Na semana passada foram divulgados os dados mais recentes sobre o número de funcionários públicos em Portugal, mostrando que, no segundo trimestre deste ano, o Estado tinha 731 mil trabalhadores. É o valor mais alto desde 2011, ano em que a Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP) começou esta nova série de dados.
O número é alcançado numa altura em que se prometem mais contratações no curto prazo, e com Marcelo Rebelo de Sousa aparentemente de acordo com o Governo e com a esquerda a propósito da necessidade de reforçar a Administração Pública, que considera estar “desfalcada”. Embora grande parte das entradas esteja a ser feita através de contratações a prazo, elas têm volume suficiente para serem relevantes até para a contabilização da evolução geral do mercado de trabalho, como noticiou este fim-de-semana o Diário de Notícias.
Com a Função Pública a voltar ao centro do palco político, regressou também o debate sobre o número de trabalhadores do Estado. Portugal tem demasiados funcionários públicos? Ou devia ter mais? Embora não haja uma resposta de “sim” ou “não” para perguntas desta natureza, podemos sempre comparar a Função Pública portuguesa com a de outros países da União Europeia.
Se usarmos os dados mais recentes do Eurostat, verificamos que Portugal tem uma das percentagens mais baixas de funcionários públicos em relação à sua força de trabalho total (abaixo dos 15%), tendo inclusivamente recuado entre 2000 e 2019. Longe estão os nórdicos, com percentagens superiores a 25%. E todos os países estão acima dos 10%.
Se quisermos usar outra fonte e alargar a análise a países fora da UE, a conclusão não é muito diferente. Os dados da OCDE também colocam Portugal na metade inferior da tabela e abaixo da média observada nos países mais ricos do mundo.
É com base nesses dados da OCDE que a própria DGAEP faz uma análise semelhante, usando como ano final o de 2018 (em vez de 2019).
É importante notar que este tipo de comparação tem sempre limitações. Ainda que as instituições internacionais procurem harmonizar os dados, existem frequentemente discrepâncias metodológicas que dificultam a análise.
Também por isso, pode ser útil usar indicadores alternativos. Outra forma de avaliar o peso que a Função Pública tem na economia é olhar para a despesa do Estado com salários. Essa análise já coloca Portugal a meio da tabela, um pouco acima da média comunitária, dedicando em 2019 quase 11% do seu PIB a remunerações dos trabalhadores do Estado. A decomposição deste indicador mostra que Portugal está acima da média nos gastos com remunerações na saúde e na educação.
Ainda assim, é um número que tem estado a recuar quase ininterruptamente desde 2005. Está hoje muito mais alinhado com os níveis médios da UE. Uma das excepções a esta trajetória é o famoso ano de 2009, quando o Governo de José Sócrates aprovou um aumento para a Função Pública já depois da falência do Lehman Brothers e do início daquilo que viria o colapso do sistema financeiro internacional, arrastando o País para a recessão.
Ainda no mundo das contas públicas, uma alternativa a estimar o peso destes gastos no PIB é ver quanto é que as remunerações da Função Pública pesam na totalidade da despesa do Estado. Também aqui, Portugal surge a meio da tabela e acima da média comunitária (muito influenciada pela posição das maiores economias europeias).
Claro que o debate sobre existência de “muitos” ou “poucos” funcionários públicos não se pode fazer olhando apenas para números totais. Eles podem esconder uma grande heterogeneidade entre áreas e serviços, com alguns deles a operarem em défice e outros onde existem funcionários a mais para as tarefas a desempenhar.
“Se calhar com a digitalização que teve um enorme empurrão, e que com o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] vai ter ainda mais, há cada vez mais funções que se tornam desnecessárias, — como sejam muitas tarefas dos assistentes operacionais e dos assistentes técnicos”, dizia a ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, em entrevista ao “Eco”.
“Ninguém discute, creio eu, que nós precisamos de ter mais trabalhadores nos setores da Saúde e Educação”, acrescentava Alexandra Leitão, sublinhando a necessidade de “contratar mais técnicos superiores jovens e qualificados”. “Precisamos de juristas, economistas, engenheiros, sociólogos, enfim, pessoas com licenciatura, mestrado ou até doutoramento.”
Sempre que se discute a dimensão da mão-de-obra do Estado, um subtema sempre mencionado é o das remunerações. Os números mostram que os funcionários públicos ganham, em média, mais do que os trabalhadores do privado. Dados do INE de junho de 2021 mostram que a diferença é entre o salário bruto médio de 2.146 euros (público) e de 1.234 (privado).
Esta diferença é justificada, em grande parte, com a natureza das tarefas desempenhadas e a disparidade de nível de qualificações (53% dos funcionários públicos concluiu o ensino superior, o que compara com apenas 20% no setor privado).
Mas esse não é o único motivo. Um estudo do Banco de Portugal publicado em 2001 (e co-autorado por Mário Centeno) concluía que a Função Pública portuguesa tinha um dos prémios salariais mais altos da Europa. No caso das mulheres, a sua remuneração era 2/3 mais alta do que outra trabalhadora com funções semelhantes no setor privado (para os homens, era 38%).
O debate sobre as diferenças de remunerações é antigo e terá atingido o seu auge durante o programa de ajustamento da troika, quando foi decidido que a Administração Pública portuguesa tinha de emagrecer. Nessa altura, o governo de Passos Coelho encomendou um estudo à consultora Mercer para comparar os salários praticados no Estado e no privado. O relatório concluía que era nas tarefas menos exigentes que os funcionários públicos se destacavam face ao privado. No topo das carreiras, por outro, os salários até eram mais baixos do que os praticados no mercado.
“No setor público, existe uma prática salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade e que as remunerações pagas para funções de maior complexidade e exigência tenderão a ser inferiores às do setor privado”, podia ler-se no documento.
Esta estrutura significa que o Estado tem dificuldade em reter alguns dos seus quadros mais qualificados, ao mesmo tempo que não consegue competir com o privado para ir contratar novos. O que ajuda a explicar as declarações da ministra, citada em cima. “Com a digitalização vamos precisar cada vez menos de trabalhadores menos diferenciados, e precisar cada vez mais de trabalhadores qualificados, ou seja, de técnicos superiores”, dizia na mesma entrevista ao “Eco”.
(No entanto, é importante sublinhar que tanto a análise da Mercer como a dos economistas do Banco de Portugal podem estar desatualizadas, depois de vários anos de cortes e congelamentos salariais, assim como de natural recomposição da Administração Pública.)
Este desafio das qualificações e remunerações está também ligado a outro problema amplamente diagnosticado: a Função Pública portuguesa está a ficar muito velha. Os dados da OCDE dizem-nos que ela é das menos jovens deste grupo de economias avançadas e que está a envelhecer ao ritmo mais rápido. Em 5 anos, a percentagem de trabalhadores com mais de 55 anos saltou de 19,6% para 36,5%.
CONCLUSÃO
Portugal é um dos países com mais funcionários públicos?
FALSO
Os dados mostram que Portugal não tem mais funcionários públicos do que a média europeia. A despesa pública com remunerações está acima da média, mas, mesmo aí, o País fica a meio da tabela na comparação comunitária e este indicador tem seguido uma trajetória de descida.
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