Nasci e cresci num sistema laboral o qual nunca questionei ao longo de grande parte da minha vida pois parecia algo natural, tal como é natural o sol nascer e pôr-se todos os dias. O nascer e pôr-do-sol não são uma escolha nossa, mas o tipo de sistema laboral esse sim, é. Vivemos, atualmente, num sistema de trabalho mercantil, ou seja, o nosso trabalho, esforço e tempo são uma mercadoria transacionável e sujeita às “leis de mercado” do capital. Isto dita o acesso às condições mínimas de sobrevivência, logo trabalhar não é uma escolha, mas sim uma obrigação que pode não estar em concordância com as nossas vocações e vontades.
O tema do trabalho está hoje intimamente ligado ao tema do capital que mercantilizou o trabalho – separação da pessoa e do trabalho, a sua capacidade, tornando essa forma de trabalho uma mercadoria “transacionável fictícia” como refere Karl Polanyi em a “Grande Transformação”. Já Stuart Mill, em “The Philosophy of Economics” defende que a Economia Política caracteriza-se principalmente por pressupor que os seres humanos têm como único propósito a persecução da riqueza “abstraindo-se de todas as outras paixões ou motivações humanas” de forma racional, ou seja, capazes de escolher entre os meios os que mais se adequam ao objetivo. É a mecanização da pessoa e a obsessão do lucro como fim único. Adam Smith em a “Riqueza das Nações”, afirma que “não é da bondade que podemos esperar o nosso jantar”, mas sim e apenas do interesse pessoal e egoísta.
Olhando para estas duas últimas perspetivas, que resumem o egoísmo como participação das pessoas, penso no trabalho realizado em regime de voluntariado, onde este é profundamente contrário à “obtenção de riqueza” e neste egoísmo assente no exclusivo ganho pessoal. O voluntariado parte de uma escolha livre e de vontade própria de cada pessoa, sem nenhum tipo de recompensa material ou pagamento e muito menos se reveste de fins lucrativos e da acumulação de riqueza. São milhões de pessoas que realizam trabalho em regime de voluntariado pelo mundo, chegando a envolver percentagens muito altas da população ativa em alguns países. Onde está então a motivação de obtenção de riqueza se no voluntariado não existe esse fator motivacional? Esta é uma outra economia dado que não é a obtenção e acumulação de riqueza pessoal a motivação nem a sua base. Em alguns casos, há até trabalho que apenas faz sentido ser desenvolvido em regime de voluntariado. Visitar pessoas “doentes num hospital”, por exemplo, não parece fazer muito sentido no trabalho mercantil, apenas no voluntariado que tem uma base muito diferente de sistema de valores. Claro que este exemplo é muito extremo, mas é uma imagem da desunião de valores entre um sistema mercantilista e um sistema solidário expresso pelo voluntariado. Algumas áreas profissionais ganhariam profundamente se não houvesse essa ligação mercantilista. Por exemplo, o caso da saúde, justiça, educação, entre tantas outras.
No entanto é de convir que sendo o voluntariado uma escolha livre, certamente haveria muitos trabalhos que não teriam adeptos. A verdade é que cada vez mais as pessoas estão a ser substituídas pela robótica e sistemas automatizados, onde muitos desses trabalhos já estão a ser “rejeitados” pelo próprio mercado com a substituição humana pela máquina (por haver maior eficiência e redução de custos). Com isto e em poucos anos, o desemprego que envolva a “força braçal” irá aumentar significativamente nos países desenvolvidos.
Penso que a questão do trabalho levanta vivamente questões profundas de liberdade, ou seja, no trabalho mercantil as liberdades são transacionadas havendo uma “aceitação” baseada na necessidade de sobrevivência da maioria das pessoas, em vez da vontade. Caso a liberdade não possa ser transacionada como um produto, como no caso desta economia mercantil, não viveriam as sociedades uma verdadeira liberdade, democracia, cidadania e inclusão? É importante prestar atenção ao fator de inclusão que o voluntariado também pode promover. “O voluntariado é um caminho de inclusão entre grupos populacionais que com frequência são excluídos, como as mulheres, os jovens e os idosos, pessoas com deficiências, migrantes…” (Relatório sobre o Estado do Voluntariado Mundial, 2011). Já no modelo de trabalho mercantil e com a degradação que vimos pelo desemprego, promovemos não só a falta de liberdade, como a desigualdade e exclusão. O próprio desemprego faz parte deste sistema dado que pelo desemprego garantem-se salários mais baixos e cedências a muitos níveis. As pessoas ficam mais “maleáveis” e os países tornam-se mais “competitivos” pela exploração facilitada das pessoas.
Num sistema em que o trabalho mercantil é substituído pelo trabalho voluntário, o paradigma da sociedade e da vida humana mudaria profundamente onde a igualdade e liberdade seriam mais uma realidade vivida diariamente do que uma ilusão. Conseguem imaginar? Acredito que possa ser muito difícil dadas as conceções profundas que temos sobre o trabalho e mercado onde a nossa utilidade e opções são apenas definidas pela “procura e oferta”. A nossa existência baseia-se na obtenção de riqueza que na realidade não passa de uma mera fonte de sobrevivência para a maioria de nós. Mas o voluntariado não se trata apenas de uma forma de trabalho, é mais do que isso. Trata-se também de uma forma de participação e empoderamento das pessoas. No voluntariado as pessoas participam na sociedade que querem ter, não são apenas espetadoras de um teatro.
Hoje, o trabalho terá que ser repensado pois já não se trata de apenas “produzir” e “vender”. Assim, mais do que nunca, a questão laboral é fundamental para desenhar uma nova sociedade baseada numa economia onde as regras do trabalho como existem não podem ser as mesmas. De momento convivemos com estes dois sistemas – solidário e mercantil – onde o mercantil domina profundamente a nossa sociedade e as nossas consciências. Porém, penso que o voluntariado será cada vez mais reconhecido como importante podendo oferecer uma forma de organização laboral e participação futura que nos levará a uma felicidade humana, como ainda não conhecemos. Um sistema que não dependerá da ganância, mas sim da solidariedade. No fundo, uma forma de ação para uma economia solidária onde trocamos as competências e vontades de cada pessoa, e não a sua liberdade. Não seremos realmente livres enquanto a base do trabalho for a nossa sobrevivência enriquecendo “uns poucos”. Não creio que haja solidariedade sem liberdade. Enquanto houver algum tipo de mercantilização do trabalho, haverá sempre um nível de escravatura.