Uma sala de congressos cheia para a ouvir e ela nem treme. Entra sorridente, como sempre, na sua cadeira de rodas, com o ar mais profissional do mundo. Pronta, também como sempre, a desligar o complicómetro e a demonstrar por que é uma pessoa grata e como uma pessoa grata é muito mais feliz. Vem empurrada pela sua cuidadora, uma espécie de extensão das suas rodas, praticamente invisível, e que só ganha um bocadinho de cor quando lhe pega ao colo e a senta em cima da mesa. Aí, Mafalda Ribeiro revela ao que vem: “Descomplicar é uma das minhas máximas favoritas. Não venho revelar os passos para a felicidade. Quer dizer, nem passos dou, não é?”
Este é o grau máximo da pessoa dependente. A rodar desde 1983, como gosta de dizer, Mafalda Ribeiro, 33 anos, é sobejamente conhecida por ter ossos de vidro ou, mais formalmente, uma osteogénese imperfeita. Tem 95% de incapacidade, mas faz por se focar nos seus 5% que funcionam. À nascença, o prognóstico médico ditava que não ia sobreviver, e pouco depois que nunca chegaria à idade de ir para a escola. Ultrapassou todos os obstáculos. O segredo, garante, é nunca se levar demasiado a sério e também contar com uma rede de cuidadores extraordinários: o pai, de quem herdou os olhos verdes, e o gene daquela doença familiar, é um deles. Mas não está só.
“Vá, diz olá às pessoas, Cláudia Sampaio.” As cabeças viram-se para o fundo da sala. É o momento em que olhamos com olhos de ver a cara da mulher que lhe empurrou a cadeira de rodas até ao palco e que, há dois anos, a vai buscar a casa e a transporta para onde tiver de ser, de norte a sul. “Não sou autónoma, mas tornei-me extremamente livre desde que a Cláudia me disse que não tinha medo e que me levava onde eu quisesse.”
É mesmo assim, confirma Cláudia, 43 anos, diretora-executiva da instituição Ajuda Cristã à Juventude, acrescentando que a área da inclusão e responsabilidade social sempre lhe interessou. Conhece Mafalda Ribeiro desde o lançamento de Mafaldisses Crónicas Sobre Rodas, em 2008, e tempos depois deu por ela a perguntar-lhe o que gostaria de fazer. “Foi quando me contou que era convidada para muita coisa mas nem sempre ia, porque para o fazer precisava sempre de ajuda.” Era tudo o que Cláudia queria ouvir. “Se é isso que precisas, é isso que quero fazer.” O primeiro passo foi conhecê-la, saber como podia ser a sua extensão, os seus braços e pernas, e passou a ser o apoio que Mafalda precisava para se deslocar. Cláudia garante que não mais vacilou: “Poder contribuir para que a força dela contagie outros é uma oportunidade única na vida.” É uma história feliz, que se quer inspiradora para um mundo de cuidadores informais que cresce por todo o País, mas a verdade é que nem todas as essas vidas têm contornos assim tão extraordinários a maioria não é sequer reconhecida, quanto mais valorizada. É a pensar nessas 90 mil pessoas que avançam, em várias frentes, as mais diversas iniciativas. Para também cuidarmos do cuidador.
SÓ AMOR NÃO CHEGA
Elisabete Rocha sabe bem do que falamos. Aos 43 anos, casada e com uma filha de 13 anos, viu a sua vida de pernas para o ar desde que há quatro anos teve de alugar uma casa no andar de baixo, do prédio onde vive, em Esmoriz, para cuidar dos pais, sozinhos em casa. Nunca mais jantou só com o marido e a filha, nunca mais dormiu uma noite inteira. “Tenho sempre o telefone na mão, não vá tocar e eu não ouvir….” Dos sete filhos do casal, é a única que está por perto: o mais velho já morreu, outro, viúvo, também conta com ajuda de terceiros, os restantes vivem emigrados.
Os pais, ele com 86 anos, ela com 84, vivem praticamente acamados há doze. No início, ficaram na casa em Santa Maria da Feira e, com a ajuda de bengalas, ainda iam ao supermercado. Agora, nem banho conseguem tomar sozinhos.
“O que mais me custa é vê-los em sofrimento e não poder fazer nada.” Mas o maior problema, há de reconhecer entretanto, é o apoio ou a falta dele. “Eles não querem ir para um lar e estão no seu direito, quero proporcionar-lhes isso. Só que no entretanto eu não tenho descanso algum…” Foram sentimentos destes que levaram Isabel Correia, 49 anos, a escrever o livro Anos a Viver o Fim, a meias com a também psicóloga Maria Gouveia-Pereira.
Catorze histórias, na primeira pessoa, a alertar para a necessidade de cuidar dos cuidadores. Até o pai adoecer de demência, em 2003, Isabel não tinha a menor noção do grau de sofrimento, debilidade e dependência a que uma pessoa pode chegar e viu-se a braços com uma situação com a qual não sabia lidar. “Chegava a ir vê-lo três vezes por dia porque tinha piorado, porque a empregada faltara, para lhe levar um medicamento que faltava ou simplesmente para o lavar.” A carreira e a vida ficaram suspensas, num segundo plano sem prazo. Deixou de ir a congressos e também não voltou a tirar férias a sério. “Nunca baixei os braços mas cheguei facilmente à exaustão.” O mais dramático, assinala Isabel Correia, é que se pode viver assim muito tempo, anos e anos a fio, com demasiada gente à volta a repetir que é tudo normal.
“Mas não é. O que eu sentia, e confirmei com todos os que acederam a dar-nos o seu testemunho, é que não se trata só de amor. Quem cuida precisa de apoio e de saber o que deve fazer.”
TUTORIAIS PARA TODOS
São gritos de alerta que começam a ser ouvidos. Há um ano, avançava-se com a inclusão do estatuto do cuidador informal no programa do Governo. No final do verão, uma petição dava entrada na Assembleia da República para tentar acelerar o processo. “Vamos avançar, embora de forma faseada, no início do próximo ano”, confirma agora Manuel Lopes, o coordenador da Rede Nacional de Cuidados Continuados, revelando ainda que o primeiro passo será na formação para que todos estes cuidadores possam prestar os cuidados adequados. Preparam-se tutoriais, numa linguagem acessível, para os atos mais básicos do dia a dia, como alimentar, dar banho ou ajudar a andar. “Sabemos que um ato em falso pode ter consequências dramáticas.”
Falamos de quantas pessoas? Ora se, segundo o Observatório Português de Sistemas de Saúde, há pouco mais de cem mil pessoas doentes em casa em Portugal, e 80% delas depende do apoio de outros para viver, as estimativas apontam para perto de 90 mil cuidadores informais.
“É de facto muito importante valorizar o cuidado que as pessoas prestam”, concorda Maria João Quintela, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia, assinalando que falamos sobretudo de mulheres, que ficam com os familiares a cargo, sem equipa multidisciplinar nem outra rede de qualquer espécie.
Ciente desta necessidade está também Rosário Sobral, presidente da direção da Associação para o Desenvolvimento de Novas Iniciativas para a Vida (Advita), reconhecendo que a sociedade mudou muito e a vida das pessoas também. “Quem é que hoje se sente preparado para largar tudo e ficar a tomar conta dos mais velhos? Nem se pode exigir isso, muito menos que o façam sozinhas”, assume.
No seu entender, trata-se de toda uma mudança de paradigma. “Além disso, hoje as pessoas só podem recorrer aos hospitais em situação de doença aguda; quando lhes é dada alta deparam-se não com um problema de saúde, mas social.”
![Elsa Serra Cuidadores - Solidariedade41.jpg](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/10/9939974Elsa-Serra-Cuidadores-Solidariedade41.jpg)
“Estamos rodeados de pessoas aprisionadas num corpo doente a precisar de cuidados”, sublinha Elsa Serra
DR
EM TODO O LADO
Há algumas dificuldades em avançar (“Vivemos num mundo em que as pessoas não querem pensar nisso, afinal não é um assunto sexy”, lamenta ainda Rosário Sobral), mas há pequenos-grandes passos já a ser dados. Desde logo com a assinatura de protocolos entre a Advita com a União das Misericórdias, na área da formação de cuidadores, e mais recentemente também com a Câmara Municipal de Lisboa, no âmbito do Plano de Desenvolvimento da Saúde e Qualidade de Vida. Quatro freguesias deverão avançar com projetos–piloto deste “Cuidar Melhor”, que conta ainda com o apoio da Escola Superior de Enfermagem. “Vamos começar em Alvalade, S. Domingos de Benfica, Ajuda e Alcântara, em articulação com os centros de saúde”, revela o vereador dos Direitos Sociais, João Afonso, “São as freguesias em que identificamos maiores problemas de envelhecimento, mas também as que apresentam alguma capacidade de resposta, para testar o projeto. Depois queremos chegar ao resto da cidade, a todo o lado onde haja gente a precisar de cuidados.” Esse é também o propósito que faz correr Elsa Serra, 48 anos, contadora de histórias e moradora no bairro da Mouraria, em Lisboa, empenhada em lançar o projeto Na Rua Com Histórias Uma Biblioteca Para Todos. Contar histórias aos mais novos é a sua forma de vida há 17 anos. Um dia, sofreu uma artrose na anca e percebeu como envelhecer se pode revelar uma fase da vida muito dolorosa.
Desde aí passou a reparar mais na vizinha que nunca sai de casa e também nos outros que só recebem a visita dos apoios domiciliários e fez-se luz. Como quem diz, decidiu sinalizar os idosos isolados lá do bairro e criar uma rede de visitas para lhes levar o jornal ou uma revista, ler e ouvir-lhes as suas histórias as alegrias, as tristeza, os desabafos. “São pessoas que vivem aprisionadas no seu corpo doente, em prédios sem elevador e com escadas demasiado íngremes para alguém se arriscar sozinho. E o cuidado emocional também faz falta.”
No país dos dependentes
1. Perto de cem mil portugueses sobrevivem com ajuda de outros e estes são, em 80% dos casos, cuidadores informais.
2. Portugal tem a maior taxa da Europa de cuidados domiciliários prestados por um residente na mesma habitação (12,4%)…
3. …e a menor taxa europeia de prestação de cuidados não domiciliários (10,8%).
4. A despesa pública, em percentagem do PIB, relativa aos cuidados continuados em Portugal, está abaixo da média dos países europeus.