Aos 33 anos, Maria Palha, psicóloga nos Médicos Sem Fronteiras, continua a cumprir dois sonhos de infância: viajar e promover o bem-estar: consigo, na relação com os outros e no mundo.
Porque todos somos humanos e temos a responsabilidade universal para mudar as nossas circunstâncias a estes três níveis. Parece simples mas não é, assegura a mulher que já palmilhou muitas léguas, mundo fora, desde há uma década, em missões de ajuda humanitária e intervenção na crise. “É preciso ter autoconhecimento e abecedário emocional”, lembra ainda a consultora de empreendedorismo social. Maria Palha deu-se conta de que uma boa parte das pessoas que a procuram no gabinete de consultas, em Lisboa, ou em cenários de guerra e catástrofe, nas missões com os Médicos Sem Fronteiras se revela incapaz de diferenciar as suas emoções e de regulá-las, criando e prolongando um sofrimento desnecessário no seu quotidiano. Em Uma Caixa de Primeiros Socorros das Emoções (Ed. Manuscrito, 270 págs. €14,90), o livro que acaba de lançar, o leitor é convidado a criar o seu próprio kit S.O.S. psicológico a partir das técnicas propostas pela autora, que inclui o relato de algumas histórias que mais a marcaram, na Líbia, na Turquia, no Brasil, na Síria e no Sudão. À conversa com ela, numa esplanada, durante uma tarde soalheira mas fria, ficámos a saber aquilo que a move e em que mais acredita.
Como foi parar aos Médicos Sem Fronteiras (MSF) e se tornou uma psicóloga do mundo?
Quando acabei o curso quis especializar-me em saúde mental e ver mundo. Rodei um globo que tinha lá em casa e calhou Moçambique. Contactei o Hospital Central de Maputo e responderam que não precisavam de profissionais de saúde.
Meti-me num avião e fui bater-lhes à porta. Viram-me ali e disseram-me para ficar. Inicialmente seriam seis meses mas acabou por ser um ano, como voluntária mista e a receber salário. Comecei a ver o mundo das ONG’s e percebi que os MSF, com quem sempre me identifiquei, aceitavam profissionais não médicos.
Candidatei-me, comecei por trabalhar em projetos longos na área da SIDA e, com a experiência que já tinha, pude envolver-me em missões de crise humanitária.
Os cenários de guerra e catástrofe não são para todos. Não temeu ficar sem chão, sem segurança?
Olhando para trás, acho que sempre tive uma predisposição para isso. Trabalhei enquanto estudava e, quando decidi ir para Moçambique, tinha poupanças para lá ficar meio ano, criei condições para isso. Ajudou muito eu usar estratégias para sentir bem-estar, como a prática do desporto, leitura, ioga, cinema. E estar consciente, sem ter medo de agir.
O que é a intervenção psicológica na crise?
Estamos em crise quando perdemos a segurança para agir e seguir em frente.
O contexto é pouco relevante. No meu livro falo em primeiros socorros psicológicos, para os quais existem recomendações internacionais. A intervenção passa por dar informação à pessoa, que a tranquilize de forma a sentirse segura e tomar decisões alinhadas com os seus valores, crenças e caráter.
Qual foi a história vivida em contextos brutais que mais a marcou ou comoveu?
É difícil. Tenho várias que me tocaram em pontos muito diferentes. Lembro-me do convite para beber chá com o líder de um grupo armado, que foi efetivamente um sequestro e mexeu muito com os meus medos, ao nível físico até. Depois há a historia da Joane, do Sudão do Sul, que diz muito da capacidade de resiliência do ser humano. Se a Joane tivesse mais abecedário emocional, não teria chegado à depressão em que se encontrava, não teria esperado muitos meses, como conto no livro, para pedir ajuda.
O que é o abecedário emocional?
Identificar e reconhecer emoções.
A sociedade ocidental está muito voltada para o rendimento, para o fazer, descurando o ser ou o que nos move enquanto pessoas. O esforço de fazer e atingir metas é um caminho que nos distancia das emoções, sejam de prazer, alegria, serenidade. As pessoas que vejo em consultório não conseguem distinguir nem dar um nome ao que estão a sentir.
É como se emoções fossem um território de segunda categoria.
Ignorá-las tem um custo?
Em situações de stresse e pressão social, em que é necessário entregar ou cumprir tarefas a tempo, tendemos a passar ao lado das emoções e sinais de alerta e a focarmo-nos nos erros. Entram em campo os pensamentos negativos, a autocrítica, que é um pensamento circular que se transforma numa fonte de mal-estar. A terceira premissa do kit é conseguir identificar fontes de malestar e estancá-las no momento certo.
Parece fácil mas não é. Adaptei um dos conceitos de Guy Winch (os ‘pensos rápidos’ emocionais) e apresento dicas de autoajuda para reconhecer sinais de alerta e regular emoções.
Como perdemos a capacidade de nos conhecermos a este nível?
Começa-se logo em criança. Ela chora porque não quer ir a uma festa ou não consegue juntar-se aos outros e o adulto desvaloriza isso e diz ‘vai lá brincar, não sejas tímido’. Esta criança vai sentir que ter vergonha é desadequado ou mau, sem chegar a ginasticar-se nesta área.
Como concilia o trabalho nos MSF com a clínica que exerce em Portugal?
Numa primeira consulta informo logo que saio do País uma vez por ano, durante dois meses e meio, em missão humanitária. Se isto for um obstáculo, posso referenciá-las para colegas e deixo a decisão ao critério das pessoas. Geralmente já sabem disto e veem-no como uma oportunidade de aprendizagem que pode ser útil para ambas as partes.
Não tira férias?
Depende do que entender por férias. Sair do País, mudar de perspetiva, entrar em contacto com outra cultura e aprender coisas novas é um momento muito prazeroso do meu ano, com a minha equipa dos MSF. Também me dá prazer fazer consultoria de empreendedorismo social, com empresas, ONG’s, associações e pessoas privadas que me chamam para desenhar programas com impacto social, promotores de bem-estar.
A cultura portuguesa é permeável a programas deste tipo?
Os tempos estão a mudar e vemos mais atores sociais a valorizarem projetos de intervenção comunitária. É uma área que tem 30 anos mas ainda está a desenvolver-se. A autoajuda, categoria onde se inclui o livro, nem sempre é vista com bons olhos, por fomentar a ilusão de se conseguir mudar sozinho.
O que pode dizer sobre isto?
Há muito preconceito ainda, olha-se só para a saúde física e pouco para a mental.
Acredito que se tivermos informação suficiente e técnicas simples para atuar no momento certo, não chegamos a um estado tal de sofrimento que nos leve a precisar de ajuda especializada.
Pode dar um exemplo?
No caso do stresse, ele ajuda-nos a andar para a frente, mas se não for mediado no tempo pode descambar num burnout (esgotamento). Pelo meio surgem muitos sintomas: agitação, dificuldade em concentrar-se, insónias, irritabilidade, menos disponibilidade para os outros. Nas consultas é comum as pessoas queixarem-se de que não estão a conseguir dar conta de várias coisas ao mesmo tempo, sem ter a noção das fontes de mal-estar. Se tiverem informação e acesso a técnicas simples de autoajuda os tais ‘pensos rápidos’ emocionais para acionarem no momento.
Porque temos os níveis mais elevados de ansiedade e depressão da Europa? Questões pessoais ou, como também refere no livro, por políticas de trabalho?
A ansiedade está ligada ao medo do futuro. Pode ter a ver com situações instáveis, começa por se ficar irritado com o trânsito matinal e, seis meses depois, já não se consegue ir trabalhar.
Pode ser a representação que se tem do chefe ele não dar feedback é angustiante ou se, por exemplo, achar que não se é suficientemente bom ou merecedor de bem-estar.
Com autoconhecimento e abecedário emocional, há sempre uma saída.
Mesmo em cenários de guerra, como a da Síria, em que se está no plano da sobrevivência?
Sim. Porque há sempre outra forma de ver as coisas, se não fizermos julgamentos. Na Síria, comecei a trabalhar com mulheres e crianças, que pediam mais ajuda, e surpreendi-me quando o líder do grupo armado me abordou dizendo que os homens também precisavam, que ele próprio estava a sofrer com as emoções, que chorava por ter de enviar o seu filho pequeno para a linha da frente, para levantar os corpos dos escombros. Eu, que não iria intervir com estes homens, estava a condicionar a minha ação baseada num preconceito e a partir daí fizemos um trabalho muito interessante.
E na crise dos migrantes, onde esteve também em missões de ajuda humanitária?
Escrevi um artigo sobre isso. O facto de muita gente se mostrar indignada e fazer julgamentos só mostra como como não se tem consciência do que é viver neste contexto, porque as reações dos migrantes são próprias de quem está num nível de sofrimento bastante grave e querer sair dali é um comportamento saudável. A Europa tem uma obrigação moral de promover bem–estar, desenvolver empatia, compaixão e concretizar a generosidade.
Porém, parece prevalecer a crença de que estamos num mundo cão. O mundo cão é um mundo sem emoções. O que nos distingue enquanto espécie é termos emoções e irmo-nos adaptando à nossa pele, à nossa relação com os outros e ao contexto, por mais desumano que seja.
As emoções curam? Teve provas disso ou chegou a duvidar e surpreendeu-se?
Nós temos imenso potencial de cura, através do amor, da empatia. No consultório tive pessoas que tinham feito tentativas de suicídio e que se reorganizaram. Nos casos em que só apresentam sintomas uso o método integrativo e otimizo as técnicas que tenho à condição da pessoa. A abordagem varia, mas parte sempre de olhar para a pessoa como um todo.
A felicidade nem sempre nos faz sentir felizes, diz no livro. Já a aceitação sim.
Pode explicar?
Aproveito para pegar naquele conceito do “cuidar de mim”, que erradamente se associa ao fazermos aquilo que nos apetece. Porém, cuidar de mim é outra coisa e exige, por exemplo, conseguir ter mais momentos de lazer durante a semana, mais disponibilidade para cuidar das relações que temos.
E identificar limites pessoais, também, perceber se quando estou mais frágil me defendo ou, pelo contrário, fico mais reativa e dada a explosões. Ou, se entrar numa fase de euforia, recorro a estratégias que me auto sabotam, como ir a correr para as compras ou consumir álcool. Conhecer isto é essencial para perceber o que nos pode fazer felizes ou não. Quando não aceito as minhas limitações trabalhar tantas horas, por exemplo, ou a incapacidade de dizer que não e aceitar a minha vulnerabilidade exige reflexão e é difícil. Saber parar e separar, em mim, o trigo do joio, e questionar-se, é essencial. Tal como o é não olhar para o “erro” como uma falha, antes como algo que pode ser desenvolvido.
O seu encontro com Dilma Rousseff teve a ver com a vulnerabilidade de que fala, tão vital para evoluir?
Era já a segunda ou terceira catástrofe natural que tinham no Brasil, sem uma resposta adequada. Houve um momento em que Dilma parou e questionou onde poderiam estar a falhar. Aceitou esta fragilidade e decidiu chamar os MSF, que tinham experiência em intervenção na crise. Para haver este momento ela teve de aceitar que tinha fragilidades e esta volta ao texto foi um desbloqueio enorme e um processo de aprendizagem. Para haver bem-estar é só preciso isto: parar, questionar o impacto e os resultados que temos, e isso exige por dedos na ferida para melhorar.
O que recomenda aos portugueses, marcados pela crise, e por uma certa ideia de fatalidade até, o seu kit de primeiros socorros emocionais?
Acredito que podem beneficiar do uso da linguagem emocional, conseguir identificar e monitorizar o que os faz sentir bem, ou mal, perceber sinais de alerta, no aqui e agora, para conseguir promover bem-estar. Se houver um compasso de espera grande a reconhecer estes sinais de alerta, a resposta transforma-se numa condição.
A desesperança é isso, achar que não há nada que se possa fazer, relativamente a si, aos outros, ao mundo. Se tiver a capacidade de identificar fontes de bem-estar adaptadas aos seus contextos consegue-se deixar de lado o “um dia isto vai mudar” e passar para o “hoje isto vai mudar”.
A responsabilidade que temos em criar bem-estar, em função do modo como pensamos e agimos, é isso?
Se eu tiver mais compaixão com os meus erros vou sentir-me melhor. Se incluir a generosidade e a criatividade na minha relação com os outros, crio impacto à minha volta. É o que o Dalai Dama refere como responsabilidade universal: eu sou responsável por mudar o meu contexto e promover o bem-estar dos que me rodeiam, mas para isso tenho de estar bem. Sim, nós temos muita responsabilidade nisto.