou o Código de Nuremberga. Por um lado, essa alegação só poderia fazer sentido numa fase de desenvolvimento e testes das vacinas, e não quando a sua inoculação ao público já começou. Depois, e mais importante, foram cumpridos todos os processos e aprovações normais nestes processos, mesmo que de forma mais acelerada.
Por outro lado, os voluntários que ajudaram a desenvolver as vacinas foram, durante o processo, acompanhados de perto, de forma a reduzir riscos, não fazendo sentido comparar estes métodos com os utilizados pelos nazis, que faziam experiências em humanos sem anestesia, segurança e sem sequer ter em conta se as pessoas sobreviveriam.
Trata-se, neste caso, apenas um argumento que confirma uma postura antissistema e contracorrente que, aliás, tem sido comum, desde o início da pandemia, aos movimentos negacionistas e anti-vacinas da Covid-19.